Quinze
Sel estava fingindo concentrar toda a atenção em dirigir o carro de Demi, mas
não era fácil. Desde que a apanhara depois da entrevista, Demi não havia parado
de falar, relembrando os velhos sonhos de menina. Estamos no caminho certo, Sel. Assim que eu assumir como âncora, vou fazê-los
contratar você como repórter.
Sel sabia que devia dar um basta – finalmente – a esse futuro das duas juntas. Estava cansada de seguir
Demi. Além disso, ela não queria pedir demissão. Finalmente tinha um motivo
para permanecer onde estava. Nicholas.
Que patético. Ele não a amava, mas Sel não conseguia parar de
pensar que
talvez agora, sem Demi por perto, ela tivesse uma chance. Era
ridículo e constrangedor, mas seus sonhos estavam mais centrados nele que no telejornalismo.
Não que ela fosse capaz de admitir isso a alguém. O que se esperava de mulheres
de 25 anos com formação universitária era que sonhassem com mais dinheiro e
posições mais altas na carreira corporativa para administrarem as mesmas
empresas que haviam se recusado a contratar suas mães. Era preciso evitar
maridos antes dos 30. Sempre haveria tempo para casamento e filhos, era o bordão mais
comum. Não se devia desistir de si mesma por eles. Mas e se o eles fosse algo que a mulher
desejasse mais do que ser poderosa? Ninguém nunca falava sobre isso. Sel sabia
que Demi acharia graça desse tipo de pensamento, diria que Sel estava presa nos
anos 1950. Até mesmo sua mãe diria que ela estava errada e mencionaria aquela
palavra pesada: arrependimento. Ela repetia
sempre as palavras que preenchiam as páginas das revistas femininas – que ser
apenas mãe era um desperdício de talento. Sua mãe nem notava quanto parecia
triste quando falava, como se a vida que escolhera não tivesse servido para
nada.
– Ei, você passou da entrada.
– Ah, desculpe.
Sel virou na esquina seguinte e fez o retorno, parando na frente
da casa de
Joe.
– Vou esperar aqui. Tenho O talismã para terminar de ler.
Demi não abriu a porta.
– Ele vai entender por que eu não posso me casar com ele ainda.
Ele sabe quanto isso significa para mim.
– Ele sabe, com certeza – concordou Sel.
– Me deseje sorte.
– E eu não faço isso sempre?
Demi saiu do carro e caminhou até a porta da casa. Sel abriu o
livro de bolso e mergulhou na história. Só bem mais tarde ela ergueu o olhar e
percebeu que havia começado a chover. Demi já devia ter aparecido e dito para
ela ir para casa, que iria passar a noite com Joe. Sel fechou o livro e saiu do
carro. Caminhando pela calçada, teve um mau pressentimento, como se alguma
coisa estivesse errada. Bateu duas vezes e em seguida abriu a porta.
Demi estava na sala completamente vazia, ajoelhada em frente à
lareira, chorando.
A amiga lhe entregou um pedaço de papel todo respingado de
lágrimas.
– Leia.
Sel pôs-se de cócoras e olhou para a caligrafia em tinta preta.
Querida Demi,
Fui eu que a recomendei para a KLUE. Então, sei do emprego sobre o
qual você veio me falar e estou muito orgulhoso de você. Eu tinha certeza de
que você iria conseguir. Quando aceitei o emprego na Vanderbilt, sabia o que
significaria para nós. Eu tinha esperanças… mas sabia. Você
quer muito desse mundo, Demi. Mas eu só quero você. Não é exatamente uma
combinação perfeita, é? Eis o que importa: eu sempre vou te amar. Ponha fogo no
mundo.
Estava assinado simplesmente J.
– Eu achei que ele me amava – disse Demi quando Sel devolveu a
carta.
– Ele parece amá-la.
– Então por que me deixou?
Sel olhou para a amiga, ouvindo o eco distante de todas as vezes
que ela havia sido abandonada pela mãe.
– Você já disse a ele alguma vez que o amava?
– Eu não conseguia dizer.
– Talvez você não o ame, então.
– Ou talvez eu o ame – disse Demi, suspirando. – Mas é tão difícil
acreditar
nisso.
Esta era a diferença fundamental entre as duas. Sel acreditava no
amor de
todo o coração. Infelizmente, havia se apaixonado por um homem que
não notava sua existência.
– De qualquer forma, o que importa agora é a sua carreira. Sempre
haverá tempo para casamento e filhos.
– É. Depois de eu ter feito sucesso.
– É.
– Alguém definitivamente vai me amar depois disso.
– O mundo todo vai amar você.
Mas, mais tarde, muito tempo depois de Demi ter dito “Ele que se
dane,
afinal” e dado uma risada um
pouco desesperada, Sel não conseguia tirar
aquelas últimas palavras da cabeça. De repente, ficou preocupada. E
se algum dia o mundo todo amasse Demi e isso ainda não fosse o bastante?
Demi havia esquecido quanto uma noite podia ser longa e solitária.
Por muitos anos, Joe havia sido sua proteção, seu porto seguro. Com ele, ela aprendera
a dormir a noite toda, respirando tranquilamente, sonhando apenas com seu
futuro brilhante. E, como ele a amava, ela dormia bem em sua própria cama
também, nas noites que passavam separados, reconfortada por saber que podia ir
até ele a qualquer momento.
