Ninguém era obrigado a almoçar no refeitório da L&L, mas, apesar de a comida ser intragável, a maioria dos funcionários preferia comer por lá, já que não precisavam pagar pela refeição. Eu também optava pelo almoço grátis, mas naquele dia tinha um candidato para entrevistar e estava com bom pressentimento.
Foi fácil identificar Zack. Ele usava - como havia me avisado previamente - camiseta preta e boné. assim que o avistei, no entanto, minhas expectativas começaram a murchar. Não eram uma camiseta e um boné quaisquer, mas itens promocionais do filme Jornada nas Estrelas.
- Vida longa e próspera - disse ele, estendendo a mão naquele cumprimento nerd esquisito.
- Ok, vamos acabar logo com isso - me joguei na cadeira da lanchonete. Eu tinha pouco tempo e quase nenhuma paciência. - Você mora sozinho?
- Moro. Quer dizer, mais ou menos. Divido o apartamento com dois amig...
- Tchau.
Não era culpa dele que eu já estivesse saturada de caras estranhos. Na verdade, a culpa era toda minha. Eu devia ter especificado no anúncio: malucos, não. Voltei para a L&L mal-humorada e inquieta e permaneci assim até o fim do expediente. Detestava quando meus planos falhavam. Para piorar, Clóvis ligou exigindo que eu voltasse para casa naquele mesmo dia. Depois de eu deixar bem claro que não voltaria - ainda mais agora que eu tinha uma perspectiva de salvação, com a qual ele não podia nem sonhar, - ele apelou para meu bom- senso, dizendo que, caso eu não voltasse e me metesse em confusões de qualquer espécie, ele se recusaria a me ajudar, o que não me surpreendeu. Ainda bem que nunca tive bom-senso.
Apesar disso, a conversa aos berros com Clóvis me deu novo ânimo, então decidi mudar de estratégia com relação aos meus possíveis futuros maridos.
Sel gostou da ideia.
- Quer dizer que você vai primeiro observar e, se não achar o cara normal, vai embora? É mais seguro, eu acho - ela comentou ao telefone, enquanto eu estacionava meu cupê e desligava os faróis para encarar ,mais uma entrevista marital. Dessa vez, na praça de alimentação do shopping.
- Não estou em condições de enfrentar mais um esquisito. Não tenho estrutura pra isso, Sel. Honestamente, acho que ele nem vai notar se eu não aparecer.
E eu não apareci. Nem nesse encontro, nem nos seguintes. Nenhum dos caras parecia remotamente normal a distância. Sel tinha razão - havia sido um erro publicar o anúncio, tive que admitir. Mas eu não podia simplesmente pedir a Nick, meu único quase amigo, que se casasse comigo, não agora que ele estava finalmente saindo com Sel, depois de tantos anos de amor platônico. Ainda que o casamento fosse uma grande encenação, isso acabaria com o romance dos dois, que mal começara.
Eu estava tomando banho, exausta depois de passar a tarde tentando montar uma planilha para Joyce e frustrada por não ter conseguido - qual era o truque para montar aquelas porcarias, afinal? - , quando Sel entrou no banheiro, animada.
Ela afastou bruscamente a cortina de patinhos.
- Um candidato! - sibilou, tapando com a mão o bocal do meu celular. - O que eu falo?
- Fala que eu já encontrei o meu príncipe - revirei os olhos, fechando a cortina.
- Hã... Escuta, você se importa de responder algumas perguntas antes de marcarmos a entrevista pessoalmente? Só para garantir que nenhum de nós vai perder tempo - ela propôs, se passando por mim.
Abri a cortina.
- Sel, o que você está fazendo?
- Marcando um encontro - ela sussurrou.
- Você foi a primeira que me incentivou a desistir desse plano.
- Sim, mas eu senti algo bom vindo desse aqui - ela sorriu, me mostrando o polegar, entusiasmada.
- Maravilha - fechei a cortina abruptamente.
- Certo - continuou ela. - Você mora sozinho? Ótimo. É fã de algum filme ou série de TV? Ah, trabalha demais e não tem muito tempo para isso... - ela enfiou a cabeça dentro do boxe por um pequeno vão e piscou sorridente. - Você tem algum tipo de problema de pele, como caspa ou... Sim, eu seu que boa aparência não é pré-requisito, mas higiene é primordial. -Uma pausa. - Muito bom! Humm... Seu último relacionamento terminou de maneira trágica ou... Ah, você não tem um relacionamento sério há anos. Muito ocupado. Entendo. Bom... acho que é isso. Pode me encontrar amanhã à noite?
Abri a cortina.
- Sel, não! Eu não vou a lug...
- Conheço esse café - continuou ela, me ignorando. - Ok, às sete então. Tchau - e desligou.
- Por que você fez isso? - indaguei revoltada. - Pensei que você achasse que colocar o anúncio tinha sido uma tremenda roubada!
- E foi, mas você não ouviu a voz desse cara - ela suspirou, se apoiando na pia. - Demi, é daquelas que fazem a gente derreter por dentro. Você precisa encontrar esse homem.
- Não, não preciso. O anúncio não foi tão genial assim, ok? Chega de tipos esquisitos.
- Ele não me pareceu esquisito. E o que custa ir, nem que seja pra dar uma olhadinha de longe?
- Eu não vou - teimei.
