Seis
Pelos três anos seguintes,
elas trocaram cartas religiosamente. Isso se tornou mais do que uma tradição,
uma espécie de dependência. Todo domingo à noite, Demi se sentava diante da
escrivaninha de seu quarto rosa e lilás de menina e derramava seus pensamentos,
sonhos e frustrações numa folha de caderno. Às vezes escrevia sobre coisas que
não tinham importância – o corte de cabelo à la Farrah Fawcett que havia feito
e que a deixara linda, o vestido que usara no baile de formatura do ginásio –,
mas, de vez em quando, ela falava de assuntos mais profundos e contava a Selly
sobre as vezes em que não conseguia dormir ou sobre como sonhava com a mãe
voltando e dizendo que sentia orgulho dela. Quando seu avô morreu, foi a Selena
que Demi recorreu. Ela não havia chorado por ele até receber o telefonema da
melhor amiga que começou com “Ah, Sel, eu sinto muito”. Pela primeira vez na
vida, Demi não estava mentindo ou dourando a pílula (bem, não muito). A maior
parte do tempo era
simplesmente ela mesma, e
isso bastava para Sel. Agora era o verão de 1977. Em poucos meses, as duas
estariam no último ano, cada uma em sua escola. E hoje era o dia para o qual Demi
vinha se preparando havia meses. Finalmente, ela iria começar a percorrer o
caminho que a Sra. Gomez havia mostrado a ela fazia tantos anos. Ser a próxima
Jean Enerson. Aquelas palavras haviam se tornado seu mantra, um código secreto
que abrigava a enormidade de seu sonho e fazia com que ele parecesse possível.
As sementes daquele sonho, plantadas tanto tempo antes na cozinha da casa de Snohomish,
brotaram sem poda e fincaram raízes no fundo do
seu coração. Ela não havia se dado conta de quanto precisava de um sonho. Mas ele
a transformara, zera com que a pobre Demi
abandonada e sem mãe virasse uma menina
pronta para ganhar o mundo. Ter um objetivo tornara sua história de vida
desimportante, dera a ela algo para buscar, algo em que se apegar. E isso orgulhava
a Sra. Gomez. Ela sabia disso pelas cartas. Sabia também que Sel compartilhava
esse sonho com ela. As duas seriam repórteres juntas, indo atrás
de histórias e as
escrevendo. Uma equipe. Agora ela estava parada na calçada olhando fixamente para o prédio diante de si, sentindo-se como uma
assaltante de banco olhando para o Fort Knox. Surpreendentemente, a afiliada da ABC, apesar de todo poder e glória, ficava num pequeno prédio nos arredores do centro da cidade. Não
tinha uma vista que chamasse atenção, nenhuma parede impressionante de janelões
ou um saguão repleto de obras de arte. Na verdade, havia um balcão de recepção
em forma de L, uma
recepcionista bonitinha e um trio de cadeiras mostarda de plástico. Demi
respirou fundo, endireitou os ombros e entrou no prédio. Apresentou se à
recepcionista e se sentou numa cadeira perto da parede. Cuidou para não se remexer
nem bater com os pés no chão durante a longa espera pela entrevista.
Nunca se sabe quem está
olhando.
– Srta. Lovato? – chamou a
recepcionista, afinal, olhando para ela. – Ele vai recebê-la agora.
Demi deu um sorriso
ensaiado para as câmeras e se levantou.
– Obrigada.
Acompanhou a recepcionista
até outra sala de espera.
Lá, viu-se diante do homem
para quem vinha escrevendo todas as semanas havia quase um ano.
– Olá, Sr. Rorbach –
cumprimentou-o, apertando sua mão. – É um prazer finalmente conhecê-lo.
Ele parecia cansado. E mais
velho do que ela esperava também. Tinha uns poucos fios de cabelos, grisalhos avermelhados, na careca reluzente, e
nenhum deles estava onde deveria. O terno azul-claro tinha detalhes
pespontados.
– Venha até a minha sala,
Srta. Lovato.
