domingo, 2 de março de 2014

Amigas Para Sempre Capítulo 4

Quatro
Demi ficou olhando a menina se afastar.
– Eu não devia ter dito aquilo – disse ela em voz alta, percebendo como sua voz não era nada diante da imensidão do céu estrelado.
Ela nem sabia ao certo por que dissera aquilo, por que de repente sentira necessidade de caçoar da vizinha. Dando um suspiro, voltou para dentro de casa. No instante em que entrou na sala, o cheiro de maconha a oprimiu, fazendo seus olhos arderem. Sua mãe estava no sofá com uma perna atirada sobre a mesa de centro e outra no encosto. Estava com a boca aberta, com baba brilhando nos cantos dos lábios. E a menina da casa em frente vira aquilo. Demi sentiu uma onda de vergonha. Sem dúvida, os boatos já teriam chegado à escola na segunda-feira. A mãe de Demi Lovato é uma drogada. Era por isso que nunca convidava ninguém para ir à sua casa. Quando se guarda segredo, é preciso fazer isso sozinha, no escuro. Ela teria dado qualquer coisa para ter o tipo de mãe que prepara o jantar para estranhos. Talvez por isso ela tivesse zombado do nome da menina. Esse pensamento a irritou, e ela bateu a porta com força atrás de si.
– Nuvem. Acorde.
Sua mãe respirou fundo, roncando, e se sentou.
– O que houve?
– É hora do jantar.
A mãe afastou os cabelos dos olhos e se esforçou para focar o relógio na parede.
– O que é isso… estamos num asilo? São cinco horas.
Demi se surpreendeu que a mãe ainda conseguisse ver as horas. Foi até a cozinha, serviu a comida em dois pratos brancos e voltou para a sala.
– Pegue – disse, entregando o prato e um garfo para a mãe.
– De onde isso veio? Você cozinhou?
– Claro que não. A vizinha trouxe para nós.
Nuvem olhou ao redor como se estivesse perdida.
– Nós temos vizinhos?
Demi não se deu o trabalho de responder. A mãe sempre se esquecia sobre o que elas estavam falando mesmo. Isso tornava qualquer conversa impossível. Normalmente, Demi não se importava – tinha tanta vontade de conversar com Nuvem quanto de assistir a filmes em preto e branco. Mas, agora, depois da visita daquela menina, Demi sentia de um jeito ainda mais forte como sua situação era diferente da que os outros adolescentes viviam. Se tivesse uma família de verdade – uma mãe que preparasse comida e mandasse de presente para vizinhos novos –, ela não se sentiria tão sozinha. Sentou num dos pufes mostarda em formato de pera ao lado do sofá e disse:
– O que será que a Vovó está fazendo agora?
– Provavelmente preparando um daqueles bordados horrorosos com orações. Como se isso fosse salvar a alma dela. Rá. Como está a escola?
Demi virou a cabeça rapidamente. Nem acreditou que a mãe houvesse perguntado sobre a vida dela.
– Um monte de gente anda comigo, mas… – começou, e franziu a testa.
Como poderia descrever sua insatisfação? Tudo o que sabia era que se sentia solitária ali, mesmo com os novos amigos.
– Eu fico querendo… – tentou continuar, e encolheu os ombros. – Não sei. Eu queria…
– Nós temos ketchup? – perguntou a mãe, olhando com ar intrigado para sua montanha de macarrão, cutucando-a com o garfo enquanto se balançava ao ritmo da música.
Demi detestou a decepção que sentiu. Sabia que não devia esperar nada da mãe.
– Vou para o meu quarto – disse ela, levantando-se.
A última coisa que ouviu antes de bater a porta do quarto foi a mãe dizendo:
“Talvez ficasse melhor com queijo.”
Mais tarde, muito depois de todos terem ido para a cama, Selena foi até o andar de baixo, calçou as enormes botas de borracha do pai e saiu. Aquilo vinha se tornando um hábito ultimamente: sair quando não conseguia dormir. Acima dela, o imenso céu negro estava salpicado de estrelas. Aquele céu fazia com que ela se sentisse pequena e desimportante. Uma menina solitária olhando para uma rua vazia que não dava em lugar algum.
Sweetpea relinchou e trotou na sua direção. Ela subiu na madeira mais alta da cerca.
– Olá, garota – disse, tirando uma cenoura do bolso do casaco.
