O Dia de Ação de Graças na casa
dos Gomez sempre era um espetáculo. Tia Georgia e tio Ralph chegavam de carro
do leste de Washington, levando comida suficiente para alimentar uma cidade inteira. Nos anos anteriores,
levavam os quatro filhos junto, mas agora eles
eram todos adultos e às vezes recebiam outras famílias no feriado. Naquele ano,
Georgia e Ralph estavam sozinhos e pareciam um pouco atordoados com a situação.
Georgia se serviu de bebida antes mesmo de cumprimentar qualquer um na casa.
Selly sentou no braço surrado do sofá vermelho que era a peça
central daquela sala desde que ela se conhecia por gente. Demi sentou com as
pernas cruzadas no chão, aos pés da mãe de Selly. Era o lugar preferido da
amiga nos feriados. Demi raramente cava longe da mulher que considerava a mãe perfeita. A mãe de Selly
estava sentada na poltrona do marido, de frente para Georgia, que estava no
sofá.
Era a hora das meninas – uma tradição familiar. Georgia a havia
inventado fazia muitos anos – antes de haver filhos com que se preocupar, ou pelo menos era o que dizia a lenda
da família. Em todas as festas de fim de ano, durante uma hora, enquanto os homens assistiam ao
futebol na TV, as mulheres se reuniam na sala de estar para tomar drinques e
botar a conversa em dia. Todas sabiam que em breve haveria uma quantidade hercúlea
de trabalho a fazer na cozinha, mas, durante sessenta minutos, ninguém se
importava com isso.
Naquele ano, pela primeira vez, a mãe de Selly serviu taças de
vinho branco
para Demi e a filha. Selly estava se sentindo muito adulta sentada ali no braço do
sofá, tomando seu vinho.
O primeiro disco de Natal do ano já estava tocando. Elvis,
naturalmente,
cantando sobre o menininho no gueto.
Era curioso como um disco, ou até mesmo apenas uma canção, era
capaz de
fazer a pessoa se lembrar de tantos momento da vida. Selly achava
que nunca houvera um evento familiar – Natal, Ação de Graças, Páscoa, a viagem
anual de férias – em que não se tocasse Elvis. Simplesmente não seria um
momento da família Gomez sem ele. Mamãe e Georgia sempre se asseguravam disso.
A morte dele não havia mudado a tradição em nada, mas, às vezes, dependendo de
quanto bebessem, se abraçavam e choravam pela perda dele.
– Vocês precisam ver o que eu fiz esta semana – disse Demi, pondo-se de
joelhos de tanta empolgação.
Selly não pôde deixar de notar que ela parecia estar suplicando, à
espera da
bênção da mãe.
– Sabem o caso do estuprador de Spokane? Bom – disse ela dramaticamente,
atraindo-as para o relato –, o cara que eles prenderam, a mãe dele contratou
alguém para matar o juiz e o procurador. Vocês acreditam nisso?
E o Nicholas, meu chefe, ele me deixou fazer a primeira versão de
uma matéria. Eles inclusive usaram uma frase que eu escrevi. Foi tão legal! Na
semana que vem, ele vai me deixar acompanhá-lo numa entrevista com um cara que inventou
um computador.
– Você realmente está no seu caminho agora, Demi – disse a mãe de Selly,
sorrindo.
– Não apenas eu, Sra. M. – disse Demi. – Vai dar certo para a Selly,
também.
Vou conseguir um estágio para ela na emissora, a senhora vai ver.
Já estou
começando a dar indiretas. Algum dia, a senhora vai ver nós duas
na TV. A
primeira dupla de âncoras femininas num noticiário nacional.
– Imagine só, Mandy – disse Georgia em tom sonhador.
– Âncoras? – perguntou Selly, endireitando as costas. – Eu achei
que
fôssemos ser repórteres.
Demi sorriu.
– Com a nossa ambição? Você está brincando? Nós vamos direto para
o
topo, Sel.
Selly precisava dizer alguma coisa naquele momento. Aquilo estava
saindo
do controle e, sinceramente, aquele era um bom momento para abrir
o jogo.
Uma rodada de bebida havia deixado todas mais tranquilas.
– Eu preciso lhe dizer…
– Nós vamos ser mais famosas do que a Jean Enersen, Sra. M. –
disse Demi,
dando risada. – E definitivamente mais ricas.
