segunda-feira, 3 de março de 2014

Amigas Para Sempre Capítuo 6

Seis
Pelos três anos seguintes, elas trocaram cartas religiosamente. Isso se tornou mais do que uma tradição, uma espécie de dependência. Todo domingo à noite, Demi se sentava diante da escrivaninha de seu quarto rosa e lilás de menina e derramava seus pensamentos, sonhos e frustrações numa folha de caderno. Às vezes escrevia sobre coisas que não tinham importância – o corte de cabelo à la Farrah Fawcett que havia feito e que a deixara linda, o vestido que usara no baile de formatura do ginásio –, mas, de vez em quando, ela falava de assuntos mais profundos e contava a Selly sobre as vezes em que não conseguia dormir ou sobre como sonhava com a mãe voltando e dizendo que sentia orgulho dela. Quando seu avô morreu, foi a Selena que Demi recorreu. Ela não havia chorado por ele até receber o telefonema da melhor amiga que começou com “Ah, Sel, eu sinto muito”. Pela primeira vez na vida, Demi não estava mentindo ou dourando a pílula (bem, não muito). A maior parte do tempo era
simplesmente ela mesma, e isso bastava para Sel. Agora era o verão de 1977. Em poucos meses, as duas estariam no último ano, cada uma em sua escola. E hoje era o dia para o qual Demi vinha se preparando havia meses. Finalmente, ela iria começar a percorrer o caminho que a Sra. Gomez havia mostrado a ela fazia tantos anos. Ser a próxima Jean Enerson. Aquelas palavras haviam se tornado seu mantra, um código secreto que abrigava a enormidade de seu sonho e fazia com que ele parecesse possível. As sementes daquele sonho, plantadas tanto tempo antes na cozinha da casa de Snohomish, brotaram sem poda e fincaram raízes no fundo do seu coração. Ela não havia se dado conta de quanto precisava de um sonho. Mas ele a transformara, 􀙼zera com que a pobre Demi abandonada e sem mãe virasse uma  menina pronta para ganhar o mundo. Ter um objetivo tornara sua história de vida desimportante, dera a ela algo para buscar, algo em que se apegar. E isso orgulhava a Sra. Gomez. Ela sabia disso pelas cartas. Sabia também que Sel compartilhava esse sonho com ela. As duas seriam repórteres juntas, indo atrás
de histórias e as escrevendo. Uma equipe. Agora ela estava parada na calçada olhando fixamente para o prédio diante de si, sentindo-se como uma assaltante de banco olhando para o Fort Knox. Surpreendentemente, a afiliada da ABC, apesar de todo poder e glória, ficava num pequeno prédio nos arredores do centro da cidade. Não tinha uma vista que chamasse atenção, nenhuma parede impressionante de janelões ou um saguão repleto de obras de arte. Na verdade, havia um balcão de recepção
em forma de L, uma recepcionista bonitinha e um trio de cadeiras mostarda de plástico. Demi respirou fundo, endireitou os ombros e entrou no prédio. Apresentou se à recepcionista e se sentou numa cadeira perto da parede. Cuidou para não se remexer nem bater com os pés no chão durante a longa espera pela entrevista.
Nunca se sabe quem está olhando.
– Srta. Lovato? – chamou a recepcionista, afinal, olhando para ela. – Ele vai recebê-la agora.
Demi deu um sorriso ensaiado para as câmeras e se levantou.
– Obrigada.
Acompanhou a recepcionista até outra sala de espera.
Lá, viu-se diante do homem para quem vinha escrevendo todas as semanas havia quase um ano.
– Olá, Sr. Rorbach – cumprimentou-o, apertando sua mão. – É um prazer finalmente conhecê-lo.
Ele parecia cansado. E mais velho do que ela esperava também. Tinha uns poucos fios de cabelos, grisalhos avermelhados, na careca reluzente, e nenhum deles estava onde deveria. O terno azul-claro tinha detalhes pespontados.