– Sra. Lovato – corrigiu
ela.
Era sempre melhor começar
com o pé direito. Gloria Steinem não era apenas jornalista, mas também
feminista, e dizia que não se consegue respeito sem exigi-lo.
O Sr. Rorbach olhou para
ela um tanto perplexo.
– Perdão?
– Prefiro que me chame de senhora, se não se importar, e sei que não se importa.
Como alguém com diploma em literatura inglesa de Georgetown poderia ser
resistente a mudanças? Tenho certeza de que o senhor é bastante avançado em
termos de consciência social. Posso ver em seus olhos. Aliás, gostei dos seus
óculos.
Ele a encarou boquiaberto
por alguns segundos antes de parecer se lembrar de onde estava.
– Venha comigo, Sra. Lovato.
Ele a guiou pelo corredor
branco sem graça até a última porta de madeira falsa à esquerda, que abriu. Era
uma pequena sala de quina, com uma janela que dava para o elevado de cimento
feito para o monotrilho. As paredes eram completamente nuas. Demi se sentou
numa cadeira preta dobrável localizada diante da mesa dele. O Sr. Rorbach se
sentou e a encarou.
– Cento e doze cartas, Sra.
Lovato – começou ele, e bateu com o dedo sobre o grosso arquivo de papel pardo
em cima da mesa.
Ele havia guardado todas as
cartas que ela mandara. Isso devia significar alguma
coisa. Ela puxou da pasta a última versão do seu currículo e a colocou em cima
da mesa.
– Vai perceber que o jornal
da escola diversas vezes destacou meus trabalhos na primeira página. Além
disso, incluí um artigo mais sério sobre o terremoto na Guatemala, uma
atualização sobre Karen Ann Quinlan e um olhar sentimentalista sobre os últimos
dias de Freddy Prinze. Estou certa de que eles demonstrarão a minha capacidade.
– Você tem 17 anos.
– Sim.
– No mês que vem, vai
começar o último ano do colegial.
Todas aquelas cartas
funcionaram. Ele sabia tudo a respeito dela.
– Exatamente. Acho que esta
é uma boa pauta, aliás. O último ano de escola, a turma de 1978. Talvez
possamos fazer reportagens mensais sobre o que realmente acontece atrás das
portas de um colégio local. Tenho certeza de que seus telespectadores…
– Sra. Lovato – falou ele,
e apoiou o queixo nos dedos, olhando para Demi.
Ela ficou com a impressão
de que ele estava se esforçando para não rir.
– Sim, Sr. Rorbach?
– Esta é uma afiliada da
ABC, pelo amor de Deus. Nós não contratamos alunos do colegial.
– Mas vocês têm
estagiários.
– Da Universidade de
Washington e de outras faculdades. Nossos estagiários sabem como funciona uma
emissora de TV. A maioria já trabalhou nas TVs universitárias. Eu sinto muito,
mas você simplesmente não está pronta ainda.
– Ah.
Os dois ficaram se
encarando.
– Eu estou neste trabalho
há tempos, Sra. Lovato, e poucas vezes vi alguém com tanta ambição quanto você
– disse ele, e voltou a bater na pasta com suas cartas. – Vamos fazer o
seguinte: você continua me mandando seus textos, e eu ficarei atento.
– Então, quando eu estiver
pronta para ser repórter, o senhor vai me contratar?
Ele deu risada.
– Continue me mandando os
textos. E tire boas notas e entre na faculdade, está bem? Depois a gente vê.
Demi voltou a se sentir
animada.
– Vou lhe mandar uma
atualização por mês. O senhor vai me contratar um dia, Sr. Rorbach. O senhor
vai ver.
– Eu não apostaria no
contrário, Lovato.
Os dois conversaram por
mais alguns instantes, então o Sr. Rorbach a levou até a saída. A caminho da
escada, ele parou diante da estante de troféus, onde vários Emmys e outros
prêmios de jornalismo cintilavam.
– Um dia, eu vou ganhar um
Emmy – disse ela, tocando a vitrine com as pontas dos dedos.
