Dezoito
– Não sei quem escreve essas
orientações, mas não acho que o filho da
mãe saiba falar o nosso idioma.
Sel sorriu e desceu cuidadosamente a escada. Sabia que Demi estava
a um
passo de atirar a chave de fenda na parede recém-pintada.
– Deixe eu ver este papel.
Do lugar em que estava, no meio do quarto, cercada por pilhas de
tábuas e pedaços de madeira brancos e montinhos de parafusos e porcas, Demi
levantou o pedaço de papel comprido e amarrotado.
– À vontade.
Sel estudou as orientações ridiculamente complicadas.
– A gente começa com aquela peça comprida e achatada. Ela se
encaixa
naquela peça, está vendo? Daí a gente aparafusa aquela parte ali…
Durante as duas horas seguintes, elas sentaram e levantaram, se
agacharam
e se abaixaram, montando o berço mais complicado da história.
Quando o berço estava montado e havia sido colocado no lugar
contra a parede pintada de amarelo com borda de ursinho Puff, as duas deram um
passo para trás e admiraram o móvel.
– O que eu faria sem você, Demi?
Demi passou um braço ao redor da amiga.
– Felizmente, você nunca vai precisar saber. Vamos, vou preparar
umas margaritas.
– Eu não posso beber. Você sabe disso.
Demi sorriu para ela.
– Sinto muitíssimo por isso, mas, como pode perceber, eu não tenho
nenhum pãozinho no forno. Na realidade, não acredito que esteja a menos de mil
quilômetros de uma padaria. Então, não apenas eu posso tomar uma margarita, mas
depois de montar esse berço, um trabalho que, devo acrescentar, é totalmente do
Nicholas e na realidade exigia um escroto para ser realizado em menos de um dia inteiro, eu
mereço uma margarita. E você, moça cada vez mais gorda, pode tomar um drinque
não batizado. Irônico, não?
De braços dados, as duas foram até a cozinha e prepararam
drinques. Por todo o caminho e de volta à sala de estar, onde sentaram diante
da lareira, as duas conversaram. Sobre coisas bobas, principalmente – a multa
por excesso de velocidade que Demi havia recebido na semana anterior, a nova
namorada de Sean, as aulas que a mãe de Sel estava fazendo na faculdade
comunitária local.
– Como é? – perguntou Demi quando Sel levantou para pôr uma lenha
na lareira. – Estar casada?
– Bem, faz só quatro meses, então eu não sou exatamente uma
especialista.
Mas até agora está sendo ótimo.
Sel se recostou e pôs os pés em cima da mesa de centro,
descansando a mão sobre a barriga ainda pouco perceptível.
– Você vai achar que eu sou maluca, mas eu adoro a rotina, tomar
café da manhã juntos, os dois lendo. Eu adoro que ele seja a primeira pessoa
que eu veja todas as manhãs e que ele me dê um beijo de boa-noite antes que eu
caia no sono – falou, e sorriu para Demi. – Mas sinto falta de dividir o
banheiro com você. Ele está sempre mexendo nas minhas coisas e botando em outro
lugar, e então se esquecendo de onde botou. E você, Demi? Como está a vida no
nosso velho apartamento?
– Solitária – disse Demi, encolhendo os ombros e sorrindo, como se
não se
importasse. – Estou me acostumando a isso de novo.
– Você pode me ligar a qualquer hora, sabe disso.
– E ligo mesmo – respondeu Demi com uma risada, e se serviu da
segunda margarita. – Vocês dois já planejaram a vida para depois do nascimento
do meu afilhado? Vão deixar você tirar licença?
Este era o assunto que Sel vinha tentando evitar. Ela sabia o que
queria fazer desde o instante em que Nicholas havia se casado com ela, mas, nos
quatro meses que se passaram desde então, não tivera coragem de contar a Demi.
Respirou fundo.
– Eu vou pedir demissão.
– O quê? Por quê? Você está com as melhores contas, e você e o Nicholas
estão ganhando bem. Podem contratar uma babá.
– Eu não quero que outra pessoa crie meu filho. Pelo menos não até o jardim
de infância.
Isso fez Demi se levantar.
– Jardim de infância? Quanto tempo vai levar isso? Oito anos?