Selena olhou para a casa do outro lado da rua. Era meia-noite e as luzes ainda estavam acesas. Sem dúvida, Demi estaria dando uma festa para todo o pessoal popular da escola. Eles provavelmente estavam rindo, dançando e falando sobre como eram bacanas. Selena daria tudo o que tinha para ser convidada para apenas uma festa daquelas. Sweetpea cutucou seu joelho e bufou.
– Eu sei. Eu estou sonhando.
Com um suspiro, ela desceu da cerca, fez um último carinho em Sweetpea e voltou para a cama. Algumas noites mais tarde, depois de jantar bolinhos recheados e cereal, Demi tomou um banho demorado, raspou as pernas e as axilas cuidadosamente e secou os cabelos até eles ficarem lisos desde a raiz, sem um único cacho ou fio fora do lugar. Então foi até o armário e ficou tentando decidir o que vestir. Seria sua primeira festa do colegial. Ela precisava estar bem. Nenhuma das outras meninas do ginásio havia sido convidada. Ela era A Escolhida. Pat Richmond –
o cara mais bonitão do time de futebol – havia escolhido Demi para ir com ele. Haviam se encontrado na lanchonete local na última quarta-feira à noite, o grupo de amigos dele e o dela. Bastou uma troca de olhares entre os dois. Pat se afastou do bando de caras enormes com quem estava e foi direto até Demi.
Ela o viu caminhando em sua direção e quase desmaiou. O jukebox tocava “Stairway to Heaven”. Mais romântico, impossível.
– Eu poderia me encrencar só de conversar com você – disse ele.
Ela tentou parecer madura e experiente ao dizer:
– Eu gosto de encrenca.
O sorriso que ele lhe deu foi diferente de tudo o que ela já vira. Pela primeira vez na vida, se sentiu tão bonita quanto as pessoas sempre diziam que ela era.
– Quer ir à festa comigo na sexta-feira?
– Acho que posso dar um jeito – disse ela.
Era uma frase que ela vira Erica Kane dizer numa novela.
– Eu pego você às dez – falou ele. E, inclinando-se mais para perto dela, completou: – A menos que isso seja depois da sua hora de dormir, garotinha.
– Alameda dos Vaga-lumes, número 17. E eu não tenho hora de dormir. Ele sorriu de novo.
– Meu nome é Pat, aliás.
– O meu é Demi.
– Bem, Demi, vejo você às dez.
Demi ainda não conseguia acreditar naquilo. Nas últimas 48 horas, ela havia pensado de forma obsessiva naquele primeiro encontro de verdade. Todas as outras vezes que ela saíra com meninos fora em grupo ou em algum baile da escola. Mas agora era muito diferente; e Pat era praticamente um homem. Eles poderiam se apaixonar, ela sabia disso. E então, de mãos dadas com ele, ela deixaria de se sentir tão solitária.
Ela finalmente escolheu a roupa que iria usar.
Jeans de cintura baixa com três botões e boca de sino, uma blusa decotada de linha cor-de-rosa e seus sapatos plataforma de cortiça preferidos. Ela passou quase uma hora se maquiando, passando mais e mais maquiagem até ficar linda. Mal podia esperar para mostrar a Pat como podia ficar bonita. Pegou um maço de cigarros da mãe e saiu do quarto. Na sala, sua mãe levantou o olhar vidrado da revista que estava lendo.
– Ei, já são quase dez horas. Aonde você vai?
– Um cara me convidou para uma festa.
– Ele está aqui?
Claro. Como se Demi fosse convidar alguém para entrar.
– Eu vou me encontrar com ele na rua.
– Ah, ótimo. Não me acorde quando chegar em casa.
– Pode deixar.
Lá fora estava escuro e frio. A Via Láctea se estendia no céu como um caminho de estrelas.