Ela se recusava a se deixar
abater por aquele contratempo. E era apenas isso: um contratempo.
– Sabe de uma coisa, Demetria
Lovato? Eu acredito em você. Agora vá para o colegial e aproveite seu último ao
de escola. A vida real chega rápido demais.
Do lado de fora, o visual
era o de um cartão-postal de Seattle: o tipo de dia com céu azul e sem nuvens
que levava as pessoas a venderem suas casas em lugares mais sem graça e menos
espetaculares para se mudarem para lá. Se soubessem como aqueles verões de
Seattle eram curtos… Chegavam com muita rapidez naquela parte do mundo e iam
embora com a mesma velocidade.
Segurando a pasta de couro
pesada contra o peito como um escudo, ela subiu a rua até a parada de ônibus.
Num elevado acima da cabeça dela, o monotrilho passou trovejando e fez o chão
tremer. No caminho para casa, ficou dizendo para si mesma que na realidade
aquela seria uma oportunidade. Agora ela poderia provar seu valor na faculdade
e conseguir um emprego ainda melhor. Mas, por mais que ela tentasse reformular
o que havia acontecido, não conseguia deixar de ter a sensação de que havia
fracassado. Quando chegou em casa, estava se sentindo menor, com os ombros
pesados. Abriu a porta da frente e entrou, atirando a pasta de couro em cima da
mesa da cozinha.
Na sala, sua avó estava
sentada no velho sofá surrado, descansando os pés sobre o pufe de veludo, com
um bordado inacabado no colo. Dormia, roncando baixinho. Ao ver a avó, Demi
precisou forçar um sorriso.
– Oi, Vovó – disse ela
baixinho, entrando na sala e se abaixando para tocar a mão nodosa e sentar ao
lado dela.
A avó acordou lentamente.
Atrás das lentes grossas dos óculos de armação antiquada, seu olhar confuso
clareou.
– Como foi?
– O diretor-assistente de
jornalismo achou que eu era qualificada demais, acredita? Ele
disse que o cargo seria um beco sem saída para alguém com a minha capacidade.
A Vovó apertou a mão dela.
– Você é jovem demais, é?
As lágrimas que ela estava
segurando arderam em seus olhos. Encabulada, ela as limpou com as mãos.
– Eu sei que vão me
oferecer um emprego assim que eu entrar na faculdade. Você vai ver só. Vai
sentir orgulho de mim.
A avó lhe deu o olhar de
Pobre Demi:
– Eu já sinto orgulho de
você. É a atenção da Diana que você quer.
Demi se apoiou no ombro
magro da avó e se deixou ser abraçada. Sabia que, em alguns instantes, a dor
diminuiria de novo, como uma queimadura de sol que se curava sozinha e deixava
a pele ligeiramente mais resistente.
– Eu tenho a senhora, Vovó.
Então ela não tem importância.
A avó deu um suspiro
cansado.
– Por que não liga para a
sua amiga Selly? Só não fique muito tempo. É caro.
A simples ideia de
conversar com Selena deixou Demi mais animada. Com o preço das chamadas
interurbanas, as duas raramente falavam ao telefone.
– Obrigada, Vovó. Vou
ligar.
Na semana seguinte, Demi
conseguiu um emprego no Queen Anne Bee , o jornal semanal do
bairro em que morava. Suas funções estavam bem de acordo com o salário
miserável que lhe pagavam por hora, mas ela não se importava. Ela estava no
mercado de trabalho. Passou quase todas as horas em que estava
acordada no verão de 1977
na redação pequena e apertada, absorvendo todo e qualquer conhecimento que
pudesse. Quando não estava na cola dos repórteres, fazendo cópias ou servindo
café, estava em casa, jogando cartas com a avó. Toda noite de domingo, sem
falta, ela escrevia a Selena e contava os mínimos
detalhes da semana. Sentada
diante da escrivaninha de criança que tinha no quarto, releu a carta de oito
páginas daquela semana, assinou Melhores amigas
para sempre, Demi e dobrou
em três os papéis, cuidadosamente. Sobre a escrivaninha, a encarava o último
cartão-postal de Sel, que estava no acampamento anual de férias da família Gomez.