– Imagine só ser rica – disse a Sra. Gomez.
Tia Georgia deu um tapinha na coxa de Selly.
– Todos na família temos muito orgulho de você, Sel. Você vai
fazer
nosso nome ficar conhecido.
Selly suspirou. Mais uma vez perdera sua chance. Levantou-se e
atravessou
a sala, passando pelo canto onde logo estaria a árvore de Natal, e
ficou na
janela, olhando o pasto. Um manto branco e reluzente cobria o
campo, criando montinhos cintilantes nos mourões do portão. O luar deixava tudo
com um lindo tom branco e azul de aparência fria. Com o céu negro aveludado ao fundo,
parecia um cartão de Natal. Na infância, ela esperava ansiosamente por esse
clima, rezava meses a fio por ele, e não sem motivo. Coberta de neve, a alameda dos
Vaga-lumes parecia cenário de conto de fadas, um lugar onde nada poderia dar
errado, onde uma garota deveria conseguir simplesmente dizer à família que
havia mudado de ideia.
Os últimos meses do ano de formatura das duas foram perfeitos.
Embora
Demi passasse mais de 25 horas por semana no estágio na TV e Selly
trabalhasse a mesma quantidade de horas numa cafeteria, as duas conseguiam passar
grande parte dos fins de semana juntas,
jogando sinuca e tomando cerveja no Goldies ou ouvindo música no Blue Moon.
Muitas noites Demi ficava na casa de Joe, mas Selly não reclamava. Na verdade, estava
se divertindo demais namorando para incomodar Demi falando sobre suas escolhas.
O único problema na vida de Selly – e era um problema e tanto –
era a
formatura que se aproximava.
Ela ia se formar no mês seguinte com honras. Receberia um diploma
em Comunicação/Telejornalismo, e ainda não dissera a ninguém que essa não era a
carreira dos seus sonhos. Mas agora ela iria abrir o jogo. Estava numa das
cabines telefônicas do terceiro andar, toda espremida, e havia acabado de
discar o número de casa.
A mãe atendeu ao segundo toque.
– Alô?
– Oi, mamãe.
– Sel! Que ótima surpresa. Não me lembro de quando foi a última
vez que
você ligou no meio da semana. Você deve ser vidente: o papai e eu
acabamos de chegar do shopping. Precisa ver o vestido que eu comprei para a
formatura. É lindo. Se alguém disser que a J.C. Penney não tem roupas bonitas,
não acredite.
– Como é o vestido?
Selly estava ganhando tempo. Sem dar muita atenção, ouviu a mãe descrever
a roupa. Ela havia acabado de dizer alguma coisa sobre ombreiras e brilho
quando Selly a interrompeu.
– Eu me candidatei a uma vaga de emprego numa loja de
departamentos,
mamãe. No setor de publicidade.
Houve uma pausa perceptível do outro lado da linha, então o
revelador barulho de um cigarro sendo aceso.
– Ah. Publicidade, é? Achei que você e Demi iam ser…
– Eu sei – disse Selly, recostando na parede. – Uma dupla de
repórteres.
Ricas e mundialmente famosas.
– O que realmente está acontecendo, Selena?
Selly tentou transformar sua indecisão em palavras. Simplesmente
não sabia
o que queria fazer pelo resto da vida. Acreditava que tinha que
haver alguma coisa especial para ela, um caminho que era só dela, com
felicidade no fim, mas onde era o começo
desse caminho?
– Eu não sou como a Demi – disse ela, afinal, admitindo a verdade
que conhecia fazia muito tempo. – Eu não como, durmo e respiro notícias. Claro,
sou boa o bastante para só tirar notas altas, e meus professores
me adoram
porque eu nunca atraso a entrega de um trabalho; mas o jornalismo,
seja de TV ou impresso, é uma selva. Eu vou ser devorada viva pelas pessoas
que, como a Demi, são capazes de fazer qualquer coisa por um furo de
reportagem. Simplesmente não é realista pensar que eu posso dar certo no
jornalismo.
– Realista? Realista somos seu pai e eu tentando pagar todas as
nossas contas com a fábrica cortando as horas de trabalho dele. Realista é uma
mulher inteligente como eu não conseguir nenhum emprego que pague mais do que o
salário mínimo porque não tenho formação e tudo o que fiz foi criar meus filhos. Acredite em mim, Sel,
você não quer ser realista na sua idade. Vai ter tempo suficiente para isso
depois. Agora precisa sonhar alto e voar.