Ela ficou esperando ao lado da caixa de correspondência, trocando o peso do corpo de um pé para outro para se manter aquecida. Estava com os braços arrepiados. O anel do humor em seu dedo mudou de verde para roxo. Demi tentou se lembrar o que isso significava. Do outro lado da rua, ladeira acima, a bonita casinha de fazenda brilhava na escuridão. Cada janela era como um tablete de manteiga quente derretendo. Eles provavelmente estavam em casa, reunidos ao redor de uma mesa grande, jogando War. Ela imaginou o que eles fariam se ela simplesmente os visitasse um dia, aparecesse na varanda e dissesse “oi”. Ela ouviu o carro de Pat antes de ver os faróis. Com o rugido do motor, ela se esqueceu completamente da família do outro lado da rua e desceu da calçada, acenando. O Dodge Charger verde parou ao lado dela. O carro parecia pulsar com o som vibrante. Ela sentou no banco do carona. A música estava tão alta que ela teve certeza de que ele não escutaria o que ela dissesse. Sorrindo para ela, Pat pisou no acelerador e os dois partiram feito um foguete, fazendo barulho na silenciosa rua rural. Quando viraram numa rua de cascalho, ela viu a festa que estava acontecendo mais para baixo. Havia dezenas de carros parados, formando um imenso círculo num pasto, com os faróis acesos. “Taking Care of Business”, do Bachman Turner Overdrive, retumbava dos rádios dos carros. Pat parou na fileira de árvores que ficava ao longo da cerca. O pessoal estava espalhado por todo canto. Tinha gente reunida ao redor das chamas da fogueira, de pé ao lado dos barris de cerveja instalados no gramado. O chão estava cheio de copos plásticos vazios. Perto do celeiro, um grupo de rapazes jogava futebol americano. Era fim de maio, ainda faltava um tempo para o verão, e a maioria das pessoas estava usando casacos. Ela desejou não ter se esquecido do seu. Pat segurou a mão dela com força, guiando-a através dos vários casais na direção de um barril de cerveja, do qual serviu dois copos cheios. Com seu copo na mão, ela deixou que ele a levasse até um ponto tranquilo logo atrás do perímetro de carros. Lá, ele estendeu a jaqueta no chão e deixou que ela se sentasse.
– Eu não acreditei quando vi você – disse Pat, sentando perto dela, bebendo a cerveja. – Você é a garota mais bonita que esta cidade já viu. Todo mundo quer ficar com você.
– Mas é você quem está comigo – disse ela, sorrindo.
Demi tinha a sensação de estar mergulhando nos olhos escuros dele. Ele tomou um grande gole de cerveja, praticamente esvaziando o copo, então se sentou e a beijou.
Outros caras já a haviam beijado antes. Na maior parte das vezes, foram tentativas atrapalhadas e nervosas enquanto dançavam uma música lenta. Desta vez foi diferente. A boca de Pat parecia mágica. Ela suspirou feliz, sussurrando o nome dele. Quando ele se afastou, estava olhando para ela com o mais puro e
brilhante amor nos olhos.
– Estou feliz que você esteja aqui.
– Eu também.
Ele terminou a cerveja e se levantou.
– Preciso de mais cerveja.
Os dois estavam na fila do barril quando ele franziu a testa para ela.
– Ei, você não está bebendo. Achei que gostava de festas.
– E gosto.
Ela abriu um sorriso nervoso. Na realidade, nunca havia bebido antes, mas ele não ia querer ficar com ela se bancasse a nerd, e ela estava desesperada para que ele gostasse dela.
– Saúde – disse ela, virando o copo plástico nos lábios e bebendo toda a cerveja em tempo recorde. Não conseguiu controlar um arroto quando terminou e deu uma risadinha.
– Legal! – disse ele, assentindo com a cabeça e servindo mais dois copos. O segundo copo não desceu tão mal e, no terceiro, Demi havia perdido completamente o paladar. Quando Pat trouxe uma garrafa de vinho, ela bebeu um pouco também. Durante quase uma hora, ficaram sentados em cima do casaco dele, abraçados, bebendo e conversando. Ela não conhecia nenhuma das pessoas sobre quem ele falava, mas isso não tinha importância. O que importava era a forma como ele olhava para ela, o modo firme como segurava sua mão.
– Venha – sussurrou ele. – Vamos dançar.
Ela se sentiu zonza e meio mole ao se levantar. Estava sem equilíbrio e não parava de tropeçar enquanto os dois dançavam. Por fim, caiu no chão. Pat deu risada, estendeu a mão para ela se levantar e a levou para um canto escuro e romântico no meio das árvores. Rindo, ela seguiu caminhando desajeitadamente atrás dele e ficou sem ar quando ele a pegou nos braços e a beijou.
A sensação foi muito boa. Ela sentiu a pulsação acelerar e o corpo se aquecer. Demi se perdeu na intensidade do desejo dele. Ela se apertava contra ele como um gato, adorando o jeito como ele fazia ela se sentir. A qualquer instante, ele iria se afastar, olhar para ela e dizer “Eu te amo”, exatamente como Ryan O’Neal em Love Story. Talvez Demi inclusive usasse uma fala do filme quando dissesse o mesmo para ele. A música deles seria “Stairway to Heaven”. Eles contariam que quando se conheceram…
A língua dele invadiu sua boca, com força, dando uma volta. Aquilo pareceu uma espécie de sonda estranha, e a sensação, de algo empurrando e forçando, a assustou. De repente, não estava mais tão bom, não parecia certo. Ela tentou dizer para ele parar, mas sua voz não saiu. Ele estava sugando todo o ar dela. As mãos dele estavam por todo lado: em suas costas, na sua cintura,
puxando o sutiã, tentando abri-lo. Ela o sentiu sendo aberto com um barulhinho nauseante. E então Pat começou a tocar nos seios dela
– Não… – choramingou ela, tentando empurrar as mãos dele.