Selena chamava a viagem de Semana Infernal com Mosquitos, mas Demi tinha inveja
de cada momento, tudo aquilo lhe parecia perfeito. Ela desejava
desesperadamente que tivesse podido ir com eles. Recusar o convite havia sido
uma das coisas mais difíceis que já fizera. Mas
com seu emprego de verão – a que dava tanta importância – e a saúde debilitada
da avó, não tivera muita escolha, na verdade. Ela olhou para o bilhete da
amiga, relendo as palavras que já havia decorado. Jogando cartas à noite, assando marshmallow, nadando
no lago congelado…
Ela se obrigou a desviar o
olhar. Não adiantava nada se consumir pelo que não se podia ter. Seus dias com
Nuvem lhe ensinaram isso. Ela colocou a carta num envelope, escreveu nele o
endereço, e então desceu para conferir como estava a avó, que já havia caído no
sono. Sozinha, Demi assistiu a seus programas preferidos de domingo à noite, depois
trancou a casa e foi para a cama. O último pensamento que teve ao cair no sono
lentamente foi imaginar o que os Gomez estariam fazendo. Na manhã seguinte, ela
acordou no horário de sempre, às seis, e se vestiu para trabalhar. Às vezes,
quando chegava bem cedo à redação, um dos repórteres a deixava ajudar com as
matérias do dia. Ela seguiu às pressas até o quarto da avó e bateu à porta. Embora
detestasse acordá-la, era a regra da casa. Não se saía sem se despedir.
– Vovó?
Ela bateu novamente e abriu
a porta devagar, chamando:
– Vovó… estou indo
trabalhar.
Suaves sombras de lavanda
cobriam os peitoris das janelas. Os bordados emoldurados que decoravam as
paredes eram caixas sem forma.
A avó de Demi estava
deitada na cama. Mesmo da porta, ela podia ver sua silhueta, os cachos dos
cabelos brancos, as pregas da camisola… e a imobilidade de seu peito.
– Vovó?
Ela deu um passo para a
frente e tocou o rosto aveludado e enrugado da avó. A pele estava gelada.
Nenhum ar saía dos lábios frouxos. O mundo de Demi pareceu sair do prumo, escorregar
para fora das bases. Precisou juntar todas as suas forças para ficar ali parada, olhando para o rosto sem vida da avó. No começo,
suas lágrimas rolaram quentes, demorando para se formar. Era como se cada uma
delas fosse de sangue e tão espessa que não passaria pelos canais lacrimais. As
lembranças vieram à sua mente como um caleidoscópio: a avó trançando seus cabelos
para o aniversário de 7 anos, dizendo que sua mãe poderia aparecer se ela
rezasse bastante e, anos mais tarde, admitindo que às vezes Deus não respondia
às preces de menininhas, ou de mulheres também. Ou então as duas jogando cartas
na semana anterior, dando risada quando ela pegou todo o descarte – de novo –
dizendo: “Demi, você não precisa ter todas as cartas, o tempo todo…”, ou lhe
dando gentilmente um beijo de boa-noite. Ela não fazia ideia de quanto tempo ficara ali parada, mas quando se inclinou para a frente e beijou o
rosto enrugado da avó, a luz do sul estava entrando através das cortinas finas, iluminando o quarto. A claridade surpreendeu Demi. Sem sua
avó, parecia que aquele quarto deveria ser escuro.
– Vamos lá, Demi – disse
ela.
Tinha coisas a fazer agora,
sabia disso. Ela e a avó haviam conversado sobre isso, haviam cuidado do que Demi
deveria fazer. Ela tinha certeza, porém, de que nenhuma palavra poderia tê-la
preparado para aquilo.