Sel sorriu.
– Cinco.
– Mas…
– Nada de mas. É importante para mim ser uma boa mãe. Você, de todas as
pessoas do mundo, deveria compreender quanto isso é importante
para uma
criança.
Demi voltou a se sentar. Não havia nada que ela pudesse argumentar
contra
isso. Demi ainda trazia as cicatrizes de ter uma mãe negligente.
– As mulheres podem fazer as duas coisas, sabia? Não estamos nos
anos 1950.
– A minha mãe foi a todas as excursões que eu fiz. Ela ajudou na
sala de aula todos os anos, até eu implorar que ela parasse de fazer isso. Eu
só comecei a ir de ônibus para a escola no ginásio e ainda me lembro de
conversar com a
minha mãe na volta da escola. Quero que o meu filho tenha tudo isso. Eu sempre
posso voltar a trabalhar mais tarde.
– E você acha que isso vai ser o bastante para você? Levar a
criança à escola, ir às excursões dela, ser voluntária na sala de aula?
– Se não for, eu vou encontrar outra coisa para fazer. Qual é, eu
não sou uma astronauta. – brincou Sel. – Agora me fale sobre o seu trabalho. Eu
vou
viver indiretamente através de você, então é bom que as histórias
sejam boas.
Demi começou um relato hilário sobre sua pauta mais recente.
Sel se recostou e fechou os olhos, ouvindo a amiga.
– Sel? Sel?
Estava tão perdida nos próprios pensamentos que levou um tempo
para
perceber que Demi estava falando com ela. Deu risada.
– Desculpe. O que você estava dizendo?
– Você dormiu enquanto eu falava. Eu estava contando sobre o cara
que me
convidou para sair e, quando eu olhei, você estava apagada.
– Não estava, não – respondeu Sel rapidamente, mas a verdade era
que ela
estava se sentindo letárgica e meio tonta também. – Acho que
preciso de um
chá.
Sel se levantou e sentiu-se oscilar. Segurou-se nas costas do
sofá.
– Nossa, isso foi… – no meio da frase, ela olhou para Demi e
franziu a testa.
– Demi?
Demi se levantou com tanta agilidade que derrubou a margarita.
Passou um
braço ao redor de Sel, ajudando a amiga a se equilibrar.
– Estou aqui.
Havia alguma coisa errada. Sel ficou completamente zonza e, de
repente,
suas pernas falharam.
– Segure firme, querida – disse Demi, levando a amiga gentilmente para a
porta. – Precisamos ir até um telefone.
Telefone? Sel balançou a cabeça, confusa, com a visão embaçada.
– Eu não sei o que está acontecendo – murmurou ela. – É uma festa surpresa
para mim? É meu aniversário?
Então Sel olhou para o sofá onde estava sentada.
Uma poça escura de sangue estava manchando a almofada e pingando
no
piso de madeira aos seus pés.
– Ah, meu Deus – sussurrou ela, tocando na barriga.
Queria dizer mais, orar, mas, enquanto tentava falar, o mundo
virou de cabeça para baixo e ela desmaiou.
Demi obrigou os paramédicos a deixarem que ela fosse na
ambulância. Ficou
sentada ao lado de Sel dizendo “estou bem aqui” sem parar.
Sel estava quase inconsciente. Estava com a pele branca como
papel. Até mesmo seus olhos, normalmente tão brilhantes, estavam parados e
vidrados.
Lágrimas escorriam por suas têmporas.
A ambulância parou no hospital. Demi foi empurrada para o lado na
pressa
de tirarem Sel do carro e levá-la até o iluminado ambiente
hospitalar. Demi
ficou parada na porta de entrada aberta, vendo a equipe levar sua
melhor amiga. De repente, sentiu o impacto do que estava acontecendo.
Mulheres abortando podiam sangrar até morrer.
– Por favor, Deus – disse ela, desejando pela primeira vez na vida
que realmente soubesse rezar. – Não me deixe perdê-la.
Demi sabia que era a oração errada, não era a oração que Sel
desejaria que
ela fizesse.
– E cuide do bebê.
Parecia uma coisa absurda, rezar para aquele Deus que nunca a
ouvira.
– A Selly vai à igreja todos os domingos – lembrou a Ele, para
garantir.