– Venha até a minha sala, Srta. Lovato.
– Sra. Lovato – corrigiu ela.
Era sempre melhor começar com o pé direito. Gloria Steinem não era apenas jornalista, mas também feminista, e dizia que não se consegue respeito sem exigi-lo.
O Sr. Rorbach olhou para ela um tanto perplexo.
– Perdão?
– Prefiro que me chame de senhora, se não se importar, e sei que não se importa. Como alguém com diploma em literatura inglesa de Georgetown poderia ser resistente a mudanças? Tenho certeza de que o senhor é bastante avançado em termos de consciência social. Posso ver em seus olhos. Aliás, gostei dos seus óculos.
Ele a encarou boquiaberto por alguns segundos antes de parecer se lembrar de onde estava.
– Venha comigo, Sra. Lovato.
Ele a guiou pelo corredor branco sem graça até a última porta de madeira falsa à esquerda, que abriu. Era uma pequena sala de quina, com uma janela que dava para o elevado de cimento feito para o monotrilho. As paredes eram completamente nuas. Demi se sentou numa cadeira preta dobrável localizada diante da mesa dele. O Sr. Rorbach se sentou e a encarou.
– Cento e doze cartas, Sra. Lovato – começou ele, e bateu com o dedo sobre o grosso arquivo de papel pardo em cima da mesa.
Ele havia guardado todas as cartas que ela mandara. Isso devia significar alguma coisa. Ela puxou da pasta a última versão do seu currículo e a colocou em cima da mesa.
– Vai perceber que o jornal da escola diversas vezes destacou meus trabalhos na primeira página. Além disso, incluí um artigo mais sério sobre o terremoto na Guatemala, uma atualização sobre Karen Ann Quinlan e um olhar sentimentalista sobre os últimos dias de Freddy Prinze. Estou certa de que eles demonstrarão a minha capacidade.
– Você tem 17 anos.
– Sim.
– No mês que vem, vai começar o último ano do colegial.
Todas aquelas cartas funcionaram. Ele sabia tudo a respeito dela.
– Exatamente. Acho que esta é uma boa pauta, aliás. O último ano de escola, a turma de 1978. Talvez possamos fazer reportagens mensais sobre o que realmente acontece atrás das portas de um colégio local. Tenho certeza de que seus telespectadores…
– Sra. Lovato – falou ele, e apoiou o queixo nos dedos, olhando para Demi.
Ela ficou com a impressão de que ele estava se esforçando para não rir.
– Sim, Sr. Rorbach?
– Esta é uma afiliada da ABC, pelo amor de Deus. Nós não contratamos alunos do colegial.
– Mas vocês têm estagiários.
– Da Universidade de Washington e de outras faculdades. Nossos estagiários sabem como funciona uma emissora de TV. A maioria já trabalhou nas TVs universitárias. Eu sinto muito, mas você simplesmente não está pronta ainda.
– Ah.
Os dois ficaram se encarando.
– Eu estou neste trabalho há tempos, Sra. Lovato, e poucas vezes vi alguém com tanta ambição quanto você – disse ele, e voltou a bater na pasta com suas cartas. – Vamos fazer o seguinte: você continua me mandando seus textos, e eu ficarei atento.
– Então, quando eu estiver pronta para ser repórter, o senhor vai me contratar?
Ele deu risada.
– Continue me mandando os textos. E tire boas notas e entre na faculdade, está bem? Depois a gente vê.
Demi voltou a se sentir animada.
– Vou lhe mandar uma atualização por mês. O senhor vai me contratar um dia, Sr. Rorbach. O senhor vai ver.
– Eu não apostaria no contrário, Lovato.
Os dois conversaram por mais alguns instantes, então o Sr. Rorbach a levou até a saída. A caminho da escada, ele parou diante da estante de troféus, onde vários Emmys e outros prêmios de jornalismo cintilavam.
