Quatro
Demi ficou olhando a menina se
afastar.
– Eu não devia ter dito
aquilo – disse ela em voz alta, percebendo como sua voz não era nada diante da
imensidão do céu estrelado.
Ela nem sabia ao certo por
que dissera aquilo, por que de repente sentira necessidade de caçoar da
vizinha. Dando um suspiro, voltou para dentro de casa. No instante em que
entrou na sala, o cheiro de maconha a oprimiu, fazendo seus olhos arderem. Sua
mãe estava no sofá com uma perna atirada sobre a mesa de centro e outra no
encosto. Estava com a boca aberta, com baba brilhando nos cantos dos lábios. E
a menina da casa em frente vira aquilo. Demi sentiu uma onda de vergonha. Sem
dúvida, os boatos já teriam chegado à escola na segunda-feira. A mãe de Demi Lovato é uma drogada. Era por isso que nunca
convidava ninguém para ir à sua casa. Quando se guarda segredo, é preciso fazer
isso sozinha, no escuro. Ela teria dado qualquer coisa para ter o tipo de mãe
que prepara o jantar para estranhos. Talvez por isso ela tivesse zombado do
nome da menina. Esse pensamento a irritou, e ela bateu a porta com força atrás
de si.
– Nuvem. Acorde.
Sua mãe respirou fundo,
roncando, e se sentou.
– O que houve?
– É hora do jantar.
A mãe afastou os cabelos
dos olhos e se esforçou para focar o relógio na parede.
– O que é isso… estamos num
asilo? São cinco horas.
Demi se surpreendeu que a
mãe ainda conseguisse ver as horas. Foi até a cozinha, serviu a comida em dois
pratos brancos e voltou para a sala.
– Pegue – disse, entregando
o prato e um garfo para a mãe.
– De onde isso veio? Você
cozinhou?
– Claro que não. A vizinha
trouxe para nós.
Nuvem olhou ao redor como
se estivesse perdida.
– Nós temos vizinhos?
Demi não se deu o trabalho
de responder. A mãe sempre se esquecia sobre o que elas estavam falando mesmo.
Isso tornava qualquer conversa impossível. Normalmente, Demi não se importava –
tinha tanta vontade de conversar com Nuvem quanto de assistir a filmes em preto e branco. Mas, agora, depois da visita daquela
menina, Demi sentia de um jeito ainda mais forte como sua situação era
diferente da que os outros adolescentes viviam. Se tivesse uma família de
verdade – uma mãe que preparasse comida e mandasse de presente para vizinhos
novos –, ela não se sentiria tão sozinha. Sentou num dos pufes mostarda em
formato de pera ao lado do sofá e disse:
– O que será que a Vovó
está fazendo agora?
– Provavelmente preparando
um daqueles bordados horrorosos com orações. Como se isso fosse salvar a alma
dela. Rá. Como está a escola?
Demi virou a cabeça
rapidamente. Nem acreditou que a mãe houvesse perguntado sobre a vida dela.
– Um monte de gente anda
comigo, mas… – começou, e franziu a testa.
Como poderia descrever sua
insatisfação? Tudo o que sabia era que se sentia solitária ali, mesmo com os
novos amigos.
– Eu fico querendo… – tentou continuar, e encolheu os ombros. – Não sei. Eu
queria…
– Nós temos ketchup? –
perguntou a mãe, olhando com ar intrigado para sua montanha de macarrão,
cutucando-a com o garfo enquanto se balançava ao ritmo da música.
Demi detestou a decepção que
sentiu. Sabia que não devia esperar nada da mãe.
– Vou para o meu quarto –
disse ela, levantando-se.
A última coisa que ouviu
antes de bater a porta do quarto foi a mãe dizendo:
“Talvez ficasse melhor com
queijo.”