– Eu só quero algo diferente.
– O quê?
– Eu gostaria de saber.
– Ah, Sel… acho que você tem medo de ir atrás do seu sonho. Não
tenha.
Antes que Sel pudesse responder, alguém bateu à porta.
– Está ocupada – gritou ela.
A porta se abriu e revelou Demi.
– Aí está você. Procurei por você em todos os lugares. Com quem
está
falando?
– Com a mamãe.
Demi arrancou o telefone da mão de Selly.
– Ei, Sra. M. Estou sequestrando a sua filha. Ligamos mais tarde.
Tchau.
Desligou o telefone e se virou para Selly.
– Você vem comigo.
– Aonde estamos indo?
– Você vai ver.
Demi a levou para fora do prédio até o estacionamento, onde seu
fusca azul
novinho esperava.
Durante todo o caminho até o centro de Seattle, Selly ficou perguntando
aonde as duas estavam indo e o que estava acontecendo, até que
pararam em
frente a um pequeno prédio comercial.
– É aqui que eu trabalho – disse Demi ao desligar o motor.
Selly revirou os olhos. Agora sabia por que estavam ali: Demi queria
exibir
algum novo triunfo dela. Uma fita, uma matéria que fizera e fora ao ar. Como sempre, Selly a seguiu.
– Olhe só, Demi – disse ela, enquanto as duas percorriam o
corredor sem graça até a pequena área apertada que era o escritório da KCPO TV
em Seattle.
– Preciso dizer uma coisa.
Demi abriu a porta.
– Claro. Mais tarde. Este é o Mutt, aliás – falou Demi, apontando
para um
cara imenso de cabelos compridos que fumava ao lado da janela
aberta.
– Oi – disse ele, mal erguendo um dedo para cumprimentá-la.
– A Carol Mansour, a repórter, está numa reunião no conselho
municipal –
explicou Demi, levando Selly até uma porta fechada.
Como se Selly não viesse ouvindo histórias sobre Carol Mansour
desde sempre.
Demi parou diante de uma porta e bateu. Quando uma voz respondeu,
ela abriu a porta e puxou Selly para dentro da sala.
– Nicholas? Esta é a minha amiga, Sel.
Um homem ergueu o olhar de trás da mesa.
– Então você é Selena Gomez?
Ele era, sem dúvida, o homem mais bonito que Selly vira na vida.
Era mais
velho do que elas, mas não muito, talvez cinco ou seis anos. Seus
cabelos pretos compridos eram espessos e estavam penteados para trás, com
cachos suaves nas pontas. Maçãs do rosto mais marcadas e um queixo menor podiam
deixá-lo mais bonitinho, mas não havia nada de feminino nele. Quando sorriu, Selly
respirou fundo, sentindo um golpe de atração física pura, diferente de tudo o que
já sentira. E ali estava ela, vestida para trabalhar: calça jeans, mocassins
simples e suéter vermelho com gola V. Todos os cachos da noite anterior haviam desaparecido
dos cabelos, e ela não os havia refeito naquela manhã. Não havia se dado o
trabalho de pôr maquiagem também. Ela ia matar Demi.
– Vou deixar vocês dois a sós – disse Demi, saindo da sala e
fechando a porta atrás de si.
– Por favor, sente-se – disse ele, apontando para a cadeira vazia
do outro
lado da mesa.
Ela se sentou, encarapitando-se nervosa na ponta da cadeira.
– Demi me disse que você é um gênio.
– Bom, ela é a minha melhor amiga.
– Você tem sorte. Ela é uma garota especial.
– É, sim, senhor.
Ele deu risada. Foi um som forte e contagiante que a fez sorrir
também.
– Por favor, não me chame de senhor. Isso me dá a impressão de que
tem
algum velho atrás de mim – falou ele, e se inclinou para a frente.
– E então,
Selena, o que você acha?
– Do quê?
– Do trabalho.
– Que trabalho?
Ele olhou para a porta e disse:
– Humm, que interessante.
Então olhou para ela de novo.