- Por favor, Demi - ela pediu melosa, os olhos castanhos enormes e brilhantes. - Estou tendo aquele pressentimento. Vai por mim.
- Ah! Aquele pressentimento - zombei, desligando o chuveiro e alcançando a toalha. - Claro. Isso muda tudo. É aquele mesmo pressentimento que você teve quando fomos consultar com Tara, a vidente, e ele disse que você ia encontrar seu grande amor num necrotério? Ou como daquela vez em que você teve certeza, baseada naquele pressentimento, que devia cortar o cabelo em estilo chanel bem curto atrás, pois assim ia conseguir melhores notas na faculdade? Você tomou bomba em anatomia e chorou por meses até seu cabelo crescer.
- Aquilo foi um equívoco. Eu interpretei mal. Mas, se você pensar bem, eu conheci Nicholas no antiquário, que não deixa de ser um necrotério de objetos... - apontou ela.
Revirei os olhos.
- Agora o Nicholas é o amor da sua vida?
- Não! Não sei ainda. Mas vai que... - ela sorriu, um pouco tímida. - Ele é bem legal.
- Eu sei que é... na maior parte do tempo - acrescentei, me enrolando na toalha. - Vocês vão sair de novo?
O sorriso se tornou imenso.
-Ãrrã! cineminha amanhã. Última sessão. E depois ele quer me levar até a casa dele para me mostrar o equipamento de mergulho. Ele está superempolgado com o curso.
- Ah, é? - ergui uma sobrancelha. - Pensei que ele morasse coma irmã.
- E mora. Mas ela vai visitar a sogra no interior. Vai ficar fora por três dias - ela comentou, desviando os olhos.
- E qual é o problema então?
- Bom... não sei se estou pronta pra isso. A gente saiu só uma vez, e depois ele me ligou três ou quatro vezes...
- Oito, mas quem está contando? - dei de ombros, sorrindo.
- Que seja! - ela revirou os olhos. - Mas será que não é um pouco cedo demais? Não quero que ele pense que eu sou...fácil.
- Fácil? Selena! O Nicholas esta de quatro por você há pelo menos dois séculos! Ele foi tão insistente, te convidando esse tempo todo pra sair mesmo sabendo que ia receber um enorme não como resposta. Que bom que tanta teimosia acabou funcionando. Agora, se você está a fim também, qual o problema de deixar rolar o que tiver que rolar? O Nicholas é meio nerd, todo sério. Não acho que ele esteja interessado só em curtição.
- Eu também não - ela confidenciou.
Passei o braço por seus ombros e a apertei ligeiramente.
- Então qual o problema? Vai ser feliz!
Ela mordeu o lábio, parecendo a ponto de quicar no lugar como se tivesse cinco anos, e por um momento acreditei que tinha me safado. Mas então ela sacudiu a cabeça e me deu uma cotovelada nas costelas.
- Ai!
- Você está tentando me enrolar. Não adianta mudar de assunto, Demetria. Você vai encontrar esse cara e está acabado.
- Não vou, não!
Mas eu fui.
Não que eu tivesse a mais remota esperança de encontrar um homem que beirasse a normalidade, fosse apresentável e não tivesse passagem pela polícia. Claro que não. Mas Sel deu um golpe baixo - sequestrou a chave do meu carro e disse que, se eu não fosse encontrar o tal cara, teria que ir trabalhar de
ônibus, porque ela não me daria carona. Diante dessa possibilidade, cedi. De qualquer forma, eu não pretendia falar com o sr. J. - como ele havia se identificado. Apenas uma olhadinha não mataria.
- Ele disse que ia usar terno e gravata e ficar com o jornal nas mãos - ela contou enquanto eu estacionava meu cupê na vaga em frente ao café. - Não deve ser difícil encontrar um homem de roupa social segurando um jornal. Não nesse café.
Apenas suspirei. Descemos do carro. Sel estava super empolgada; eu, nem tanto.
O café, o mesmo em que me encontrara com Chris, o sr. Caspa, ficava numa esquina, e grande parte da fachada era composta de vidros escuros. Sel examinou descaradamente o interior do estabelecimento através da janela, colando-se ao vidro sem se importar com os olhares reprovadores dos clientes que entravam ali.
- Achei! Ele está ali. Ai, meu Deus, ele é lindo! Mais que lindo, ele é um tesão! - ela exclamou.
- Isso não importa. Ele parece normal? - questionei sem ânimo.
- Normal? Como um homem desses pode ser normal? Imponente, um ar rústico, testosterona pura. Olha aquele queixo! - gemeu ela.
A curiosidade me venceu. Virei-me para procurá-lo, mas o reflexo no vidro fumê atrapalhava.
- Onde? - eu me grudei ao vidro como uma ventosa.
- Ali! - ela apontou para uma mesa num canto.
Quase tive um treco quando vi o candidato a meu marido. Dei dois passos para trás, me afastando da vidraça, o coração quase saindo pela boca. O sr. J. tinha a pele levemente bronzeada, cabelos escuros um pouco longos com reflexos dourados nas pontas e incríveis olhos verdes. E eu sabia que, de perto, aquelas íris, já não tão hostis, tinham pequenas manchas amarelas que as deixavam hipnotizantes como um caleidoscópio.
- Ah, não! - exclamei em pânico. - Ele não!
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