terça-feira, 16 de abril de 2013

CAPÍTULO 3

Enquanto o padre discursava sobre a generosidade de vô Marcus, suas benfeitorias na comunidade, como sempre fora um homem correto, um cristão temente a Deus, marido, pai e avô devotado, eu me alienava daquilo tudo, encarando fixamente em arranjo de orquídeas, como se não fosse de meu avô morto que o padre estivesse falando. Doía menos dessa forma. Encarei as flores com raiva. Detestava orquídeas desde criança. Havia centenas delas no enterro de meus pais. E havia milhares delas no enterro de vô Marcus. Flor da morte. Eu detestava a morte. Eu não deveria odiá-la tanto agora, já que não sobrava mais ninguém. Todos estavam mortos. Perdi meus pais para um terrorista e vovô para uma doença estúpida. Eu não tinha o que temer, não é?
Recebi muitos abraços na saída da igreja, a maioria de amigos de vô Marcus. Hector, seu braço direito na L & L Cosmético, estava rígido como uma coluna de mármore. Sua pele azeitonada estava pálida, o rosto era uma máscara de seriedade, mas os olhos, vermelhos e inchados, o delatavam. Sua esposa o confortava como podia, e eu fingia que sua tristeza contida era por conta de uma negociação que dera errado, não por saber que nunca mais teria o velho amigo por perto.
Clóvis, o advogado de longa data de vovô, tomara conta de tudo desde aquela manhã fatídica,  o funeral, a papelada das empresas, a missa de sétimo dia, os empregados da mansão. Ele havia sido de grande ajuda, já que naquela semana me limitei a chorar trancada no quarto de meu avô,  que ainda tinha o aroma delicioso de sua loção pós-barba. Só saí de lá com os protestos de Sel, que ameaçou chamar os bombeiros caso eu não abrisse a porta e comesse alguma coisa.
- Como está se sentindo? – Clóvis perguntou quando eu já estava no estacionamento da igreja.
- Cansada. Só quero ir pra casa. – Para o mausoléu que ela havia se tornado fazia uma semana.
- Hã... Sei que não é uma boa hora para isso, Demetria, mas sr. Marcus me deixou instruções para que o testamento fosse aberto após a missa de sétimo dia.
- Não pode ser amanhã? – Eu só queria ir para casa e chorar. Era pedir muito?
- Sinto muito. Ele deixou ordens expressas para que o testamento fosse aberto sete dias após seu falecimento.
Suspirei, fechando os olhos.
- Tudo bem, Clóvis – cedi. – Se não tem outro jeito, vamos acabar logo com isso.
Ele assentiu.
- Vou até a mansão. Acho que vai ser melhor para você. Nos encontrarmos lá.
- Tudo bem – concordei desanimada.
Ele entrou em seu carro e me seguiu enquanto eu dirigia no piloto automático, fantasiando estar em algum lugar paradisíaco onde meu avô ainda vivia.
Nick ligou para perguntar se eu continuaria trabalhando na galeria. Como se eu pudesse pensar em alguma coisa naquele momento.
- Não, Nick. Não tenho cabeça pra nada. Obrigada pelas flores, foi muito gentil.
- Eu realmente sinto muito, Demetria.
- Eu também. – Ninguém imaginava quanto. – Pode arrumar alguém para me substituir. Chega de trabalho pra mim.
- Se precisar de alguma coisa, me liga – ele ofereceu.
Um bipe avisou que havia uma nova chamada.
- Obrigada, Nick. Tenho que desligar. Tchau. – Apertei o botão e atendi a outra chamada. – Alô?
- Demi? – Era Sel. A única pessoa no mundo que me chamava por meu apelido de infância sem terminar com o nariz quebrado. – Desculpa não ter ido à missa. Acabei presa no trânsito. Teve um acidente com um caminhão de cerveja, que tombou e interditou a avenida. Só consegui sair de lá agora há pouco, mas acabei de chegar à mansão.
- Eu já estou quase chegando.
- Vou pedir para a Mazé preparar um chá preto. Você anda muito pálida – disse ela.
- Parece ótimo. – Não que eu quisesse beber alguma coisa, mas não queria brigar com minha amiga. O dia já estava ruim o bastante. – Te vejo daqui a pouco.
Estacionei meu cupê na vaga em frente à garagem e quase explodi em prantos ao ver o sedã preto preferido de vovô parado ali dentro. Fiquei paralisada, admirando o veículo, que nunca mais deixaria a garagem levando seu dono para alguma reunião importante.
Uma borboleta azul flutuou pela garagem, pousando no para-brisa do carro negro. Estremeci ligeiramente. Eu detestava borboletas. Borboletas eram lagartas vestidas em traje de gala, mas ainda eram lagartas. Nunca deixariam de ser, por mais que se metamorfoseassem.
Entrei pelos fundos da mansão, indo direto para a cozinha, e encontrei Sel papeando com a cozinheira, a mais antiga das empregadas da casa. Mazé começara a trabalhar na mansão como babá de meu pai. Era uma senhora de rosto redondo e amigável, sempre sorridente, e sua comida era a melhor do planeta.
Foi Mazé quem me contou os últimos momentos de vida de meu avô. Ele voltou cedo do escritório da L & L cosméticos, pálido e parecendo sentir dor, mas não se queixou, como sempre. Seguiu direto para a biblioteca, para esperar documentos importantes de um das empresas do Conglomerado Lovato que seriam enviados para a multifuncional constantemente conectada à rede. Pouco depois, Mazé ouviu um barulho vindo dali. Encontrou vovô no chão, desacordado, o rosto sem cor. Levaram-no imediatamente ao hospital, de onde nunca mais voltou.