– Um dia, eu vou ganhar um Emmy – disse ela, tocando a vitrine com as pontas dos dedos.
Ela se recusava a se deixar abater por aquele contratempo. E era apenas isso: um contratempo.
– Sabe de uma coisa, Demetria Lovato? Eu acredito em você. Agora vá para o colegial e aproveite seu último ao de escola. A vida real chega rápido demais.
Do lado de fora, o visual era o de um cartão-postal de Seattle: o tipo de dia com céu azul e sem nuvens que levava as pessoas a venderem suas casas em lugares mais sem graça e menos espetaculares para se mudarem para lá. Se soubessem como aqueles verões de Seattle eram curtos… Chegavam com muita rapidez naquela parte do mundo e iam embora com a mesma velocidade.
Segurando a pasta de couro pesada contra o peito como um escudo, ela subiu a rua até a parada de ônibus. Num elevado acima da cabeça dela, o monotrilho passou trovejando e fez o chão tremer. No caminho para casa, ficou dizendo para si mesma que na realidade aquela seria uma oportunidade. Agora ela poderia provar seu valor na faculdade e conseguir um emprego ainda melhor. Mas, por mais que ela tentasse reformular o que havia acontecido, não conseguia deixar de ter a sensação de que havia fracassado. Quando chegou em casa, estava se sentindo menor, com os ombros pesados. Abriu a porta da frente e entrou, atirando a pasta de couro em cima da mesa da cozinha.
Na sala, sua avó estava sentada no velho sofá surrado, descansando os pés sobre o pufe de veludo, com um bordado inacabado no colo. Dormia, roncando baixinho. Ao ver a avó, Demi precisou forçar um sorriso.
– Oi, Vovó – disse ela baixinho, entrando na sala e se abaixando para tocar a mão nodosa e sentar ao lado dela.
A avó acordou lentamente. Atrás das lentes grossas dos óculos de armação antiquada, seu olhar confuso clareou.
– Como foi?
– O diretor-assistente de jornalismo achou que eu era qualificada demais, acredita? Ele disse que o cargo seria um beco sem saída para alguém com a minha capacidade.
A Vovó apertou a mão dela.
– Você é jovem demais, é?
As lágrimas que ela estava segurando arderam em seus olhos. Encabulada, ela as limpou com as mãos.
– Eu sei que vão me oferecer um emprego assim que eu entrar na faculdade. Você vai ver só. Vai sentir orgulho de mim.
A avó lhe deu o olhar de Pobre Demi:
– Eu já sinto orgulho de você. É a atenção da Diana que você quer.
Demi se apoiou no ombro magro da avó e se deixou ser abraçada. Sabia que, em alguns instantes, a dor diminuiria de novo, como uma queimadura de sol que se curava sozinha e deixava a pele ligeiramente mais resistente.
– Eu tenho a senhora, Vovó. Então ela não tem importância.
A avó deu um suspiro cansado.
– Por que não liga para a sua amiga Selly? Só não fique muito tempo. É caro.
A simples ideia de conversar com Selena deixou Demi mais animada. Com o preço das chamadas interurbanas, as duas raramente falavam ao telefone.
– Obrigada, Vovó. Vou ligar.