– Temos uma vaga para a parte administrativa. Carol costumava
fazer todos
os telefonemas e o arquivamento, mas ela vai ter um bebê, então o
gerente
muquirana da emissora enfim abriu a mão para contratarmos alguém para ajudar.
– Mas a Demi…
– Ela quer continuar como estagiária. Diz que, graças à avó, não
precisa do
dinheiro. Cá entre nós, de qualquer maneira ela não é muito boa
atendendo
telefone.
Tudo aquilo estava acontecendo rápido demais. Fazia apenas uma
hora, ela
finalmente havia admitido que
não queria trabalhar na televisão, e agora estava recebendo uma oferta de
trabalho pela qual todos os seus colegas da
universidade seriam capazes de matar.
– Qual é o salário? – perguntou ela, ganhando tempo.
– Salário mínimo, é claro.
Fez as contas mentalmente. Com as gorjetas, ganhava quase o dobro
disso
na cafeteria.
– Vamos lá, Sel – disse ele, sorrindo. – Como pode recusar? Você
pode ser secretária num escritório feioso ganhando quase nada. Não é o sonho de
qualquer estudante universitário?
Ela não pôde deixar de rir.
– Falando dessa maneira, como eu poderia recusar?
– É um começo no glamoroso mundo do telejornalismo, certo?
O sorriso dele era como uma espécie de superpoder que confundia os
pensamentos dela.
– É mesmo? Glamoroso, quero dizer.
Ele pareceu surpreso com a pergunta e, pela primeira vez, olhou de
verdade para ela. O sorriso falso dele desapareceu, e a expressão em seus olhos
azuis se tornou dura, descrente.
– Não aqui.
Ele mexeu com ela. Selly não sabia por que, mas era poderosa
aquela atração que estava sentindo. Nada parecido com o que os rapazes da universidade
lhe causavam. Mais um motivo para não aceitar o emprego. Atrás dela, a porta se
abriu. Demi apareceu, praticamente saltitando.
– E então, você aceitou?
Era loucura aceitar um emprego por achar o chefe um gato.
Por outro lado, ela estava com 21 anos, e ele estava lhe
oferecendo um começo de carreira na televisão.
Não olhou para Demi. Se olhasse, sentiria que estava desistindo,
seguindo-a
novamente, e por todos os motivos errados.
Mas como poderia dizer não? Talvez num trabalho de verdade
encontrasse
aquela paixão e aquele brilho de que precisava. Quanto mais
pensava a respeito, mais possível isso parecia. A faculdade não era o mundo
real. Era por isso que o jornalismo não a havia conquistado. Ali, as matérias
seriam interessantes.
– Claro – disse ela, afinal. – Vou tentar, Sr. Ryan.
– Pode me chamar de Nicholas.
O sorriso que ele lhe deu foi tão desconcertante que ela precisou
desviar o
olhar. Teve certeza de que de alguma forma ele era capaz de
enxergar dentro dela ou de escutar como fazia seu coração disparar.
– Está bem, Nicholas.
– Muito bem – disse Demi, batendo palmas.
Selly não pôde deixar de perceber como a amiga atraiu
instantaneamente a
atenção total de Nicholas. Ele estava agora sentado em cima da
mesa, encarando Demi.
Foi quando Selly percebeu que havia cometido um erro.
Selly olhava para sua imagem no pequeno espelho oval da cômoda. Os
cabelos louros compridos e lisos estavam presos numa faixa de veludo preto.
Uma sombra azul-clara e duas camadas de rímel verde acentuavam a
cor de
seus olhos, enquanto brilho labial rosa-claro e um pouco de blush
davam um
pouco de cor ao rosto.
– Você vai aprender a amar o jornalismo – prometeu ela ao próprio
reflexo.
– E não está apenas indo atrás de Demi.
– Vamos logo, Selly – chamou Demi, batendo com força na porta do
quarto.
– Estou esperando no estacionamento.
– Está bem, talvez você esteja indo atrás dela.
Pegando a pasta de cima da cama, saiu do quarto e desceu a escada.
Naquela última semana de aulas, os corredores estavam movimentadíssimos,
com meninas estudando para as provas finais, despedindo-se e arrumando suas coisas. Selly passou pela
confusão e foi até o pequeno estacionamento localizado atrás da casa, onde Demi
estava dentro do fusca, com o motor ligado.