No pequeno quarto verde do hospital com vista para o
estacionamento, Sel dormia. Ao seu lado estava a Sra. M., sentada numa cadeira
de plástico e lendo um livro de bolso. Como sempre fazia, movimentava os lábios
enquanto
lia. Demi chegou ao lado dela e tocou em seu ombro.
– Trouxe um pouco de café.
Manteve a mão no ombro da Sra. M. Fazia quase duas horas desde que
Sel havia perdido o bebê e, embora tivessem ligado para Nicholas, ele estava
numa pauta em Spokane, do outro lado do estado.
– Acho que foi uma bênção isso ter acontecido cedo – disse Demi.
– Quatro meses não é cedo, Demi – sussurrou a Sra. Gomez. – As
pessoas que nunca sofreram um aborto sempre dizem isso. Foi o que o Bud me
disse.
Duas vezes – contou, e olhou para Demi. – Para mim, nunca pareceu
uma bênção. Foi mais como a perda de alguém que eu amava. Você sabe como é
isso, não sabe?
– Obrigada – disse ela, apertando o ombro da Sra. Gomez e então se
aproximando da cama. – Agora eu sei o que não dizer. Só queria saber o que
fazer para ajudar.
Sel abriu os olhos e viu as duas.
A Sra. Gomez se levantou, foi até a cama da filha, ficando lado a
lado com
Demi.
– Oi – sussurrou Sel. – Quanto tempo vai levar para Nicholas…
Ao dizer o nome do marido, Sel sentiu a voz falhar e começou a
tremer.
– Alguém disse o meu nome?
Demi se virou.
Nicholas estava parado na porta com um buquê de flores meio entortado para a
esquerda. Tudo nele parecia desarrumado – o rosto com barba por fazer era uma
paleta contrastante de pele pálida e barba escura, os cabelos eram um emaranhado
e os olhos refletiam uma exaustão
profunda. Estava com a calça jeans rasgada e suja, e a camisa cáqui estava mais
amarrotada do que uma cama por fazer.
– Aluguei um avião particular. Vai ser uma fatura de cartão e
tanto.
Nicholas atirou as flores em cima de uma cadeira e foi até a
mulher.
– Oi, querida – sussurrou. – Desculpe por ter demorado tanto.
– Era um menino – contou Selly, explodindo em lágrimas e
agarrando-se a
ele.
Demi ouviu Nicholas começar a chorar com Sel.
A Sra. Gomez passou um braço pela cintura de Demi.
– Ele a ama – disse Demi lentamente.
A lembrança de sua noite com Nicholas a havia cegado de alguma
forma, mantivera-a presa como um inseto na seiva de um tempo esquecido. Ela imaginara
que Sel era de alguma forma a segunda opção dele, a segunda colocada na corrida
do amor. Mas aquilo… aquilo não era uma segunda opção.
A Sra. Gomez a puxou de perto da cama.
– É claro que ele a ama. Venha, vamos deixá-los sozinhos.
As duas pegaram os cafés e foram para o corredor, onde o Sr. M.
estava sentado numa cadeira desconfortável. Quando olhou para elas, viram seus
olhos injetados.
– Como ela está?
– Nicholas está com ela agora – disse a Sra. M., tocando no ombro
do marido.
Pela primeira vez em anos, Demi se sentiu uma estranha naquela
família.
– Não se preocupe, Demi – a Sra. M. disse, observando-a de perto.
– Ela
sempre vai precisar de você.
– Mas as coisas estão diferentes agora.
– É claro que estão. A Selly está casada. Vocês duas estão
trilhando caminhos separados, mas sempre serão melhores amigas.
Caminhos separados.
Ali estava, a coisa que ela deveria ter visto, mas, de alguma
forma, não vira.
Nos dias seguintes, todos se revezaram para ficar com Sel. Na
quinta-feira,
foi a vez de Demi. Ela ligou para o trabalho dizendo que estava
doente e passou o dia com a amiga. As duas jogaram cartas, viram televisão e
conversaram. A maior parte do tempo, para ser sincera, Demi apenas ouviu.