Mais tarde, muito depois de
todos terem ido para a cama, Selena foi até o andar de baixo, calçou as enormes
botas de borracha do pai e saiu. Aquilo vinha se tornando um hábito
ultimamente: sair quando não conseguia dormir. Acima dela, o imenso céu negro
estava salpicado de estrelas. Aquele céu fazia com que ela se sentisse pequena
e desimportante. Uma menina solitária olhando para uma rua vazia que não dava
em lugar algum.
Sweetpea relinchou e trotou
na sua direção. Ela subiu na madeira mais alta da cerca.
– Olá, garota – disse,
tirando uma cenoura do bolso do casaco.
Selena olhou para a casa do
outro lado da rua. Era meia-noite e as luzes ainda estavam acesas. Sem dúvida, Demi
estaria dando uma festa para todo o pessoal popular da escola. Eles
provavelmente estavam rindo, dançando e falando sobre como eram bacanas. Selena
daria tudo o que tinha para ser convidada para apenas uma festa daquelas. Sweetpea
cutucou seu joelho e bufou.
– Eu sei. Eu estou
sonhando.
Com um suspiro, ela desceu
da cerca, fez um último carinho em Sweetpea e voltou para a cama. Algumas
noites mais tarde, depois de jantar bolinhos recheados e cereal, Demi tomou um
banho demorado, raspou as pernas e as axilas cuidadosamente e secou os cabelos
até eles ficarem lisos desde a raiz, sem um único cacho ou fio fora do lugar. Então foi até o armário e ficou tentando decidir o
que vestir. Seria sua primeira festa do colegial. Ela precisava estar bem.
Nenhuma das outras meninas do ginásio havia sido convidada. Ela era A
Escolhida. Pat Richmond –
o cara mais bonitão do time
de futebol – havia escolhido Demi para ir com ele. Haviam se encontrado na
lanchonete local na última quarta-feira à noite, o grupo de amigos dele e o
dela. Bastou uma troca de olhares entre os dois. Pat se afastou do bando de
caras enormes com quem estava e foi direto até Demi.
Ela o viu caminhando em sua
direção e quase desmaiou. O jukebox tocava “Stairway to Heaven”. Mais romântico, impossível.
– Eu poderia me encrencar
só de conversar com você – disse ele.
Ela tentou parecer madura e
experiente ao dizer:
– Eu gosto de encrenca.
O sorriso que ele lhe deu
foi diferente de tudo o que ela já vira. Pela primeira vez na vida, se sentiu
tão bonita quanto as pessoas sempre diziam que ela era.
– Quer ir à festa comigo na
sexta-feira?
– Acho que posso dar um
jeito – disse ela.
Era uma frase que ela vira
Erica Kane dizer numa novela.
– Eu pego você às dez –
falou ele. E, inclinando-se mais para perto dela, completou: – A menos que isso
seja depois da sua hora de dormir, garotinha.
– Alameda dos Vaga-lumes,
número 17. E eu não tenho hora de dormir. Ele sorriu de novo.
– Meu nome é Pat, aliás.
– O meu é Demi.
– Bem, Demi, vejo você às
dez.
Demi ainda não conseguia
acreditar naquilo. Nas últimas 48 horas, ela havia pensado de forma obsessiva
naquele primeiro encontro de verdade. Todas as outras vezes que ela saíra com
meninos fora em grupo ou em algum baile da escola. Mas agora era muito
diferente; e Pat era praticamente um homem. Eles poderiam se apaixonar, ela
sabia disso. E então, de mãos dadas com ele, ela deixaria de se sentir tão
solitária.
Ela finalmente escolheu a
roupa que iria usar.
Jeans de cintura baixa com
três botões e boca de sino, uma blusa decotada de linha cor-de-rosa e seus
sapatos plataforma de cortiça preferidos. Ela passou quase uma hora se
maquiando, passando mais e mais maquiagem até ficar linda. Mal podia esperar
para mostrar a Pat como podia ficar bonita. Pegou um maço de cigarros da mãe e
saiu do quarto. Na sala, sua mãe levantou o olhar vidrado da revista que estava
lendo.
– Ei, já são quase dez
horas. Aonde você vai?