No instante em que Selly sentou e bateu a porta, as duas saíram. A
trilha
sonora de Purple Rain, de Prince, tocava alto dentro do carro. Demi precisou
gritar mais alto que a música.
– Não é o máximo? Nós finalmente vamos trabalhar juntas.
Selly assentiu com a cabeça.
– É mesmo.
Precisava admitir que estava empolgada. Afinal, ela havia se formado
(ou se
formaria em breve) e conseguido uma excelente oportunidade de
começo na
área que escolhera. Não importava que Demi tivesse conseguido o
emprego para ela ou que ela estivesse basicamente indo atrás da melhor amiga. O
que
importava era fazer seu trabalho da melhor maneira possível e
descobrir se o telejornalismo era para ela.
– Fale sobre o nosso chefe – disse ela, diminuindo o volume do
aparelho.
– Nicholas? Ele é ótimo no que faz. Foi correspondente de guerra.
Em El
Salvador ou na Líbia, sei lá. Ouvi dizer que ele sente falta do
combate, mas é um ótimo produtor. Podemos aprender muito com ele.
– Você algum dia quis sair com ele?
Demi riu.
– Só porque dormi com o meu professor, não quer dizer que me
interesse por qualquer chefe.
Selly ficou aliviada com isso. Mais do que deveria. Queria perguntar se Nicholas
era casado – fazia quase uma semana que queria perguntar isso –, mas não
conseguia. Seria revelador demais.
– Chegamos.
Demi parou do lado de fora do prédio. Por todo o caminho até o
saguão, falou sobre como seria ótimo trabalharem juntas, mas, assim que
entraram no escritório apertado, foi direto até Mutt e se reuniu com ele. Selly
ficou lá parada, agarrada à
pasta de couro falso, imaginando o que deveria fazer.
Havia acabado de decidir tirar o casaco quando Nicholas surgiu,
parecendo ao mesmo tempo incrivelmente bonito e profundamente furioso.
– Mutt! Carol! – gritou, embora todos estivessem bem ali. – Aquela
nova empresa, a Microsoft, está anunciando alguma coisa. Não sei que droga vem
a ser. Mike está mandando as informações por fax. Querem que vocês vão até a sede
da empresa e vejam se conseguem falar com o chefão. Bill Gates.
Demi se apresentou.
– Posso ir também?
– Quem se importa? É uma matéria de merda – disse Nicholas, voltando
para
sua sala e batendo a porta.
Os instantes seguintes foram um caos. Carol, Demi e Mutt reuniram
o material de trabalho e saíram correndo.
Depois que todos saíram, Selly ficou parada no escritório vazio e silencioso,
imaginando que diabos deveria fazer.
Ao seu lado, o telefone tocou.
Ela tirou o casaco, pendurou nas costas da cadeira e se sentou.
Então
atendeu:
– KCPO. Selena. Como posso ajudar?
– Oi, querida, é a mamãe e o papai. Só queríamos ligar para
desejar um ótimo primeiro dia de trabalho. Estamos muito orgulhosos de você.
Selly não ficou exatamente surpresa. Algumas coisas nunca mudavam, e sua
família era uma delas. E ela os amava por isso.
– Obrigada.
Durante as horas seguintes, Selly achou muito fácil preencher o
tempo. O
telefone tocava quase que constantemente e a caixa de entrada da
sua mesa
parecia não ter sido tocada por anos. Os arquivos estavam uma
bagunça total.
Selly ficou tão envolvida no trabalho que, quando olhou para o relógio,
era uma hora e ela estava faminta. Devia ter direito a um intervalo de almoço,
não?
Saiu de sua mesa e atravessou o escritório que agora estava limpo.
À porta de Nicholas, fez uma pausa, reunindo toda a sua coragem para bater,
mas, antes que pudesse fazer qualquer movimento, ouviu berros dentro da sala.
Ele estava ao telefone, discutindo com alguém. Era melhor não interromper.
Ligou a secretária eletrônica e correu até a delicatéssen ali perto. Comprou
meio sanduíche de presunto e queijo. Por impulso, pegou um copo de sopa de
marisco e um sanduíche de bacon também. Duas Cocas finalizaram o pedido. Com a
sacola na mão, retornou ao escritório e desligou a secretária eletrônica. Então
voltou até a porta de Nicholas. Fazia silêncio do outro lado. Bateu timidamente.