Ela foi até a mesa de
cabeceira da avó, onde havia uma bonita caixa de jacarandá embaixo da foto de
seu avô, ao lado da enorme quantidade de remédios. Levantou a tampa sentindo-se
meio ladra, mas a avó esperava que ela fizesse isso. Quando eu for para casa , sua avó sempre dizia, vou lhe deixar uma coisa na caixa que o vovô comprou
para mim. Lá
dentro, em cima do monte de bijuterias baratas que Demi mal lembrava de ver a
avó usando, estava um papel cor-de-rosa dobrado com o nome de Demi escrito.
Lentamente, pegou a carta e
a abriu.
Minha adorada Demi,
eu sinto muito. Sei quanto você tem medo de ficar sozinha ou de ser deixada para trás, mas Deus tem um plano
para cada um de nós. Eu teria ficado mais tempo com você se pudesse. Seu avô e
eu sempre estaremos olhando por você do Céu. Você nunca vai estar sozinha se
acreditar nisso. Você foi a maior alegria da minha vida.
Com amor,
Vovó
Foi. A avó não estava mais
com ela.
Demi ficou parada do lado
de fora da igreja observando o fluxo de pessoas mais velhas
passar por ela. Algumas das amigas de sua avó a reconheceram e foram lhe dar as
condolências.
Eu sinto muito, querida…
… mas ela está num lugar melhor…
… com seu amado Winston.
… não gostaria que você chorasse.
Ela aceitou o máximo que
pôde daquilo porque sabia que a avó iria querer isso, mas, perto das onze
horas, estava prestes a gritar. Será que nenhuma daquelas pessoas
bem-intencionadas via ou se dava conta de que Demi
era uma menina de 17 anos vestida de preto e completamente sozinha no mundo?
Se ao menos Selly e os Gomez
estivessem lá, mas ela não fazia ideia de como entrar em contato com eles no
Canadá. E como eles só chegariam em casa dentro de dois dias, ela precisava
passar por aquilo sozinha. Com eles ao seu lado, como uma família, talvez ela
conseguisse chegar ao fim da cerimônia. Sem eles, ela simplesmente não
suportou. Em vez de ficar assistindo às terríveis
e desoladoras lembranças da avó, ela se levantou na metade do funeral e foi
embora.
Do lado de fora, sob o sol
quente de agosto, conseguiu respirar novamente, embora as lágrimas estivessem
sempre perto da superfície, assim como a pergunta sem sentido: “Como você pôde
me deixar assim?” Cercada por carros velhos empoeirados, ela tentou não chorar.
Mais do que tudo, tentou não se lembrar ou se preocupar com o que iria
acontecer com ela. Perto dali, um galho se partiu, e o barulho fez Demi erguer
os olhos. A primeira coisa que viu foram os carros estacionados aleatoriamente.
Então a avistou.
Perto do limite do terreno,
onde uma fileira de enormes árvores marcavam o começo do parque da cidade,
Nuvem estava parada à sombra, fumando um cigarro. Usava uma velha calça boca de
sino de veludo cotelê e uma bata suja, cercada por um muro de cabelos castanhos
arrepiados. Parecia extremamente magra. O advogado devia ter conseguido
encontrá-la… e ela aparecera!
Demi não conseguiu evitar o
pequeno salto de alegria em seu coração. Afinal, ela
não estava sozinha. Nuvem podia ser meio maluca, mas tinha voltado quando os
problemas apareceram. Demi correu para ela, sorrindo. Iria perdoar a mãe por
todos os anos perdidos, todo o abandono. O que importava era que estava ali
agora, quando Demi mais precisava dela.
– Graças a Deus você está
aqui – disse ela, parando, sem fôlego. – Estou precisando de você.
A mãe se atirou na direção
dela, rindo ao quase cair.
– Você é um belo espírito, Demi.
Tudo o que precisa é de ar e liberdade.
Demi sentiu um frio no
estômago.
– De novo não – disse ela,
implorando por ajuda com os olhos.
– Sempre.
A voz de Nuvem tinha um tom
duro agora, uma precisão que desmentia a expressão vidrada em seus olhos.