Quando era sua vez de responder, ela tentava dizer a coisa certa, mas, na maior
parte das vezes, teve certeza de que não conseguira. Havia uma tristeza na
amiga, um aspecto sombrio tão estranho que Demi tinha a sensação de haver
topado com alguma versão negativa da amizade das duas. Nada que ela dissesse
estava certo. Finalmente, por volta das oito horas, Sel disse:
– Sei que você vai achar que eu estou maluca, mas vou para a cama.
Nicholas
vai estar em casa em uma hora. Você pode ir embora. Vá transar
loucamente
com aquele novo cara, o Wilker.
– Wilmer. E eu não estou exatamente no clima de transar. Por outro
lado…
Sorrindo, ajudou Sel a subir a escada e a deitou na cama. Então
olhou para
a amiga.
– Você não sabe quanto eu queria dizer a coisa certa para fazer
você se
sentir melhor.
– Você faz. Obrigada.
Sel fechou os olhos.
Demi ficou lá parada por mais um
instante, sentindo-se estranhamente impotente. Dando um suspiro, voltou para baixo
e começou a lavar a louça. Estava secando o último copo quando a porta se abriu
silenciosamente e então se fechou.
Nicholas segurava um buquê de rosas cor-de-rosa. Com os cabelos
recém cortados, os jeans desbotados e tênis branco com a lingueta para fora,
parecia ter 20 anos. Em todo o tempo que o conhecia, nunca o vira tão triste e
acabado.
– Oi – disse ele, deixando as flores em cima da mesa de centro.
– Você parece precisar de uma bebida.
– Que tal uma bebida na veia? – brincou ele, tentando sorrir. –
Ela dormiu?
– Dormiu.
Demi pegou uma garrafa de uísque no balcão e preparou uma dose
para Nicholas. Então serviu uma taça de vinho para si mesma e foi até ele.
– Vamos sentar na doca – disse ele, pegando o copo da mão dela. –
Não quero acordá-la.
Demi pegou o casaco e o seguiu até o lado de fora. Os dois se
sentaram lado
a lado na doca, como duas crianças, com os pés pendurados acima
das águas
escuras do lago Union. Estava silencioso e tranquilo lá fora. A
lua cheia no céu iluminava os telhados e era refletida por várias janelas. O barulho distante dos carros na ponte
acompanhava o ritmo da água batendo no entorno.
– Como você está de verdade? – perguntou Demi.
– É com a Selly que eu estou preocupado.
– Eu sei – respondeu ela. – Mas eu perguntei por você.
– Já estive melhor.
Nicholas tomou um gole do uísque. Demi se encostou nele.
– Você tem sorte – disse ela. – Sel ama você, e quando um Gomez se
apaixona, é para sempre.
No instante em que disse isso, Demi teve aquela estranha sensação
de não
pertencimento de novo. Aquela sensação de solidão que de alguma
forma estava simplesmente fora de vista, mas se aproximando. Pela primeira vez,
ela se perguntou como sua vida poderia ter sido se ela tivesse feito como Sel e
escolhido o amor. Será que então saberia como era pertencer de verdade a algum
lugar, a alguém? Ficou olhando fixamente para a água.
– O que houve, Demi?
– Acho que estou com inveja da Sel e de você.
– Você não quer esta vida.
– Que vida eu quero?
Nicholas passou o braço ao redor dela.
– Esta é a única coisa que você sempre soube. Você quer as redes
nacionais.
– Isso não faz de mim uma pessoa superficial?
Nicholas riu.
– Eu não sou exatamente a pessoa indicada para responder isso.
Olhe só:
vou tentar fazer uns contatos. Cedo ou tarde vou conseguir uma
vaga numa das grandes redes para você.
– Você faria isso?
– É claro. Mas você precisa ter paciência. Essas coisas levam
tempo.
Ela se virou de lado e o abraçou, sussurrando “Obrigada, Nicholas”.
Ele a
conhecia muito bem. De alguma forma, já sabia o que ela havia
acabado de
descobrir: estava na hora de ela seguir em frente.
Por mais cansada que estivesse, Sel não conseguia cair no sono.
