Joe estava tenso enquanto
dirigia pela cidade, ainda mais calado que o habitual. Quando estacionamos em
frente ao restaurante francês elegante e esnobe – eu odiava o Le Jacques desde
que fora convidada a me retirar após um bate-boca com o chef Jean-Jacques, que
insistira em colocar chantili na minha mousse de chocolate, quando sabia que eu
odiava chantili (rezei para que ninguém se lembrasse do ocorrido) -, Joe se
adiantou ao manobrista e correu para abrir minha porta. Ficou ao meu lado,
passou novamente a mão pelos cabelos, arrumou o nó da gravata pela enésima vez
e expirou com força. Absurdamente tenso. Alcancei sua mão e entrelacei meus
dedos aos seus, tentando acalma-lo.
Ele me olhou surpreso.
- Vai dar tudo certo, Joe –
assegurei. – Ninguém é mais chato ou mais responsável que você naquela empresa.
Sorrindo gentilmente, ele
apertou meus dedos com delicadeza.
- Obrigado, Demetria – e
começou a me guiar, sem soltar minha mão, pelo salão decorado com muito ouro,
flores e rendas delicadas.
Vô
Marcus se reunia frequentemente com a diretoria de suas empresas. Logo de cara,
reconheci todos os rostos que fariam parte da reunião. William Jhonson, um
chato de galochas com olhar superior, Zachary Michael, um senhor de meia-idade
com cara de prisão de ventre, e Heloisa Shutz, a única mulher da diretoria,
bem-vestida num terninho profissional, com olhos rápidos e astutos que
mascaravam seus quase cinquenta anos.
Cumprimentei a todos com a
mão livre. Quando Joe precisou fazer o mesmo, apenas trocou uma mão pela outras
em nunca me soltar. Outros três funcionários também estavam à mesa: Jeferson, o
gago, e a esposa grávida, e mais dois homens – também com as esposas – que
nunca se deram ao trabalho de me dizer bom dia.
Alguém tocou meu ombro.
Hector Simione, o atual presidente da L&L Cosméticos.
- Você não sabe como fico
feliz em revê-la, Demetria – disse ele, com o olhar inquisitivo que eu conhecia
desde a infância. Ele fora, por muito tempo, vice-presidente da L&L e amigo
da família. Depois da morte de vovô, assumira a cadeira deixada por ele. Sua
pele azeitonada contrastava com os cabelos grisalhos, quase prateados, nas
laterais da cabeça. Tive a impressão de que assumir a L&L contribuíra para
o aumento dos fios brancos.
- Não tenho tanta certeza
disso – resmunguei, me lembrando da ameaça implícita que ele fizera ao me ver
na L&L em meu primeiro dia de trabalho.
Joe me cutucou, reprovando
meu comentário, e me afastou dali.
- Me perdoem pelo atraso –
se desculpou Clóvis, irrompendo no salão ostensivo do Le Jacques. – O transito
estava péssimo. Boa noite, senhores, senhoras.
Enrijeci quando seus olhos
pousaram sobre a minha mão entrelaçada à de Joe.
- Demetria – ele disse com
um sorriso.
- Clóvis – tentei parecer
confiante.
- Parece que decidiu não
ouvir meu conselho – ele comentou sorrindo. – Você não ligou.
- Eu nunca fui muito boa em
seguir conselhos, você sabe.
- Isso é verdade – ele
sorriu, mas parecia preocupado.
- Joe! – chamou Hector. –
Poderia explicar para a Heloisa sobre novos contratos com os árabes?
Joe me
olhou por um segundo antes de soltar minha mão e se juntar aos diretores da
L&L.
Clóvis ficou parado ao meu
lado.
- Tenho a impressão de que
você não entendeu o que eu disse – murmurou.
- Entendi, Clóvis. Você foi
bem claro.
- Talvez não tanto quanto
eu esperava. Você ainda insiste com essa farsa.
- Não é uma farsa –
retruquei imediatamente.
- Demetria, estou realmente
espantado com a sua obstinação. Esse seu capricho pode ser prejudicial, eu já
lhe disse isso. Você devia aceitar o meu conselho, ou serei obrigado a...
- O quê, Clóvis? Você vai
me mandar para o colégio na Suíça? Já passei da idade faz certo tempo... –
zombei.
Ele suspirou exasperado,
sacudindo a cabeça.
- Você é impossível. Seu
avô teve certa razão ao ouvir os conselhos do Hector.
- Que conselhos?
- Sobre o testamento. Eu
não contei que foi ele que sugeriu lhe nomear um tutor até que você estivesse
casada? – suas sobrancelhas se arquearam.
- Não, não contou, mas vai
contar agora – me virei, ficando de frente para ele.
- Poxa, me desculpe,
Demetria – ele retirou os óculos, esfregou os olhos e exalou irritado. – Estou
sob muita pressão.
- Tá certo. Agora fala.