Não era aquilo que ela queria. Ela queria amor, romance, magia. Alguém para amá-la. Não… aquilo.
Ele agarrou as mãos dela com facilidade, como se ela fosse um bebê, e a segurou com tanta força que ela não conseguiu se mexer.
– Não, Pat, não…
– Qual é, Demi. Você disse que gostava de encrenca. Não faça doce agora. Ele a empurrou para trás, e ela tropeçou, caindo no chão com força e batendo a cabeça. Por um instante, sua visão ficou embaçada. Quando voltou ao normal, ele estava de joelhos entre suas pernas. Estava segurando as duas mãos dela com uma das mãos apenas, prendendo-a ao chão.
– Assim que eu gosto – disse ele, abrindo as pernas dela.
Empurrando a blusa de Demi para cima, ele olhou fixamente para o seio nu da garota.
– Ah, que beleza…
Ele segurou um seio e beliscou o mamilo com força. Enfiou a outra mão na calça dela, por dentro da calcinha.
– Pare. Por favor…
Demi tentava desesperadamente se soltar, mas quanto mais ela se remexia, mais ele parecia desejá-la. Então ele enfiou, com força, os dedos no meio das suas pernas, mexendo-os dentro dela.
– Vamos lá, você vai gostar.
Ela sentiu que estava começando a chorar.
– Não…
– Ah, assim…
Ele cobriu o corpo dela com o dele, pressionando-a contra a grama molhada. Agora ela estava chorando tanto que sentia o gosto das próprias lágrimas, mas ele não parecia se importar. Os beijos dele estavam diferentes – babados, chupando, mordendo. Doía, mas não tanto quanto o cinto dele batendo em sua barriga quando ele abriu as calças, ou quando ele enfiou o pênis…
Ela fechou os olhos bem apertado ao sentir a dor no meio das pernas, como se fosse rasgada por dentro. Então, de repente, terminou. Ele rolou de cima dela e ficou deitado ao seu lado, abraçando-a e beijando-a no rosto, como se o que tivesse acabado de fazer fosse amor.
– Ei, você está chorando – constatou ele, tirando gentilmente os cabelos dela do rosto. – O que houve? Eu achei que você quisesse.
Ela não sabia o que dizer. Como qualquer garota, havia imaginado como seria perder a virgindade, mas em seus sonhos nunca tinha sido assim.
– Quisesse isso?
Ele franziu a testa com irritação.
– Vamos lá, Demi, vamos dançar.
A forma como ele disse isso, tão baixinho, como se realmente estivesse confuso com a reação dela, só piorou as coisas. Ela evidentemente fizera algo errado, provocara-o, e era isso que acontecia com meninas que brincavam assim. Ele a encarou por mais um tempo, então se levantou e vestiu a calça.
– Que seja. Eu preciso de uma bebida. Vamos lá.
Ela se virou de lado.
– Vá embora.
Ela o sentiu ao seu lado, sabia que estava olhando para ela.
– Você agiu como se quisesse, caramba. Você não pode dar corda para um cara e depois simplesmente ficar fria. Cresça, garota. A culpa foi sua. Ela fechou os olhos e o ignorou, agradecendo quando ele enfim saiu.
Naquele momento, ficou contente por ser deixada sozinha.
Demi ficou deitada, sentindo-se quebrada, ferida e, o pior de tudo, burra. Depois de mais ou menos uma hora, ouviu que a festa chegava ao fim, os motores dos carros dando a partida e os pneus espalhando cascalho ao ir embora.
E ela continuou ali, quieta, sem conseguir se mexer. Aquilo era tudo culpa dela. Ele tinha razão. Ela era burra e nova demais. Tudo o que queria era alguém para amá-la.
– Burra – sibilou, sentando, afinal.
Movendo-se devagar, ela se vestiu e tentou ficar de pé. Com o movimento,sentiu-se enjoada e imediatamente vomitou em cima dos sapatos preferidos.