Ficou deitada na cama, olhando fixamente para o teto, esperando pelo marido. Aquela
ansiedade dela estava no coração do relacionamento dos dois. Quando as coisas
iam mal, ela lembrava que havia sido uma segunda opção. Não importava quanto
dissesse a si mesma que isso não era verdade, havia uma versão sombria de si
mesma que acreditava nisso e se preocupava. Era uma neurose destrutiva. Como
quando a água do rio Snohomish subia, erodindo tudo ao redor, derrubando
porções enormes de terra.
Ouviu um barulho lá embaixo.
Ele estava em casa.
– Graças a Deus.
Saiu dolorosamente da cama e desceu.
As luzes estavam apagadas. O fogo da lareira estava quase extinto.
Restava
apenas um brilho laranja fraco. Primeiro, Sel pensou que houvesse
se enganado, que ele não havia chegado em casa. Então notou as sombras nom deque.
Duas pessoas, sentadas lado a lado, com os ombros se tocando. O luar
revelou suas silhuetas, deixando-os prateados contra a escuridão
da água. Atravessou a casa em silêncio, abriu a porta e saiu na noite gelada.
Uma brisa suave agitou seus cabelos e a camisola. Demi se virou, abraçou Nicholas
e sussurrou alguma coisa no ouvido dele. A resposta dele foi encoberta pelo
barulho da água batendo na doca. Talvez tivesse dado risada. Sel não tinha como
saber.
– Estão fazendo uma festa sem mim?
Sel ouviu a própria voz falhando e respirou fundo para disfarçar.
No fundo, sabia que Nicholas não havia se virado para beijar Demi, mas seu lado
sombrio não tinha certeza disso. Aquele pensamento feio e tóxico era menor do que
uma gota de sangue, mas envenenava toda a corrente. Num instante, Nicholas
estava ao seu lado. Ele a tomou em seus braços e a beijou. Quando ele recuou, Sel
procurou por Demi, mas os dois estavam sozinhos no deque. Pela primeira vez na
vida, Sel desejou amá-lo com menor intensidade. Era perigoso ter um sentimento
daquele, transformava-a numa criança exposta às intempéries. Frágil e infinitamente assustada. Ele
poderia acabar com ela algum dia. Disso, não tinha dúvida.
Enquanto os meses se passavam e um novo ano começava, Demi tentava
se
manter paciente e acreditar que o melhor aconteceria, mas, no fim
de maio,
tinha praticamente desistido. O ano de 1987 não prometia ser bom
para ela.
Agora era a manhã de um dia quente de primavera e ela se esforçava
para ficar feliz sendo a âncora
substituta. Ao fim da transmissão, voltou para sua sala.
Estava sentando em sua cadeira quando ouviu:
– Linha dois, Demi.
Levantou o fone, apertou o botão quadrado branco da linha dois,
que imediatamente se acendeu.
– Demetria Lovato.
– Olá, Srta. Lovato. Aqui é Dick Emerson. Sou o vice-presidente de
programação da NBC em Nova York. Soube que está pensando em trabalhar para uma
rede nacional.
Demi controlou um arquejo.
– Estou.
– Estamos com uma vaga de repórter no programa matinal.
– É mesmo?
– Vou entrevistar quase cinquenta candidatos na próxima semana. A
concorrência será feroz, Srta. Lovato.
– Eu também sou, Sr. Emerson.
– É esse o tipo de ambição que eu gosto de ouvir.
Demi ouviu o som de páginas sendo viradas em cima de uma mesa.
– Vou dizer para a minha secretária enviar uma passagem para você.
Ela vai
ligar e combinar um lugar na cidade para a senhorita se hospedar e
a data da entrevista. Tudo bem para você?
– Perfeito. Obrigada, senhor. Não vou decepcioná-lo.
– Ótimo. Detesto perder tempo – falou ele, e fez uma breve pausa
para
acrescentar: – E diga a Nicholas Ryan que eu mandei lembranças.
Demi desligou e imediatamente discou o número de Sel e Nicholas.
Sel atendeu no mesmo instante.
– Alô?
– Eu amo o seu marido.
Houve uma pausa de meio segundo.
– É mesmo?
– Ele conseguiu uma entrevista para mim na NBC.
– Na semana que vem, não é?
– Você sabia?
Sel riu.
– É claro que sabia. Ele vem tentando isso há um tempão. E foi
essa que vos
fala quem pôs as fitas no correio.