Na semana seguinte, Demi conseguiu um emprego no Queen Anne Bee , o jornal semanal do bairro em que morava. Suas funções estavam bem de acordo com o salário miserável que lhe pagavam por hora, mas ela não se importava. Ela estava no mercado de trabalho. Passou quase todas as horas em que estava
acordada no verão de 1977 na redação pequena e apertada, absorvendo todo e qualquer conhecimento que pudesse. Quando não estava na cola dos repórteres, fazendo cópias ou servindo café, estava em casa, jogando cartas com a avó. Toda noite de domingo, sem falta, ela escrevia a Selena e contava os mínimos
detalhes da semana. Sentada diante da escrivaninha de criança que tinha no quarto, releu a carta de oito páginas daquela semana, assinou Melhores amigas para sempre, Demi e dobrou em três os papéis, cuidadosamente. Sobre a escrivaninha, a encarava o último cartão-postal de Sel, que estava no acampamento anual de férias da família Gomez. Selena chamava a viagem de Semana Infernal com Mosquitos, mas Demi tinha inveja de cada momento, tudo aquilo lhe parecia perfeito. Ela desejava desesperadamente que tivesse podido ir com eles. Recusar o convite havia sido uma das coisas mais difíceis que já fizera. Mas com seu emprego de verão – a que dava tanta importância – e a saúde debilitada da avó, não tivera muita escolha, na verdade. Ela olhou para o bilhete da amiga, relendo as palavras que já havia decorado. Jogando cartas à noite, assando marshmallow, nadando no lago congelado…
Ela se obrigou a desviar o olhar. Não adiantava nada se consumir pelo que não se podia ter. Seus dias com Nuvem lhe ensinaram isso. Ela colocou a carta num envelope, escreveu nele o endereço, e então desceu para conferir como estava a avó, que já havia caído no sono. Sozinha, Demi assistiu a seus programas preferidos de domingo à noite, depois trancou a casa e foi para a cama. O último pensamento que teve ao cair no sono lentamente foi imaginar o que os Gomez estariam fazendo. Na manhã seguinte, ela acordou no horário de sempre, às seis, e se vestiu para trabalhar. Às vezes, quando chegava bem cedo à redação, um dos repórteres a deixava ajudar com as matérias do dia. Ela seguiu às pressas até o quarto da avó e bateu à porta. Embora detestasse acordá-la, era a regra da casa. Não se saía sem se despedir.
– Vovó?
Ela bateu novamente e abriu a porta devagar, chamando:
– Vovó… estou indo trabalhar.
Suaves sombras de lavanda cobriam os peitoris das janelas. Os bordados emoldurados que decoravam as paredes eram caixas sem forma.
A avó de Demi estava deitada na cama. Mesmo da porta, ela podia ver sua silhueta, os cachos dos cabelos brancos, as pregas da camisola… e a imobilidade de seu peito.
– Vovó?
Ela deu um passo para a frente e tocou o rosto aveludado e enrugado da avó. A pele estava gelada. Nenhum ar saía dos lábios frouxos. O mundo de Demi pareceu sair do prumo, escorregar para fora das bases. Precisou juntar todas as suas forças para ficar ali parada, olhando para o rosto sem vida da avó. No começo, suas lágrimas rolaram quentes, demorando para se formar. Era como se cada uma delas fosse de sangue e tão espessa que não passaria pelos canais lacrimais. As lembranças vieram à sua mente como um caleidoscópio: a avó trançando seus cabelos para o aniversário de 7 anos, dizendo que sua mãe poderia aparecer se ela rezasse bastante e, anos mais tarde, admitindo que às vezes Deus não respondia às preces de menininhas, ou de mulheres também. Ou então as duas jogando cartas na semana anterior, dando risada quando ela pegou todo o descarte – de novo – dizendo: “Demi, você não precisa ter todas as cartas, o tempo todo…”, ou lhe dando gentilmente um beijo de boa-noite. Ela não fazia ideia de quanto tempo ficara ali parada, mas quando se inclinou para a frente e beijou o rosto enrugado da avó, a luz do sul estava entrando através das cortinas finas, iluminando o quarto. A claridade surpreendeu Demi. Sem sua avó, parecia que aquele quarto deveria ser escuro.
– Vamos lá, Demi – disse ela.
Tinha coisas a fazer agora, sabia disso. Ela e a avó haviam conversado sobre isso, haviam cuidado do que Demi deveria fazer. Ela tinha certeza, porém, de que nenhuma palavra poderia tê-la preparado para aquilo.