– Um cara me convidou para
uma festa.
– Ele está aqui?
Claro. Como se Demi
fosse convidar alguém para entrar.
– Eu vou me encontrar com
ele na rua.
– Ah, ótimo. Não me acorde
quando chegar em casa.
– Pode deixar.
Lá fora estava escuro e
frio. A Via Láctea se estendia no céu como um caminho de estrelas.
Ela ficou esperando ao lado
da caixa de correspondência, trocando o peso do corpo de um pé para outro para
se manter aquecida. Estava com os braços arrepiados. O anel do humor em seu
dedo mudou de verde para roxo. Demi tentou se lembrar o que isso significava. Do
outro lado da rua, ladeira acima, a bonita casinha de fazenda brilhava na escuridão.
Cada janela era como um tablete de manteiga quente derretendo. Eles
provavelmente estavam em casa, reunidos ao redor de uma mesa grande, jogando
War. Ela imaginou o que eles fariam se ela simplesmente os visitasse um dia,
aparecesse na varanda e dissesse “oi”. Ela ouviu o carro de Pat antes de ver os
faróis. Com o rugido do motor, ela se esqueceu completamente da família do
outro lado da rua e desceu da calçada, acenando. O Dodge Charger verde parou ao
lado dela. O carro parecia pulsar com o som vibrante. Ela sentou no banco do
carona. A música estava tão alta que ela teve certeza de que ele não escutaria
o que ela dissesse. Sorrindo para ela, Pat pisou no acelerador e os dois
partiram feito um foguete, fazendo barulho na silenciosa rua rural. Quando
viraram numa rua de cascalho, ela viu a festa que estava acontecendo mais para
baixo. Havia dezenas de carros parados, formando um imenso círculo num pasto,
com os faróis acesos. “Taking Care of Business”, do Bachman
Turner Overdrive, retumbava dos rádios dos carros. Pat parou na fileira de
árvores que ficava ao longo da cerca. O pessoal estava espalhado por todo canto.
Tinha gente reunida ao redor das chamas da fogueira, de pé ao lado dos barris
de cerveja instalados no gramado. O chão estava cheio de copos plásticos
vazios. Perto do celeiro, um grupo de rapazes jogava futebol americano. Era fim de maio, ainda faltava um tempo para o verão, e a maioria das
pessoas estava usando casacos. Ela desejou não ter se esquecido do seu. Pat
segurou a mão dela com força, guiando-a através dos vários casais na direção de
um barril de cerveja, do qual serviu dois copos cheios. Com seu copo na mão,
ela deixou que ele a levasse até um ponto tranquilo logo atrás do perímetro de
carros. Lá, ele estendeu a jaqueta no chão e deixou que ela se sentasse.
– Eu não acreditei quando
vi você – disse Pat, sentando perto dela, bebendo a cerveja. – Você é a garota
mais bonita que esta cidade já viu. Todo mundo quer ficar com você.
– Mas é você quem está
comigo – disse ela, sorrindo.
Demi tinha a sensação de
estar mergulhando nos olhos escuros dele. Ele tomou um grande gole de cerveja, praticamente
esvaziando o copo, então se sentou e a beijou.
Outros caras já a haviam
beijado antes. Na maior parte das vezes, foram tentativas atrapalhadas e
nervosas enquanto dançavam uma música lenta. Desta vez foi diferente. A boca de
Pat parecia mágica. Ela suspirou feliz, sussurrando o nome dele. Quando ele se
afastou, estava olhando para ela com o mais puro e
brilhante amor nos olhos.
– Estou feliz que você
esteja aqui.
– Eu também.
Ele terminou a cerveja e se
levantou.
– Preciso de mais cerveja.
Os dois estavam na fila do
barril quando ele franziu a testa para ela.
– Ei, você não está
bebendo. Achei que gostava de festas.
– E gosto.
Ela abriu um sorriso
nervoso. Na realidade, nunca havia bebido antes, mas ele não ia querer ficar com ela se bancasse a nerd, e ela estava desesperada para que
ele gostasse dela.