- Quando você ligou de
Amsterdã contando que estava na cadeia, mais uma vez, sr. Marcus ficou possesso
– ele recolocou os óculos sobre o nariz. – Estávamos num jantar neste mesmo
restaurante, seu avô, o Hector e eu. Depois de me pedir para acionar os advogados
para tirar você da prisão, ele reclamou que precisava fazer alguma coisa a
respeito da sua imaturidade.
- E...?
- O
Hector mencionou um amigo com um caso parecido. Sr. Marcus ponderou e me pediu
para fazer o testamento ali mesmo, na mesa. Eu tentei argumentar, juro por
minha honra. Mas seu avô estava muito decepcionado com você. E, além disso, o
Hector achou o arranjo muito apropriado e começou a ressaltar os benefícios que
isso ia trazer a você...
- Ou a ele – completei
surpresa, finalmente começando a entender algumas coisas. – Afinal, ele assumiu
o posto do vô Marcus.
Clóvis franziu a testa,
atônito.
- O que você está querendo
dizer? – perguntou.
- Nada. Só estou tentando
entender. Esse testamento não é coisa do meu avô. Por mais que ele estivesse
furioso comigo, não acredito que faria isso sozinho.
- Demetria, ele fez. Eu
estava lá. Fez por vontade própria.
Assenti, por hábito. Que
vantagens aquele testamento traria a Hector além de assumir o comando do
Conglomerado Lovato e ter oceanos de dinheiro sob seu controle?
Tudo bem, eu nunca morrera
de amores por Clóvis nem ele por mim, mas eu não tinha por que desconfiar do
que ele me dizia. Vovô confiava nele, e isso era motivo bastante para que eu
também confiasse.
- Tudo que quero é que você
seja feliz – ele falou. – eu devo isso ao seu avô. Por isso, pare já com essa
besteira e aja como adulta. Era o que o seu avô esperava de você – e se
afastou, juntando-se ao pequeno grupo de homens engravatados.
Levei algum tempo tentando
assimilar o que Clóvis queria dizer com tudo aquilo, mas então todos começaram
a se acomodar em seus lugares e Joe voltou a se postar ao meu lado e a segurar
minha mão. Imediatamente deixei assuntos desagradáveis para depois. Ele apertou
meus dedos diversas vezes, nervoso, agitado, entretanto essas emoções estavam
muito bem escondidas sob sua expressão séria e profissional.
- Vamos acabar com o
suspense de uma vez – anunciou Hector quando as bebidas chegaram. – Acho que
vocês quatro já estão tensos o bastante. A diretoria da L&L analisou a
carreira de cada um de vocês, e ficou claro que todos tem capacidade para
chefiar o departamento de comercio exterior. Infelizmente, apenas um pode
assumir o cargo. O que não significa que não possam ter um futuro brilhante na
empresa. Como vocês sabem, empreendimentos diversificados fazem parte do
Conglomerado Lovato, e no devido tempo precisaremos de pessoas capazes para
dirigi-las. Com uma votação apertada, acabamos num
impasse
– ele continuou. – Dois de vocês receberam a mesma quantidade de votos.
Decidimos que Joseph Jonas e Jeferson Heart são igualmente capazes de assumir o
posto de diretor do Comex. Por isso, o sr. Clóvis Hernandez, representante
legal do fundador da empresa, tem a palavra final – ele apontou para o
advogado. – Clóvis, está em suas mãos.
Joe ficou tenso ao meu
lado, esperando o veredito, mas eu relaxei. Ele era o melhor dos indicados ao
cargo, e Clóvis sabia disso.
- Dois jovens talentosos e
bem-sucedidos. Ambos tão capazes e dedicados à empresa. É extremamente difícil
escolher. Contudo... – Joe apertou minha mão ligeiramente – o Jeferson tem um
pouco mais de experiência e acho que merece dirigir o departamento.
A decepção surgiu no rosto
de Joe com a mesma rapidez com que desapareceu. Encarei Clóvis completamente
perplexa, mas ele evitou meu olhar.
- Jeferson, você é o novo
diretor do Comex.
Todos na mesa aplaudiram o
novo diretor. Até mesmo Joe.
- Eu protesto! – me ouvi
dizendo.
Escutei algumas risadas.
- Demetria, o que você está
fazendo? – murmurou Joe.
- Demetria, querida –
Hector sorriu. – Isso não é um julgamento. É uma reunião entre amigos.
- Não é o que parece –
teimei, encarando-o. – Sinceramente, Hector, duvido muito que o meu avô agiria
da mesma forma que o Clóvis ou que qualquer pessoa aqui. Se tem alguém que sabe
como ele pensava, esse alguém sou eu. Acho que tenho o direito de expressar
minha opinião. Vô Marcus gostaria de ouvir o que eu tenho a dizer. Ele sempre
queria ouvir minhas opiniões.
- Claro que ele gostaria,
Demetria – Hector explicou, um pouco relutante. – Nós também. Mas não numa
reunião de diretoria. Depois de reaver seu direito de herdeira, ficaremos
felicíssimos em ouvir suas ideias. No presente momento, a decisão foi tomada e
deve ser acatada.