Ela foi até a mesa de cabeceira da avó, onde havia uma bonita caixa de jacarandá embaixo da foto de seu avô, ao lado da enorme quantidade de remédios. Levantou a tampa sentindo-se meio ladra, mas a avó esperava que ela fizesse isso. Quando eu for para casa , sua avó sempre dizia, vou lhe deixar uma coisa na caixa que o vovô comprou para mim. Lá dentro, em cima do monte de bijuterias baratas que Demi mal lembrava de ver a avó usando, estava um papel cor-de-rosa dobrado com o nome de Demi escrito.
Lentamente, pegou a carta e a abriu.
Minha adorada Demi,
eu sinto muito. Sei quanto você tem medo de ficar sozinha ou de ser deixada para trás, mas Deus tem um plano para cada um de nós. Eu teria ficado mais tempo com você se pudesse. Seu avô e eu sempre estaremos olhando por você do Céu. Você nunca vai estar sozinha se acreditar nisso. Você foi a maior alegria da minha vida.
Com amor,
Vovó
Foi. A avó não estava mais com ela.
Demi ficou parada do lado de fora da igreja observando o fluxo de pessoas mais velhas passar por ela. Algumas das amigas de sua avó a reconheceram e foram lhe dar as condolências.
Eu sinto muito, querida…
… mas ela está num lugar melhor…
… com seu amado Winston.
… não gostaria que você chorasse.
Ela aceitou o máximo que pôde daquilo porque sabia que a avó iria querer isso, mas, perto das onze horas, estava prestes a gritar. Será que nenhuma daquelas pessoas bem-intencionadas via ou se dava conta de que Demi era uma menina de 17 anos vestida de preto e completamente sozinha no mundo?
Se ao menos Selly e os Gomez estivessem lá, mas ela não fazia ideia de como entrar em contato com eles no Canadá. E como eles só chegariam em casa dentro de dois dias, ela precisava passar por aquilo sozinha. Com eles ao seu lado, como uma família, talvez ela conseguisse chegar ao fim da cerimônia. Sem eles, ela simplesmente não suportou. Em vez de ficar assistindo às terríveis e desoladoras lembranças da avó, ela se levantou na metade do funeral e foi embora.
Do lado de fora, sob o sol quente de agosto, conseguiu respirar novamente, embora as lágrimas estivessem sempre perto da superfície, assim como a pergunta sem sentido: “Como você pôde me deixar assim?” Cercada por carros velhos empoeirados, ela tentou não chorar. Mais do que tudo, tentou não se lembrar ou se preocupar com o que iria acontecer com ela. Perto dali, um galho se partiu, e o barulho fez Demi erguer os olhos. A primeira coisa que viu foram os carros estacionados aleatoriamente.
Então a avistou.
Perto do limite do terreno, onde uma fileira de enormes árvores marcavam o começo do parque da cidade, Nuvem estava parada à sombra, fumando um cigarro. Usava uma velha calça boca de sino de veludo cotelê e uma bata suja, cercada por um muro de cabelos castanhos arrepiados. Parecia extremamente magra. O advogado devia ter conseguido encontrá-la… e ela aparecera!
Demi não conseguiu evitar o pequeno salto de alegria em seu coração. Afinal, ela não estava sozinha. Nuvem podia ser meio maluca, mas tinha voltado quando os problemas apareceram. Demi correu para ela, sorrindo. Iria perdoar a mãe por todos os anos perdidos, todo o abandono. O que importava era que estava ali agora, quando Demi mais precisava dela.
– Graças a Deus você está aqui – disse ela, parando, sem fôlego. – Estou precisando de você.
A mãe se atirou na direção dela, rindo ao quase cair.
– Você é um belo espírito, Demi. Tudo o que precisa é de ar e liberdade.
Demi sentiu um frio no estômago.
– De novo não – disse ela, implorando por ajuda com os olhos.
– Sempre.
A voz de Nuvem tinha um tom duro agora, uma precisão que desmentia a expressão vidrada em seus olhos.