– Com tudo o que você tem na cabeça, ainda estava pensando em mim?
–
disse Demi, espantada.
– Somos você e eu contra o mundo, Demi. Algumas coisas nunca
mudam.
– Desta vez eu sem dúvida vou pôr fogo no mundo – disse ela, dando
risada.
– Finalmente tenho a porra de um fósforo.
A cidade de Nova York era tudo o que Demi havia sonhado. Na
primeira
semana, com seus cartões de visita com a logomarca da NBC na mão,
ela percorria aquelas ruas movimentadas como Alice no País das Maravilhas, com
o rosto sempre voltado para cima. Os arranha-céus intermináveis a impressionavam,
assim como os restaurantes que nunca fechavam, as charretes puxadas por cavalos
ao longo do parque e as multidões de pessoas vestidas de preto que enchiam as
ruas. Ela havia passado duas semanas explorando a cidade, escolhendo uma vizinhança,
procurando um apartamento, aprendendo a andar de metrô. Poderia ter sido um
período solitário – afinal, quem gostaria de ver as atrações de uma cidade mágica como
Nova York sem companhia? Mas a verdade era que ela estava tão empolgada com o
novo emprego que nem estar sozinha a incomodava. Além disso, na cidade que
nunca dorme, nunca se está realmente sozinho. Sempre há pessoas nas ruas, mesmo
no meio da madrugada. E também havia o trabalho. Desde o instante em que entrou
no prédio da NBC como repórter, Demi se sentiu sgada. Ela acordava todas as madrugadas às duas e meia, para que
pudesse estar no estúdio às quatro. Embora tecnicamente não precisasse chegar
tão cedo, adorava car por
perto e ajudar.
Observava cada movimento, cada gesto de Jane Pauley.
Demi havia sido contratada como repórter geral, o que significava ser designada para
auxiliar em reportagens de outras pessoas. Algum dia, se tivesse sorte, seria
enviada para cobrir uma história que os jornalistas-estrelas não aceitariam de
jeito nenhum – a maior abóbora já colhida no estado de Indiana ou algo
igualmente importante. E Demi mal podia esperar. Depois que passasse por essa
fase, seria designada para uma cobertura realmente importante. E quando por fim tivesse essa oportunidade, ia arrasar. Na verdade, ao ver
pessoas como Jane Pauley e Bryant Gumbel trabalhando, sabia que ainda precisava
evoluir muito. Eles eram como deuses para ela, e Demi passava cada instante livre
observando como trabalhavam. Em casa, analisava as transmissões, gravando-as em
fitas de vídeo, a que assistia várias vezes.
Quando chegou o outono de 1989, ela finalmente havia encontrado o próprio tom e começava a se sentir
menos uma repórter interna e mais uma jovem a caminho de deixar sua marca. No
último mês recebera a primeira tarefa séria: fora ao Arkansas fazer uma
reportagem sobre um porco premiado. A história não chegou a ir ao ar, mas ela
havia feito seu trabalho, feito-o bem, e aprendera muito na viagem. Tinha
certeza de que teria aprendido mais se o programa matinal em que trabalhava não
estivesse em tamanha agitação. Havia uma guerra acontecendo nos bastidores e o
país inteiro sabia disso. Na semana anterior, uma nova fotografia de divulgação fora feita
e Deborah Norville, a apresentadora do programa do primeiro horário, aparecera
no sofá ao lado de Jane e Bryant. O efeito dessa imagem repercutiu pela empresa
e mesmo pelo país. Várias matérias foram publicadas dizendo que Norville estava
tirando Pauley da jogada. Demi mantinha a cabeça baixa e cava longe das fofocas.
Nenhuma fábrica de boatos atrapalharia suas chances de sucesso. Preferia manter
o foco no próprio trabalho. Se trabalhasse mais do que todo mundo, talvez
conseguisse um lugar no programa do primeiro horário, o NBC News at Sunrise. De lá, sabia que algum
dia chegaria ao noticiário Today e, depois, o mundo seria seu. Trabalhando dezoito horas por dia,
ela não tinha tanto tempo para sua vida pessoal, mas ainda tinha Sel, apesar da
distância. Conversavam pelo menos duas vezes por semana, e todos os domingos Demi
ligava para a Sra. M. Contava a ela histórias sobre as pressões do trabalho, as
celebridades que via e a vida em Manhattan. Elas respondiam com detalhes sobre
a nova casa que Sel e Nicholas haviam comprado, a viagem que o Sr. e a Sra. M.
haviam planejado para a primavera e – o melhor de tudo – a notícia de que Sel
estava grávida novamente e tudo estava indo bem.