– Saúde – disse ela,
virando o copo plástico nos lábios e bebendo toda a cerveja em tempo recorde. Não
conseguiu controlar um arroto quando terminou e deu uma risadinha.
– Legal! – disse ele,
assentindo com a cabeça e servindo mais dois copos. O segundo copo não desceu
tão mal e, no terceiro, Demi havia perdido completamente o paladar. Quando Pat
trouxe uma garrafa de vinho, ela bebeu um pouco também. Durante quase uma hora,
ficaram sentados em cima do casaco
dele, abraçados, bebendo e conversando. Ela não conhecia nenhuma das pessoas
sobre quem ele falava, mas isso não tinha importância. O que importava era a
forma como ele olhava para ela, o modo firme como
segurava sua mão.
– Venha – sussurrou ele. –
Vamos dançar.
Ela se sentiu zonza e meio
mole ao se levantar. Estava sem equilíbrio e não parava de tropeçar enquanto os
dois dançavam. Por fim, caiu no chão. Pat deu risada,
estendeu a mão para ela se levantar e a levou para um canto escuro e romântico
no meio das árvores. Rindo, ela seguiu caminhando desajeitadamente atrás dele e
ficou sem ar quando ele a
pegou nos braços e a beijou.
A sensação foi muito boa.
Ela sentiu a pulsação acelerar e o corpo se aquecer. Demi se perdeu na
intensidade do desejo dele. Ela se apertava contra ele como um gato, adorando o
jeito como ele fazia ela se sentir. A qualquer instante, ele iria se afastar,
olhar para ela e dizer “Eu te amo”, exatamente como Ryan O’Neal em Love Story. Talvez Demi inclusive usasse uma fala do filme quando dissesse o mesmo para ele. A música deles seria
“Stairway to Heaven”. Eles contariam que quando se conheceram…
A língua dele invadiu sua
boca, com força, dando uma volta. Aquilo pareceu uma espécie de sonda estranha,
e a sensação, de algo empurrando e forçando, a assustou. De repente, não estava
mais tão bom, não parecia certo. Ela tentou dizer para ele parar, mas sua voz
não saiu. Ele estava sugando todo o ar dela. As mãos dele estavam por todo
lado: em suas costas, na sua cintura,
puxando o sutiã, tentando
abri-lo. Ela o sentiu sendo aberto com um barulhinho nauseante. E então Pat
começou a tocar nos seios dela
– Não… – choramingou ela,
tentando empurrar as mãos dele.
Não era aquilo que ela
queria. Ela queria amor, romance, magia. Alguém para amá-la. Não… aquilo.
Ele agarrou as mãos dela
com facilidade, como se ela fosse um bebê, e a segurou com tanta força que ela
não conseguiu se mexer.
– Não, Pat, não…
– Qual é, Demi. Você disse
que gostava de encrenca. Não faça doce agora. Ele a empurrou para trás, e ela
tropeçou, caindo no chão com força e batendo a cabeça. Por um instante, sua
visão ficou embaçada. Quando voltou
ao normal, ele estava de joelhos entre suas pernas. Estava segurando as duas
mãos dela com uma das mãos apenas, prendendo-a ao chão.
– Assim que eu gosto –
disse ele, abrindo as pernas dela.
Empurrando a blusa de Demi
para cima, ele olhou fixamente para o seio nu da
garota.
– Ah, que beleza…
Ele segurou um seio e
beliscou o mamilo com força. Enfiou a outra mão na calça
dela, por dentro da calcinha.
– Pare. Por favor…
Demi tentava
desesperadamente se soltar, mas quanto mais ela se remexia, mais ele parecia
desejá-la. Então ele enfiou, com força, os dedos no
meio das suas pernas, mexendo-os dentro dela.
– Vamos lá, você vai
gostar.
Ela sentiu que estava
começando a chorar.