– Eu sou sangue do seu
sangue e estou precisando de você. Sem você, vou ficar sozinha.
Demi sabia que estava
sussurrando, mas não conseguiu dar um volume maior à própria voz. Nuvem
tropeçou. A tristeza nos olhos dela era inequívoca, mas Demi não se importava.
As pseudo emoções de sua mãe iam e vinham como o sol em Seattle.
– Olhe para mim, Demi.
– Estou olhando.
– Não. Preste atenção. Eu estou acabada. Não posso ajudar você.
– Mas eu preciso de você.
– Esta é a porra da
tragédia – disse sua mãe, dando uma longa tragada no baseado e soltando a
fumaça alguns segundos depois.
– Por quê? – perguntou Demi.
Ela ia acrescentar você não me ama? , mas antes que pudesse transformar a dor em palavras, o funeral
terminou e uma pequena multidão de pessoas vestidas de preto encheu o
estacionamento. Demi olhou para o lado por um instante – apenas pelo tempo
necessário para secar suas lágrimas – e, quando
olhou de volta, a mãe não estava mais lá.
A assistente social foi
seca. Tentava dizer as palavras certas, mas Demi percebeu que ela não parava de
olhar para o relógio enquanto esperava à porta. Demi estava arrumando a mala.
– Ainda não entendo por que
preciso ir. Eu tenho quase 18 anos. A minha avó já quitou a hipoteca da casa.
Eu sei porque fui eu quem pagou as contas este ano. Tenho idade suficiente para
morar sozinha.
– O advogado está nos
esperando – foi a única resposta da mulher. – Ainda falta muito?
Demi guardou a pilha de
cartas de Selena na mala, puxou a tampa e a fechou. Como não conseguiu formar
as palavras estou pronta , apenas pegou a mala, atirou
a bolsa de macramê no ombro e se dirigiu até a porta.
– Ótimo – disse a mulher,
virando-se rapidamente e percorrendo o corredor. Demi lançou mais um último e
demorado olhar para o quarto, percebendo como se pela primeira vez, coisas que
havia deixado passar durante anos: os lençóis amarrotados lilás e branco da
cama de solteiro, a fileira de cavalos de plástico
– agora empoeirados – no peitoril da janela, a boneca em cima da cômoda e a
caixa de joias da Miss América com a bailarina cor de rosa em cima. Vovó havia
decorado aquele quarto para a menininha que fora largada ali tantos anos antes.
Cada item havia sido escolhido com cuidado, mas agora todos seriam encaixotados
e armazenados no escuro, junto com as lembranças que traziam. Demi se perguntou
quanto tempo levaria para que pudesse pensar na avó sem chorar. Ela fechou a
porta atrás de si e seguiu a mulher pela casa agora em silêncio.
Desceu os degraus da
entrada até a rua, onde um velho Ford amarelo as aguardava.
– Ponha a sua mala atrás.
Demi fez o que lhe foi dito
e sentou no banco do carona.
Quando a mulher ligou o
carro, o som começou a tocar num volume ensurdecedor. Era “Don’t Give up on
Us”, de David Soul. Que ironia: “não desista de nós”. A mulher imediatamente
abaixou o som, murmurando:
– Desculpe.
Demi achou que aquela
música valia o pedido de desculpas tanto quanto qualquer outra, então só
encolheu os ombros e ficou olhando pela janela.
– Sinto muito por sua avó,
se ainda não disse isso.
Demi ficou olhando para seu reflexo
esquisito na janela. Era como olhar para uma versão em negativo de seu rosto,
sem cor e sem nada por dentro. Era como estava se sentindo, na verdade.
– Pelo que dizem, ela foi
uma mulher excepcional.
Demi não respondeu. Não
conseguia falar direito, de qualquer maneira. Desde o encontro com a mãe, ela
estava seca, vazia.
– Bem, chegamos.
Estavam estacionadas diante
de uma casa vitoriana bem cuidada em Ballard.