Os dias passavam voando, tão rápido que às vezes eram apenas um
borrão de som e cores. Mas ela estava no caminho certo. Sabia disso, e isso a
mantinha
seguindo em frente. Naquele dia, como em todos os muitos dias que
vieram antes, ela havia passado quatorze horas na emissora e estava voltando
cansada para casa. Na rua, foi atraída pelos enfeites de Natal do Rockefeller
Center. Mesmo com o clima cinzento de uma noite nublada, havia gente por todos
os lados, fazendo compras, tirando fotos da árvore gigante e patinando no gelo.
Estava prestes a voltar a caminhar quando viu a placa do restaurante Rainbow
Room e pensou: por que não? Estava em
Nova York fazia mais de um ano e, embora tivesse conhecido muita gente, não
havia saído com ninguém ainda.
Talvez tenha sido a decoração de Natal, ou a forma como o chefe riu
quando ela pediu folga no feriado, não sabia ao certo. Tudo o que sabia era que
era noite de sexta-feira, pouco antes do Natal (o primeiro que passaria
sozinha)
e ela não estava a fim de ir para o apartamento vazio. A CNN
poderia esperar. A vista do Rainbow Room era tudo o que ela havia ouvido falar
e ainda mais. Era como se estivesse na ponte de alguma nave-mãe do futuro,
pairando sobre a grandeza multicolorida da noite de Manhattan. Como ainda era
cedo, havia muitos lugares no bar e às mesas. Escolheu uma mesa perto da
janela, sentou-se e pediu uma margarita. Estava prestes a pedir mais uma quando
o bar começou a encher. Homens e mulheres de Wall Street e de Midtown formavam
pequenos grupos junto a turistas arrumados demais e se apossavam de todas as mesas
e cadeiras, lotando o bar.
– Posso me sentar com você?
Demi ergueu os olhos.
Um louro bonitão de terno caro estava sorrindo para ela.
– Estou cansado de me acotovelar com os yuppies para conseguir uma
bebida.
Sotaque britânico. Ela era louca por isso.
– Eu detestaria deixá-lo sentindo sede.
Empurrou a cadeira em frente com o pé apenas o suficiente para que
ele pudesse sentar.
– Graças a Deus.
Chamou um garçom, pediu um uísque com gelo para ele e outra
margarita
para ela e se atirou na cadeira.
– Isso aqui é um matadouro dos infernos, não? Aliás, meu nome é
Grant.
Ela gostou do sorriso dele e sorriu também.
– Demi.
– Sem sobrenomes. Ótimo. Isso quer dizer que não precisamos saber
da
vida um do outro. Podemos apenas nos divertir.
O garçom entregou as bebidas e os deixou a sós novamente.
– Saúde – brindou ele, batendo seu copo no dela. – A vista aqui é
melhor do
que me fizeram crer – comentou ele, e se inclinou na direção de Demi. –
Você é linda, mas imagino que saiba disso.
Ela vinha ouvindo isso a vida inteira. Normalmente, não significava nada para ela, mas,
por algum motivo, naquele salão, com as festas de fim de ano se aproximando,
aquele elogio era exatamente o que ela precisava escutar.
– Por quanto tempo vai ficar na cidade?
– Mais ou menos uma semana. Trabalho na Virgin Entertainment.
– Você está inventando isso?
– Não, é sério. É uma das empresas de Richard Branson. Estamos em
busca
de locais nos Estados Unidos para uma megastore.
– Tenho medo até de pensar no que vocês vendem.
– Que maliciosa, você. Para começar, é uma loja de música.
Demi tomou um gole do drinque olhando para ele por cima da borda
cheia de sal da taça e sorrindo. Sel estava sempre dizendo que ela devia sair
mais, conhecer pessoas. Naquele instante, parecia um ótimo conselho.
– Seu hotel é aqui perto?
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