Jogou as cobertas para o lado e saiu da cama. Olhou rapidamente
para o despertador sobre a mesa de cabeceira e viu que eram pouco mais de duas
da manhã. Como havia imaginado: uma longa e solitária noite. Na cozinha, pôs
uma chaleira no fogo e ficou parada, esperando a água ferver. Talvez tivesse cometido um
erro. Talvez aquele vazio que estava sentido fosse amor. Com a vida que levara,
fazia sentido que ela percebesse o lado negativo de uma emoção em vez do lado
positivo. Mas, se ela o amava, que diferença fazia? O que ela faria a respeito?
Ir atrás dele no Tennessee, acomodar-se numa casa perto da universidade e virar
a Sra. Wiley? Como se
tornaria a próxima Jean Enerson ou Jessica Savitch assim? Pegou
uma caneca grande da KTVS do armário e se serviu de chá. Então foi para a sala,
onde se sentou de pernas cruzadas, no sofá, aquecendo as mãos na porcelana.
Sentiu o vapor fragrante da bebida. Fechou os olhos e tentou esvaziar a mente.
– Não está conseguindo dormir?
Demi olhou para cima e viu Sel parada na frente da porta de seu
quarto,
usando a mesma camisola de flanela de muitos anos. Demi costumava brincar
dizendo que a amiga parecia fazer parte da família que dava nome
ao seriado Os Waltons, mas,
naquela noite, ficou feliz por ter aquela
imagem familiar. Era curioso como uma única peça de roupa era capaz de fazer
lembrar de anos juntas – festas do pijama, tratamentos de beleza e cafés da
manhã de sábado diante da TV assistindo a desenhos animados.
– Desculpe se acordei você.
– Você caminha feito um elefante. Ainda tem água quente?
– A chaleira está em cima do fogão.
Sel foi até a cozinha e voltou com uma xícara de chá e uma caixa
de biscoitos. Depois de atirar a caixa entre as duas, ela se sentou de frente
para Demi, apoiada no braço do sofá.
– Você está bem?
– Meu ombro está doendo demais.
– Quando você tomou o último comprimido para dor?
– Já passou da hora.
Sel largou a xícara, foi até o banheiro e voltou com o analgésico
e um copo
d’água.
Demi tomou o remédio.
– Agora quer falar sobre o que realmente está incomodando você? – perguntou
Sel, voltando a sentar.
– Não.
– Qual é, Demi? Eu sei que você está pensando no Joe, imaginando
se fez
a coisa certa.
– Este é o problema das melhores amigas. Elas sabem demais.
– Talvez.
– E o que você e eu sabemos sobre o amor?
O rosto de Sel assumiu aquela expressão triste e quase crítica que
Demi detestava. Era quase um olhar de pobre Demi.
– Eu sei alguma coisa sobre o amor – disse ela em voz baixa. –
Talvez não sobre estar apaixonada ou ser amada, mas sei como é amar alguém e
sei quanto pode doer. Acho que, se realmente amasse o Joe, você saberia e
estaria no Tennessee neste momento. Pelo menos, se eu amasse alguém, eu
saberia.
– Tudo é sempre preto no branco com você. Eu não vejo o mundo
assim.
Como você sempre sabe o que quer?
– Você sabe o que quer, Demi. Sempre soube.
– Então eu não posso me apaixonar? Este é o preço da fama e do
sucesso?
Ficar sempre sozinha?
– É claro que você pode se apaixonar. Só precisa se permitir isso.
Não é à
toa que se fala em cair de amores.
As palavras de Sel deveriam ter reconfortado Demi. Tinham a
intenção de ser otimistas, ela sabia disso, mas, naquele momento, Demi não
conseguia sentir esse otimismo. Pelo contrário, estava se sentindo mais fria e
mais vazia depois do que ouvira da amiga.
– Tem alguma coisa faltando em mim – disse ela baixinho. –
Primeiro foi meu pai quem viu. Quem quer que ele seja, deve ter olhado para mim
uma vez e saído correndo. E não vamos nem falar na minha amada mamãe. Eu sou… alguém
fácil de abandonar. Por que isso?
Sel se aproximou de Demi e se encostou nela exatamente como
costumava
fazer tantos anos antes, às margens do rio Pilchuck. A caixa de
biscoitos machucou suas costas, então ela a tirou de onde estava e a jogou
sobre a mesa de centro coberta de jornais.
– Não tem nada faltando em você, Demi. Na verdade, é justamente o contrário.
Você é mais do que a maioria das
pessoas. Você é muito, muito especial, e se o Joe não viu isso ou não pôde
esperar até que você estivesse
pronta para ele, então ele não era o cara certo para você. Talvez
seja um problema normal quando se fica com alguém mais velho. Ele está pronto para
pousar quando a gente está apenas decolando.
– É verdade. Eu sou jovem. Eu me esqueci disso. Ele deveria ter compreendido
e esperado por mim. Quero dizer, se ele realmente me amava,
como poderia me deixar? Você conseguiria deixar alguém que amasse?
– Depende.
– Do quê?
– Se eu pensasse que ele algum dia iria me amar também.
– Por quanto tempo você esperaria?
– Por muito tempo.
Demi se sentiu então melhor pela primeira vez desde que lera o
bilhete de
Joe.
– Você tem razão. Eu o amava, mas acho que ele não me amava. Não o
bastante, pelo menos.
Sel franziu a testa.
– Não foi exatamente isso que eu disse.
– Foi mais ou menos isso. Somos jovens demais para nos prendermos
por amor. Como eu posso ter me esquecido disso?
Demi deu um abraço em Sel.
– O que eu faria sem você?
Foi só muito mais tarde, depois de uma longa noite insone, deitada
na cama,
assistindo a mais um amanhecer pela janela, que suas próprias
palavras retornaram, assombrando-a com sua intensidade. Alguém fácil de abandonar.
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