Uma placa pintada à mão na
frente dizia BAKER E MONTGOMERY, ADVOGADOS. Demi levou um instante
para sair do carro. Quando saiu, a mulher estava lhe dando um sorriso suave e
compreensivo.
– Você não precisa levar a
sua mala.
– Eu prefiro levar,
obrigada.
Se havia algo que Demi
compreendia era a importância de uma mala feita. A mulher assentiu e a guiou
pelo caminho cimentado com veios de grama até a porta branca de entrada. Dentro
do espaço extremamente singular, ela se sentou no saguão, perto da mesa de
recepção vazia. Desenhos bonitinhos de crianças de olhos arregalados enfeitavam
as paredes cobertas de papel de parede estampado. Exatamente às quatro horas,
um homem gorducho, careca e de óculos com aro grosso foi até elas.
– Olá, Demetria. Eu sou
Elmer Baker, o advogado da sua avó.
Demi o seguiu até uma sala
pequena no andar de cima com duas poltronas e uma antiga mesa de mogno com
muitos blocos de anotação amarelos. No canto, um ventilador zunia, mandando ar
quente na direção da porta. A assistente social se acomodou junto à janela.
– Aqui. Aqui. Sente-se, por
favor – disse ele, indo até a própria cadeira, atrás da mesa elegante. – Agora,
Demetria…
– Demi – corrigiu ela
baixinho.
– Muito bem. Eu me lembro
de Ima dizer que você preferia Demi.
Ele pôs os cotovelos em
cima da mesa e se inclinou para a frente. Seus olhos saltados piscavam
ampliados pelas lentes grossas dos óculos.
– Como você sabe, sua mãe
se recusou a ficar com a sua custódia.
Demi usou todas as suas
forças para assentir, embora na noite anterior ela tivesse ensaiado todo um
monólogo sobre como deveria ter autorização para morar sozinha. Agora, ali, ela
se sentia pequena e jovem demais.
– Eu sinto muito – disse
ele, numa voz gentil.
Demi chegou a se encolher
com essas palavras. Havia começado a
verdadeiramente desprezar
aquele sentimento idiota e inútil.
– É – disse ela, cerrando
os punhos na lateral do corpo.
– A Sra. Gulligan encontrou
uma ótima família para você. Você será uma de várias adolescentes sob os
cuidados dela. A melhor notícia é que você poderá continuar na mesma escola.
Tenho certeza de que ficará feliz com isso.
– Felicíssima.
O Sr. Baker pareceu
momentaneamente desconcertado pela resposta.
– Certo. Agora, quanto à
sua herança: Ima deixou todos os bens, duas casas, um carro, contas bancárias e
ações, para você. Ela deixou instruções para que você mantenha os pagamentos
mensais à filha, Diana. Sua avó acreditava
que essa era a melhor e única forma de saber por onde ela andava. Diana se
mostrou bastante propensa a entrar em contato quando há dinheiro em questão.
Ele limpou a garganta.
– Agora… se vendermos as
duas casas, você não vai precisar se preocupar com dinheiro por um bom tempo.
Podemos cuidar para…
– Mas daí eu não vou ter
onde morar.
– Eu sinto muito quanto a
isso, mas Ima foi bastante clara nesse sentido. Ela queria que você pudesse
entrar para qualquer universidade que escolhesse – explicou, e, olhando para
ela, disse: – Você vai ganhar o Pulitzer um dia. Pelo menos foi o que ela me
falou.
Demi não podia acreditar
que ia chorar de novo, e na frente daquelas pessoas. Levantou-se num salto.
– Preciso ir ao toalete.
O Sr. Baker franziu a testa
pálida.
– Ah, sim. Claro. Lá
embaixo. A primeira porta à esquerda da entrada. Demi se levantou, pegou a mala
e saiu hesitante da sala. No corredor, fechou a porta atrás de si e se encostou
na parede, tentando não chorar. Ser alojada na casa de estranhos não podia ser o futuro dela. Ela olhou para o pulso, para o relógio comemorativo
do bicentenário da independência do país. Os Gomez estariam em casa no dia
seguinte.
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