– Eu sou sangue do seu sangue e estou precisando de você. Sem você, vou ficar sozinha.
Demi sabia que estava sussurrando, mas não conseguiu dar um volume maior à própria voz. Nuvem tropeçou. A tristeza nos olhos dela era inequívoca, mas Demi não se importava. As pseudo emoções de sua mãe iam e vinham como o sol em Seattle.
– Olhe para mim, Demi.
– Estou olhando.
– Não. Preste atenção. Eu estou acabada. Não posso ajudar você.
– Mas eu preciso de você.
– Esta é a porra da tragédia – disse sua mãe, dando uma longa tragada no baseado e soltando a fumaça alguns segundos depois.
– Por quê? – perguntou Demi.
Ela ia acrescentar você não me ama? , mas antes que pudesse transformar a dor em palavras, o funeral terminou e uma pequena multidão de pessoas vestidas de preto encheu o estacionamento. Demi olhou para o lado por um instante – apenas pelo tempo necessário para secar suas lágrimas e, quando olhou de volta, a mãe não estava mais lá.
A assistente social foi seca. Tentava dizer as palavras certas, mas Demi percebeu que ela não parava de olhar para o relógio enquanto esperava à porta. Demi estava arrumando a mala.
– Ainda não entendo por que preciso ir. Eu tenho quase 18 anos. A minha avó já quitou a hipoteca da casa. Eu sei porque fui eu quem pagou as contas este ano. Tenho idade suficiente para morar sozinha.
– O advogado está nos esperando – foi a única resposta da mulher. – Ainda falta muito?
Demi guardou a pilha de cartas de Selena na mala, puxou a tampa e a fechou. Como não conseguiu formar as palavras estou pronta , apenas pegou a mala, atirou a bolsa de macramê no ombro e se dirigiu até a porta.
– Ótimo – disse a mulher, virando-se rapidamente e percorrendo o corredor. Demi lançou mais um último e demorado olhar para o quarto, percebendo como se pela primeira vez, coisas que havia deixado passar durante anos: os lençóis amarrotados lilás e branco da cama de solteiro, a fileira de cavalos de plástico – agora empoeirados – no peitoril da janela, a boneca em cima da cômoda e a caixa de joias da Miss América com a bailarina cor de rosa em cima. Vovó havia decorado aquele quarto para a menininha que fora largada ali tantos anos antes. Cada item havia sido escolhido com cuidado, mas agora todos seriam encaixotados e armazenados no escuro, junto com as lembranças que traziam. Demi se perguntou quanto tempo levaria para que pudesse pensar na avó sem chorar. Ela fechou a porta atrás de si e seguiu a mulher pela casa agora em silêncio.
Desceu os degraus da entrada até a rua, onde um velho Ford amarelo as aguardava.
– Ponha a sua mala atrás.
Demi fez o que lhe foi dito e sentou no banco do carona.
Quando a mulher ligou o carro, o som começou a tocar num volume ensurdecedor. Era “Don’t Give up on Us”, de David Soul. Que ironia: “não desista de nós”. A mulher imediatamente abaixou o som, murmurando:
– Desculpe.
Demi achou que aquela música valia o pedido de desculpas tanto quanto qualquer outra, então só encolheu os ombros e ficou olhando pela janela.
– Sinto muito por sua avó, se ainda não disse isso.
Demi ficou olhando para seu reflexo esquisito na janela. Era como olhar para uma versão em negativo de seu rosto, sem cor e sem nada por dentro. Era como estava se sentindo, na verdade.
– Pelo que dizem, ela foi uma mulher excepcional.
Demi não respondeu. Não conseguia falar direito, de qualquer maneira. Desde o encontro com a mãe, ela estava seca, vazia.
– Bem, chegamos.
Estavam estacionadas diante de uma casa vitoriana bem cuidada em Ballard.