– Não…
– Ah, assim…
Ele cobriu o corpo dela com
o dele, pressionando-a contra a grama molhada. Agora ela estava chorando tanto
que sentia o gosto das próprias lágrimas, mas ele não parecia se importar. Os
beijos dele estavam diferentes – babados, chupando, mordendo. Doía, mas não
tanto quanto o cinto dele batendo em sua barriga quando ele abriu as calças, ou
quando ele enfiou o pênis…
Ela fechou os olhos bem
apertado ao sentir a dor no meio das pernas, como se fosse rasgada por dentro. Então,
de repente, terminou. Ele rolou de cima dela e ficou
deitado ao seu lado, abraçando-a e beijando-a no rosto, como se o que tivesse
acabado de fazer fosse amor.
– Ei, você está chorando –
constatou ele, tirando gentilmente os cabelos dela do rosto. – O que houve? Eu
achei que você quisesse.
Ela não sabia o que dizer.
Como qualquer garota, havia imaginado como seria perder a virgindade, mas em
seus sonhos nunca tinha sido assim.
– Quisesse isso?
Ele franziu a testa com
irritação.
– Vamos lá, Demi, vamos
dançar.
A forma como ele disse
isso, tão baixinho, como se realmente estivesse confuso com a reação dela, só
piorou as coisas. Ela evidentemente fizera algo
errado, provocara-o, e era isso que acontecia com meninas que brincavam assim. Ele
a encarou por mais um tempo, então se levantou e vestiu a calça.
– Que seja. Eu preciso de
uma bebida. Vamos lá.
Ela se virou de lado.
– Vá embora.
Ela o sentiu ao seu lado,
sabia que estava olhando para ela.
– Você agiu como se
quisesse, caramba. Você não pode dar corda para um cara e depois simplesmente
ficar fria. Cresça, garota. A culpa foi sua. Ela fechou os olhos e o ignorou,
agradecendo quando ele enfim saiu.
Naquele momento, ficou
contente por ser deixada sozinha.
Demi ficou deitada, sentindo-se quebrada, ferida e, o pior de tudo,
burra. Depois de mais ou menos uma hora, ouviu que a festa chegava ao fim, os motores dos carros dando a partida e os pneus espalhando
cascalho ao ir embora.
E ela continuou ali,
quieta, sem conseguir se mexer. Aquilo era tudo culpa dela. Ele tinha razão.
Ela era burra e nova demais. Tudo o que queria era alguém para amá-la.
– Burra – sibilou,
sentando, afinal.
Movendo-se devagar, ela se
vestiu e tentou ficar de pé. Com o movimento,sentiu-se
enjoada e imediatamente vomitou em cima dos sapatos preferidos.
Quando terminou, abaixou-se
para pegar a bolsa, que segurou forte contra o peito, e percorreu o longo e
doloroso caminho estrada acima. Não havia carros na rua tão tarde da noite, e
ela agradeceu por isso. Não queria ter de explicar a ninguém por que estava com
os cabelos cheios de agulhas de pinheiro e os sapatos sujos de vômito. Durante
todo o caminho para casa, ela rememorou o que havia acontecido – a forma como
Pat sorriu para ela ao convidá-la para a festa. O suave primeiro beijo que ele
lhe deu. A maneira como ele conversou, dando a entender que ela
era importante. Então o
outro Pat, com as mãos ásperas e a língua e os dedos invasivos, enfiando o pênis
dentro dela. Quanto mais ela relembrava tudo, mais solitária e desolada se
sentia. Se ela ao menos tivesse alguém em quem confiasse para conversar. Talvez isso diminuísse um pouco dessa dor.
Mas, claro, não havia ninguém. Este era mais um segredo que ela teria de
guardar, como a mãe esquisitona e o pai desconhecido. As pessoas diriam que ela
tinha pedido aquilo, uma menina do ginásio numa festa do colegial. Quando se
aproximava da garagem da sua casa, começou a caminhar um pouco mais devagar. A
ideia de ir para casa, de estar tão sozinha num lugar que deveria ser um
refúgio para ela, com uma mulher que deveria amá-la, de repente ficou
insuportável. O velho cavalo cinzento dos vizinhos trotou até a cerca e
relinchou para ela. Demi atravessou a rua e subiu a ladeira. Na cerca, ela
arrancou um punhado de grama e deu para o bicho.