Quando terminou, abaixou-se para pegar a bolsa, que segurou forte contra o peito, e percorreu o longo e doloroso caminho estrada acima. Não havia carros na rua tão tarde da noite, e ela agradeceu por isso. Não queria ter de explicar a ninguém por que estava com os cabelos cheios de agulhas de pinheiro e os sapatos sujos de vômito. Durante todo o caminho para casa, ela rememorou o que havia acontecido – a forma como Pat sorriu para ela ao convidá-la para a festa. O suave primeiro beijo que ele lhe deu. A maneira como ele conversou, dando a entender que ela
era importante. Então o outro Pat, com as mãos ásperas e a língua e os dedos invasivos, enfiando o pênis dentro dela. Quanto mais ela relembrava tudo, mais solitária e desolada se sentia. Se ela ao menos tivesse alguém em quem confiasse para conversar. Talvez isso diminuísse um pouco dessa dor. Mas, claro, não havia ninguém. Este era mais um segredo que ela teria de guardar, como a mãe esquisitona e o pai desconhecido. As pessoas diriam que ela tinha pedido aquilo, uma menina do ginásio numa festa do colegial. Quando se aproximava da garagem da sua casa, começou a caminhar um pouco mais devagar. A ideia de ir para casa, de estar tão sozinha num lugar que deveria ser um refúgio para ela, com uma mulher que deveria amá-la, de repente ficou insuportável. O velho cavalo cinzento dos vizinhos trotou até a cerca e relinchou para ela. Demi atravessou a rua e subiu a ladeira. Na cerca, ela arrancou um punhado de grama e deu para o bicho.
– Ei, garotão.
O cavalo cheirou o punhado de grama, deu um ronco molhado e foi embora.
– Ela gosta de cenouras.
Demi olhou para cima de repente e viu a vizinha sentada em cima da cerca.
Longos minutos de silêncio se passaram entre as duas. O único barulho era
o relinchar silencioso do cavalo.
– Está tarde – disse a menina da casa em frente.
– É.
– Eu adoro ficar aqui fora à noite. As estrelas brilham muito. Às vezes, quando ficamos olhando para o céu por tempo bastante, podemos jurar que pequenos pontinhos começam a cair ao nosso redor, como vaga-lumes. Acho que foi assim que nossa rua ganhou este nome. Você provavelmente acha que eu sou uma nerd só por dizer isso. Demi queria responder, mas não conseguiu. Ela começava a tremer. Precisava de concentração total simplesmente para ficar parada. A menina tinha razão sobre as estrelas – elas eram muito brilhantes. Tudo o que Demi conseguia ver era como se sentia pequena naquele momento. E burra. A menina – Selena, Demi se lembrou – desceu da cerca. Estava usando uma camiseta muito larga com uma estampa desbotada da Família Dó-Ré-Mi. Suas botas enormes afundavam na lama. Quando ela caminhava, seus pés produziam um barulho de sucção.
– Ei, você não parece muito bem – falou ela de um jeito chiado, por causa do aparelho. – E está com cheiro de vômito.
– Eu estou ótima – disse ela, ficando tensa quando Selena se aproximou.
– Você está bem? De verdade?
Para horror absoluto de Demi, ela começou a chorar.
Selena ficou ali parada por um tempo, olhando-a com olhos arregalados por detrás daqueles óculos de pateta. Então, sem dizer nada, abraçou Demi.
Demi se encolheu com o contato. Foi algo estranho e inesperado. Pensou em recuar, mas descobriu que não conseguia se mexer. Não conseguia se lembrar da última vez que alguém a havia abraçado daquela maneira e, de repente, estava agarrada àquela menina esquisita, com medo de se soltar, com medo de que, sem Selena, ela ficasse como um barco à deriva, perdido no mar.
– Tenho certeza de que ela vai melhorar – disse Selena quando as lágrimas de Demi diminuíram.
Demi recuou, franzindo a testa. Levou um instante para compreender. O câncer. Selena achava que ela estava preocupada com a mãe. Era a desculpa perfeita. Então por que ela sentia tanta vontade de contar àquela menina a história verdadeira e perguntar o que ela havia feito de tão errado?
– Você quer conversar sobre o assunto? – perguntou Sel, tirando o aparelho e deixando-o em cima de um esteio da cerca.
Demi a encarou. Sob a luz prateada da lua cheia, ela não viu nada além de compaixão nos olhos verdes ampliados de Sel, e quis conversar. Teve uma vontade tão grande que chegou a se sentir nauseada. Mas não sabia como começar.