- Oi – me joguei na cadeira ao lado de minha melhor amiga, deitando a cabeça em seu ombro.
Ela passou o braço ao meu redor.
- Seu chá está quase pronto. Como foi?
- Péssimo, Sel. Não poderia ter sido pior.
- Quer algo especial para o almoço, menina? – perguntou Mazé, me lançando um olhar triste. Ela também sentia falta de vô Marcus. Especialmente porque ninguém comia naquela casa fazia uma semana.
- Não, Mazé – sacudi a cabeça, desolada. Mas o Clóvis está vindo pra cá, talvez almoce aqui. Prepara qualquer coisa.
- Claro, menina Demetria – ela respondeu, com seu jeitinho especial de falar comigo.
Suspirei ao ouvir a campainha.
- Pode deixar – eu disse quando Mazé fez menção de ir atender a porta. – É o Clóvis. Vem, Sel. Ele vai abrir o testamento. Não quero ficar sozinha.
- Vamos lá, Demi. Coragem!
Atravessamos a sala de jantar, com a mesa e suas dezoito cadeiras imponentes, mas de extremo bom gosto, a passos lentos. Vi Ataíde no topo da escadaria da sala de estar e acenei com a cabeça, indicando que eu mesma atenderia a porta. Clóvis entrou, o rosto fechado como sempre, e seguimos em silêncio até a biblioteca de vovô. Era a primeira vez que eu entrava ali sem que ele estivesse por perto. Parecia tão errado...
- Como sabe, seu avô deixou um testamento – Clóvis começou.
- É, você disse.
Ele assentiu. Joguei-me no sofá de couro marrom ao lado da estante de livros. Sel ficou examinando as lombadas.
- Muito bem – ele abriu a maleta preta e retirou uma imensidão de papéis. – vou ler para você as instruções que ele deixou.
- Isso é mesmo necessário? – me queixei.
- Sim – ele disse e começou a leitura, daquele seu jeito formal, como se estivesse diante de um tribunal.
Basicamente, vovô havia instruído que Clóvis cuidasse de tudo até que o testamento fosse aberto. Eu queria ir para o quarto ouvir as histórias da Sel, coisas que pudessem afastar aquela saudade que eu sentia de abraçar meu avô, e mais que tudo, de suas broncas.
- Cumpridas as formalidades, vamos à leitura do testamento – Clóvis assentiu para si mesmo.
Dei de ombros. Já fazia ideia do que tinha ali. Eu era a única herdeira viva e, Mazé, Ataíde e Neves, os empregados mais antigos da casa, estão em bons lençóis. Os três trabalhavam para a família desde que eu me conhecia por gente. Uma vida de dedicação. Mereciam seja lá o que fosse que vovô tivesse deixado a eles.
Clóvis pigarreou antes de começar.
- Eu, Marcus Lovato, encontrando-me em minhas perfeitas faculdades mentais e emocionais, livre de qualquer coação deliberei fazer este meu testamento – ele iniciou naquela linguagem chatíssima de advogado – no qual expresso minha última vontade, tendo como única descendente viva a senhorita Demetria Devonne Lovato, america, solteira, curadora de artes, filha de Patrick  Lovato e Diana Lovato – e blá-blá-blá.
Meu avô deixara poupanças generosas para seu trio de empregados fiéis, como eu suspeitara, e o restante, ao que parecia, seria destinado a mim. Não que isso tivesse importância. Eu não ligava para a fortuna.
Nunca liguei para grana. Eu só queria meu avô de volta. Trocaria sem pestanejar todo aquele dinheiro por mais um tempo com ele.
- Contudo, devido à incapacidade da herdeira de cuidar de si mesma, instituo como curador da totalidade de meus bens o senhor Clóvis Hernandez e, como presidente das minhas empresas, o senhor Hector Simione, até que a herdeira legítima esteja devidamente casada há mais de um ano.
Clóvis fez ma pausa para tomar fôlego.
Eu não sabia se havia entendido o que ele acabara de dizer.
- Hã... hein? – resmunguei estupidamente.
- Não terminei ainda, Demetria, se puder esperar até que eu conclua, poderei responder a todas as suas perguntas. – E, voltando-se para o papel, ele continuou: - Disponho a minha neta um emprego vitalício em uma das minhas empresas até que ele possa assumir o que é seu de direito. Se a herdeira tentar contestar este testamento ,a doação do patrimônio a ela será anulada, assim, expressando este testamento particular minha última vontade, requerendo à justiça de meu país que o faça cumprir como este contém e clara... – e mais bla-blá-blá.
- que raio de conversa é essa? – reclamei. – o que todo esse papo quer dizer?
Clóvis respondeu calmamente.
- Que, até que você se case, não poderá tocar em nada que pertenceu ao seu avô.
- O quê? Isso é ridículo! – Sel e eu gritamos juntas.

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E agora o que será da pobre Demetria, o que acharam desse testamento hein.... e o que acharam desse Clóvis?  

2 comentários:

  1. Marcus Vacilou( confundi o nome dele no cap anterior... Vergonhoso :( ) 'Hahahahah Demi avô é esse que te educa até depois da morte, engraçado é que a dor até passa, imagino que sentirá um ódio temporário pelo vovó tadinha.. Estou gostando

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  2. O.o coitada da demi kkkkk, pooosta logo, pleeease <3

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