- Mas... mas... – olhei ao
redor da mesa. Eu estava fazendo papel de boba. – Ok. Tudo bem. Eu vou retomar
minha herança. Em breve – fitei Hector com obstinação. Ele nem sequer piscou. –
E então muitas coisas vão ser diferentes por aqui. Meu avô dava muito poder á
quem não merecia. Aposto que ele não conhecia as cobras peçonhentas que
mantinha ao seu lado.
- Você
está se referindo a quem, especificamente? – Hector quis saber.
- A ninguém.
Clóvis sorriu.
- Ela lembra muito o avô –
comentou. – Demetria realmente tem o sangue dos Lovato.
- De fato. Marcus também
tinha uma opinião forte sobre todo e qualquer assunto... – Hector sorriu
saudoso, e então ambos desataram a relembrar animadamente as “memórias de
velhos amigos”, ignorando-me totalmente.
Entornei minha taça de
vinho. E mais outra. E mais algumas. Eu não estava feliz. Estava furiosa. Mais
que furiosa, estava em chamas! Como Clóvis tivera coragem? Eu sabia o que
estava acontecendo ali. Ele tinha ficado fulo da vida quando Joe o enfrentara
no refeitório da L&L. Deu pra ver em seus olhos e punhos cerrados. E ainda
insinuara que Joe estava exigindo favores sexuais para manter nosso casamento,
o que era um total absurdo. Clóvis tinha uma impressão errada de Joe,
completamente equivocada. Mas se vingar dele daquela maneira? Quantos anos ele
tinha? Oito?
Eis o que eu deveria fazer:
me levantar, olhar para cada um dos rostos à mesa e dizer, numa voz calma e
contida, que Clóvis escolhera Jeferson apenas para punir Joe por tê-lo
afrontado. Era o que eu deveria ter feito. Mas então Joe saberia que sua
promoção naufragara graças a mim, ainda que indiretamente. Ele me odiaria. Pior
ainda, se decepcionaria comigo.
O jantar prosseguiu com
conversas soltas e descontraídas, das quais Joe participava animado, mas eu
podia imaginar quanto aquilo lhe custava. Clóvis me olhava furtivamente vez ou
outra e sorria com pesas. Não toquei na comida. Pensar em Justin, em como a
promoção de Joe ajudaria a melhorar seu tratamento, ou ao menos seu conforto, e
em como Clóvis fora mesquinho me revirava o estomago. Eu entornava uma taça de
vinho atrás da outra e olhava fixamente para o advogado cabeçudo e atarracado,
esperando que minha raiva o fritasse.
- Por que você fez isso? –
perguntei a ele, num sussurro.
- Sinto muito se o
resultado não lhe agradou. Fiz o que considerei correto – ele murmurou,
constrangido.
- Não, não fez. Você
escolheu o Jeferson porque o Joe não vai com a sua cara.
- Não, Demetria – ele
sacudiu a cabeça, extenuado. – Escolhi o Jeferson por ser mais adequado ao cargo.
Minha discordância com Joseph não teve nenhum peso na minha decisão.
Como
se eu acreditasse naquilo.
- Vá se ferrar! – me ouvi
dizendo mais alto do que pretendia e, apesar da conversa fluida que rondava a
mesa, acabei atraindo alguns olhares.
- Está tudo bem? – Joe
perguntou delicadamente.
Não dava para ver a
decepção em seus olhos, ele a mantinha bem trancada.
- Não – murmurei de volta.
– Não estou bem. Nada está bem!
Ele me olhou
interrogativamente, mas Hector lhe perguntou alguma coisa que o fez desviar os
olhos. Eu mal conseguia respirar. Precisava de ar precisava de ajuda.
Corri para o toalete,
esbarrando em algumas mesas no caminho e não me importando com isso. Fechei a
porta do banheiro decorado em mais tons de dourado e branco, e me apoiei na
grande bancada em frente ao espelho.
Tudo pra nada! Todo o
trabalho, o esforço e a dedicação de Joe nos últimos anos não valeram de nada.
Seu sacrifício ao se casar comigo não valera de nada. Tudo que ele havia
almejado acabara de ruir diante de todos. Se eu não tivesse me medido em sua
vida, ele e Clóvis jamais teriam se estranhado e tudo estaria bem.
- Tudo culpa minha. Droga!
– encostei a testa no espelho e fechei os olhos, desamparada.
Então senti a coisa mais
estranha do mundo. Senti como se alguém – não qualquer pessoa, mas alguém
específico, alguém que eu sabia que jamais voltaria a fazer aquilo –
acariciasse meus cabelos. Foi tão real, tão familiar, que abri os olhos
instantaneamente, apenas para me deparar com próprio reflexo.
Eu estava absolutamente
sozinha.
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Presentinho para vocês!
anwww, meentira véi, clóvis é um idiota como ele pode não dar a promoção a Joe idiotas, arrrg, sabe o que eu acho? que nem clóvis e nem hector prestam, não sei porque isso, mas eu acho u_u se não for os dois pelo menos um deles é do mal.
ResponderExcluirPoosta looogo, pleeease, xo