– Vamos lá – disse Sel.
Ela a levou até a varanda da frente da casa. Lá, sentou no degrau e puxou a camiseta surrada por cima dos joelhos.
– A minha tia Georgia teve câncer – disse ela. – Foi uma droga. Ela perdeu todos os cabelos. Mas está bem agora. Demi se sentou ao lado dela e largou a bolsa no chão. O cheiro de vômito estava forte. Ela acendeu um cigarro para disfarçar o fedor. Antes de se dar conta, disse:
– Fui a uma festa na beira do rio hoje à noite.
– Uma festa do colegial? – perguntou Sel, parecendo impressionada.
– Pat Richmond me convidou.
– O zagueiro? Nossa. Minha mãe não me deixaria nem ficar na mesma fila de um formando do colegial. Ela é tão idiota.
– Ela não é idiota.
– Ela acha que meninos de 18 anos são perigosos. Ela os chama de pênis com mãos e pés. Isso não é idiota?
Demi olhou para o campo e respirou fundo. Não podia acreditar que ia contar àquela menina o que havia acontecido, mas a verdade estava queimando dentro dela. Se não se livrasse daquilo, iria pegar fogo.
– Ele me estuprou.
Selena se virou para ela. Demi sentiu aqueles olhos verdes fixos em seu perfil, mas não se mexeu, não se virou. Sentia uma vergonha tão imensa que não poderia vê-la refletida nos olhos de Sel. Esperou que Selena dissesse alguma coisa, que a chamasse de idiota, mas o silêncio continuou. Finalmente, ela não suportou mais e olhou para o lado.
– Você está bem? – perguntou Selena de um jeito suave.
Demi reviveu tudo naquelas poucas palavras. Sentiu os olhos serem tomados de lágrimas, que borraram sua visão. Mais uma vez, Selena a abraçou. Demi se deixou ser confortada pela primeira vez desde que era criança. Quando enfim se afastou, tentou sorrir.
– Eu estou afogando você.
– A gente devia contar a alguém.
– De jeito nenhum. Vão dizer que foi culpa minha. Este é o nosso segredo, está bem?
– Está bem. – concordou Sel, com uma ruga na testa.
Demi secou os olhos e tragou o cigarro novamente, fazendo um esforço para se reequilibrar. De repente, sentiu-se tonta.
– Por que está sendo tão legal comigo?
– Você pareceu sozinha. Acredite em mim, eu sei como é isso.
– Sabe? Mas você tem uma família.
– Eles precisam gostar de mim – suspirou Sel. – O pessoal na escola me trata como se eu tivesse uma doença contagiosa. Eu tinha amigas, mas… Você provavelmente não sabe do que eu estou falando. Você é tão popular…
– Ser popular só significa que um monte de gente pensa que conhece você.
– Eu aceitaria isso.
As duas ficaram em silêncio. Demi terminou o cigarro e o apagou. Ela e Sel eram tão diferentes, contrastavam tanto quanto aquele campo escuro banhado pelo luar. Mas parecia tão absolutamente fácil conversar com ela. Demi se pegou quase sorrindo por isso, na pior noite da sua vida. Isso era incrível. As duas passaram uma hora sentadas conversando em silêncio. Elas não disseram nada muito importante nem dividiram mais segredos, apenas conversaram.
Finalmente, Selena bocejou e Demi se levantou:
– Bem, é melhor eu ir para casa.
As duas se levantaram e caminharam até a rua. Na caixa de
correspondências, Selena parou.
– Então, tchau.
– Tchau.
Demi ficou ali parada por um instante, sentindo-se esquisita. Queria abraçar Sel, talvez até mesmo se agarrar a ela e lhe dizer quanto aquela noite havia ficado melhor por sua causa, mas não ousou fazer isso. Ela havia aprendido uma ou outra coisa sobre vulnerabilidade com sua mãe, e se sentia frágil demais naquele momento para arriscar uma humilhação. Ao se virar, seguiu para casa. Lá dentro, foi direto para o chuveiro. No banho, com a

água quente caindo em seu corpo, pensou no que havia acontecido a ela naquela noite – o que ela havia deixado acontecer porque queria ser bacana – e chorou. Quando terminou, e as lágrimas haviam se tornado apenas um nozinho apertado em sua garganta, pôs numa gaveta no fundo da mente a lembrança daquela noite. Ela a guardou junto com as lembranças das vezes em que Nuvem a havia abandonado e começou imediatamente a tratar de esquecer que ela estava lá.

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