Uma placa pintada à mão na frente dizia BAKER E MONTGOMERY, ADVOGADOS. Demi levou um instante para sair do carro. Quando saiu, a mulher estava lhe dando um sorriso suave e compreensivo.
– Você não precisa levar a sua mala.
– Eu prefiro levar, obrigada.
Se havia algo que Demi compreendia era a importância de uma mala feita. A mulher assentiu e a guiou pelo caminho cimentado com veios de grama até a porta branca de entrada. Dentro do espaço extremamente singular, ela se sentou no saguão, perto da mesa de recepção vazia. Desenhos bonitinhos de crianças de olhos arregalados enfeitavam as paredes cobertas de papel de parede estampado. Exatamente às quatro horas, um homem gorducho, careca e de óculos com aro grosso foi até elas.
– Olá, Demetria. Eu sou Elmer Baker, o advogado da sua avó.
Demi o seguiu até uma sala pequena no andar de cima com duas poltronas e uma antiga mesa de mogno com muitos blocos de anotação amarelos. No canto, um ventilador zunia, mandando ar quente na direção da porta. A assistente social se acomodou junto à janela.
– Aqui. Aqui. Sente-se, por favor – disse ele, indo até a própria cadeira, atrás da mesa elegante. – Agora, Demetria…
– Demi – corrigiu ela baixinho.
– Muito bem. Eu me lembro de Ima dizer que você preferia Demi.
Ele pôs os cotovelos em cima da mesa e se inclinou para a frente. Seus olhos saltados piscavam ampliados pelas lentes grossas dos óculos.
– Como você sabe, sua mãe se recusou a ficar com a sua custódia.
Demi usou todas as suas forças para assentir, embora na noite anterior ela tivesse ensaiado todo um monólogo sobre como deveria ter autorização para morar sozinha. Agora, ali, ela se sentia pequena e jovem demais.
– Eu sinto muito – disse ele, numa voz gentil.
Demi chegou a se encolher com essas palavras. Havia começado a
verdadeiramente desprezar aquele sentimento idiota e inútil.
– É – disse ela, cerrando os punhos na lateral do corpo.
– A Sra. Gulligan encontrou uma ótima família para você. Você será uma de várias adolescentes sob os cuidados dela. A melhor notícia é que você poderá continuar na mesma escola. Tenho certeza de que ficará feliz com isso.
– Felicíssima.
O Sr. Baker pareceu momentaneamente desconcertado pela resposta.
– Certo. Agora, quanto à sua herança: Ima deixou todos os bens, duas casas, um carro, contas bancárias e ações, para você. Ela deixou instruções para que você mantenha os pagamentos mensais à filha, Diana. Sua avó acreditava que essa era a melhor e única forma de saber por onde ela andava. Diana se mostrou bastante propensa a entrar em contato quando há dinheiro em questão.
Ele limpou a garganta.
– Agora… se vendermos as duas casas, você não vai precisar se preocupar com dinheiro por um bom tempo. Podemos cuidar para…
– Mas daí eu não vou ter onde morar.
– Eu sinto muito quanto a isso, mas Ima foi bastante clara nesse sentido. Ela queria que você pudesse entrar para qualquer universidade que escolhesse – explicou, e, olhando para ela, disse: – Você vai ganhar o Pulitzer um dia. Pelo menos foi o que ela me falou.
Demi não podia acreditar que ia chorar de novo, e na frente daquelas pessoas. Levantou-se num salto.
– Preciso ir ao toalete.
O Sr. Baker franziu a testa pálida.

– Ah, sim. Claro. Lá embaixo. A primeira porta à esquerda da entrada. Demi se levantou, pegou a mala e saiu hesitante da sala. No corredor, fechou a porta atrás de si e se encostou na parede, tentando não chorar. Ser alojada na casa de estranhos não podia ser o futuro dela. Ela olhou para o pulso, para o relógio comemorativo do bicentenário da independência do país. Os Gomez estariam em casa no dia seguinte.

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