– Ei, garotão.
O cavalo cheirou o punhado
de grama, deu um ronco molhado e foi embora.
– Ela gosta de cenouras.
Demi olhou para cima de
repente e viu a vizinha sentada em cima da cerca.
Longos minutos de silêncio
se passaram entre as duas. O único barulho era
o relinchar silencioso do
cavalo.
– Está tarde – disse a
menina da casa em frente.
– É.
– Eu adoro ficar aqui fora
à noite. As estrelas brilham muito. Às vezes, quando ficamos olhando para o céu por tempo bastante, podemos jurar que pequenos
pontinhos começam a cair ao nosso redor, como vaga-lumes. Acho que foi assim
que nossa rua ganhou este nome. Você provavelmente acha que eu sou uma nerd só
por dizer isso. Demi queria responder, mas não conseguiu. Ela começava a
tremer. Precisava de concentração total simplesmente para ficar parada. A menina tinha razão sobre as estrelas – elas eram
muito brilhantes. Tudo o que Demi conseguia ver era como se sentia pequena
naquele momento. E burra. A menina – Selena, Demi se lembrou – desceu da cerca.
Estava usando uma camiseta muito larga com uma estampa desbotada da Família
Dó-Ré-Mi. Suas botas enormes afundavam na lama. Quando ela caminhava, seus pés
produziam um barulho de sucção.
– Ei, você não parece muito
bem – falou ela de um jeito chiado, por causa do aparelho. – E está com cheiro
de vômito.
– Eu estou ótima – disse
ela, ficando tensa quando Selena se aproximou.
– Você está bem? De
verdade?
Para horror absoluto de Demi,
ela começou a chorar.
Selena ficou ali parada por um tempo, olhando-a com olhos arregalados por detrás
daqueles óculos de pateta. Então, sem dizer nada, abraçou Demi.
Demi se encolheu com o
contato. Foi algo estranho e inesperado. Pensou em recuar, mas descobriu que
não conseguia se mexer. Não conseguia se lembrar da última vez que alguém a
havia abraçado daquela maneira e, de repente, estava agarrada àquela menina
esquisita, com medo de se soltar, com medo de que, sem Selena, ela ficasse como
um barco à deriva, perdido no mar.
– Tenho certeza de que ela
vai melhorar – disse Selena quando as lágrimas de Demi diminuíram.
Demi recuou, franzindo a
testa. Levou um instante para compreender. O câncer. Selena achava que ela
estava preocupada com a mãe. Era a desculpa perfeita. Então por que ela sentia
tanta vontade de contar àquela menina a história verdadeira e perguntar o que
ela havia feito de tão errado?
– Você quer conversar sobre
o assunto? – perguntou Sel, tirando o aparelho e deixando-o em cima de um
esteio da cerca.
Demi a encarou. Sob a luz
prateada da lua cheia, ela não viu nada além de compaixão nos olhos verdes
ampliados de Sel, e quis conversar. Teve uma vontade tão grande que chegou a se
sentir nauseada. Mas não sabia como começar.
– Vamos lá – disse Sel.
Ela a levou até a varanda
da frente da casa. Lá, sentou no degrau e puxou a camiseta surrada por cima dos
joelhos.
– A minha tia Georgia teve
câncer – disse ela. – Foi uma droga. Ela perdeu todos os cabelos. Mas está bem
agora. Demi se sentou ao lado dela e largou a bolsa no chão. O cheiro de vômito
estava forte. Ela acendeu um cigarro para disfarçar o fedor. Antes de se dar
conta, disse:
– Fui a uma festa na beira
do rio hoje à noite.
– Uma festa do colegial? –
perguntou Sel, parecendo impressionada.
– Pat Richmond me convidou.
– O zagueiro? Nossa. Minha
mãe não me deixaria nem ficar na mesma fila de um formando do colegial. Ela é tão idiota.
– Ela não é idiota.
– Ela acha que meninos de
18 anos são perigosos. Ela os chama de pênis com mãos e pés. Isso não é idiota?
Demi olhou para o campo e
respirou fundo. Não podia acreditar que ia contar àquela menina o que havia
acontecido, mas a verdade estava queimando dentro dela. Se não se livrasse
daquilo, iria pegar fogo.
– Ele me estuprou.
Selena se virou para ela. Demi
sentiu aqueles olhos verdes fixos em seu perfil, mas não se mexeu, não se virou. Sentia uma vergonha tão imensa
que não poderia vê-la refletida nos olhos de Sel.
Esperou que Selena dissesse alguma coisa, que a chamasse de idiota, mas o
silêncio continuou. Finalmente, ela não suportou mais e olhou para o lado.
– Você está bem? –
perguntou Selena de um jeito suave.
Demi reviveu tudo naquelas
poucas palavras. Sentiu os olhos serem tomados de lágrimas, que borraram sua
visão. Mais uma vez, Selena a abraçou. Demi se deixou ser confortada pela
primeira vez desde que era criança. Quando enfim se afastou, tentou sorrir.
– Eu estou afogando você.
– A gente devia contar a
alguém.
– De jeito nenhum. Vão
dizer que foi culpa minha. Este é o nosso segredo, está bem?
– Está bem. – concordou Sel,
com uma ruga na testa.
Demi secou os olhos e
tragou o cigarro novamente, fazendo um esforço para se reequilibrar. De
repente, sentiu-se tonta.
– Por que está sendo tão
legal comigo?
– Você pareceu sozinha.
Acredite em mim, eu sei como é isso.
– Sabe? Mas você tem uma
família.
– Eles precisam gostar de mim – suspirou Sel. – O pessoal na escola me trata como
se eu tivesse uma doença contagiosa. Eu tinha amigas, mas… Você provavelmente
não sabe do que eu estou falando. Você é tão popular…
– Ser popular só significa
que um monte de gente pensa que conhece você.
– Eu aceitaria isso.
As duas ficaram em
silêncio. Demi terminou o cigarro e o apagou. Ela e Sel eram tão diferentes,
contrastavam tanto quanto aquele campo escuro banhado pelo luar. Mas parecia
tão absolutamente fácil conversar com ela. Demi se pegou quase sorrindo por
isso, na pior noite da sua vida. Isso era incrível. As duas passaram uma hora
sentadas conversando em silêncio. Elas não disseram nada muito importante nem
dividiram mais segredos, apenas conversaram.
Finalmente, Selena bocejou
e Demi se levantou:
– Bem, é melhor eu ir para
casa.
As duas se levantaram e
caminharam até a rua. Na caixa de
correspondências, Selena parou.
– Então, tchau.
– Tchau.
Demi ficou ali parada por um instante, sentindo-se esquisita. Queria
abraçar Sel, talvez até mesmo se agarrar a ela e lhe dizer quanto aquela noite
havia ficado melhor por sua causa, mas não ousou fazer isso. Ela havia
aprendido uma ou outra coisa sobre vulnerabilidade com sua mãe, e se sentia
frágil demais naquele momento para arriscar uma humilhação. Ao se virar, seguiu
para casa. Lá dentro, foi direto para o chuveiro. No banho, com a
água quente caindo em seu
corpo, pensou no que havia acontecido a ela naquela noite – o que ela havia
deixado acontecer porque queria ser bacana – e chorou. Quando terminou, e as
lágrimas haviam se tornado apenas um nozinho apertado em sua garganta, pôs numa
gaveta no fundo da mente a lembrança daquela noite. Ela a guardou junto com as
lembranças das vezes em que Nuvem a havia abandonado e começou imediatamente a
tratar de esquecer que ela estava lá.
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