– Entre.
Selly abriu a porta.
Ele estava sentado atrás da mesa, com ar de cansado. Seus cabelos
longos
estavam uma bagunça, como se ele tivesse corrido os dedos por eles
várias vezes para afastá-los do rosto. Dezenas de jornais cobriam a mesa,
escondendo até mesmo o telefone.
– Gomez – disse ele, suspirando. – Merda. Eu me esqueci que você começava
hoje.
Selly quis fazer uma piada sobre a situação, mas sua voz não
ajudou. Ela estava tão consciente da presença dele que era ligeiramente
perturbador que ele nem a tivesse notado ali.
– Entre. O que é isso aí?
– Almoço. Achei que talvez estivesse com fome.
– Você comprou comida para mim?
– Não devia? Sinto muito, eu…
– Sente-se – falou ele, apontando para a cadeira em frente à sua
mesa. –
Muito obrigado, de verdade. Não me lembro de quando foi a última
vez que
comi alguma coisa.
Ela foi até a mesa e começou a abrir as embalagens do lanche. O
tempo
todo, sentiu que ele a estava observando, olhando atentamente para
ela com
aqueles olhos azuis. Isso a deixou tão nervosa que ela quase
derramou a sopa.
– Sopa quente – disse ele, com a voz baixa, íntima. – Então você é
desse tipo.
Ela se sentou, olhando para ele; era impossível não olhar.
– De que tipo?
– O tipo que cuida dos outros.
Ele pegou a colher.
– Deixe eu adivinhar: você cresceu numa família feliz. Dois filhos e um
cachorro. Sem divórcio.
Ela riu.
– Isso. E você?
– Sem cachorro. Nem tão feliz.
– Ah – fez ela, e tentou pensar em alguma outra coisa para dizer.
– Você é
casado?
Escapou antes que ela pudesse se conter.
– Não. Nunca fui. E você?
Selly sorriu.
– Não.
– Bom para você. Este trabalho exige foco.
Selly se sentiu uma impostora. Ali estava ela, sentada diante do
chefe, tentando dizer alguma coisa para fazê-lo admirá-la, mas não conseguia
sequer fazer contato visual. Era loucura. Ele não era tão bonito assim. Alguma coisa nele
simplesmente a atingira com tanta força que ela não conseguia pensar direito.
– Você acha que eles vão conseguir alguma coisa boa na Microsoft?
– Israel invadiu o Líbano ontem. Sabia disso? Mandaram os
palestinos de volta para Beirute. Esta é a verdadeira história. E nós estamos
num escritório horroroso, cobrindo frescuras – respondeu ele, e suspirou. –
Sinto muito, só estou tendo um dia ruim. E é o seu primeiro dia.
Ele sorriu, mas não com os olhos.
– E você comprou sopa para mim. Amanhã eu vou ser legal. Prometo.
– Demi me contou que você foi correspondente de guerra.
– É.
– Imagino que adorasse isso, não?
Ela viu alguma coisa passar pelos olhos dele. Seu primeiro
instinto seria
rotular como tristeza, mas como ela poderia saber?
– Era uma loucura.
– Por que você parou?
– Você é jovem demais para entender.
– Eu não sou tão mais nova do que você. Tente.
Ele suspirou de novo.
– Às vezes a vida nos vence. Só isso. É como disseram os Stones: you can’t
always get what you want, nem
sempre conseguimos o que queremos.
– A canção fala alguma coisa sobre conseguir o que se precisa em
vez do que
se quer.
Ele olhou para ela e, por uma fração de segundo, Selly teve
certeza de que
havia atraído sua atenção.
– Conseguiu encontrar o que fazer para se manter ocupada esta
manhã?
– Os arquivos estavam uma bagunça. A caixa de entrada também. E eu
organizei e guardei nas prateleiras todas aquelas fitas que estavam no canto.
Ele riu, o que transformou o rosto dele, deixando-o tão bonito que
ela respirou fundo.
– Há meses que tentamos fazer com que Demi organize isso.
– Eu não queria…
– Não se preocupe. Você não prejudicou sua amiga. Acredite em mim.
Eu
sei o que esperar de Demi.
– Que é o quê?
– Paixão – disse ele simplesmente, enfiando o embrulho do
sanduíche no
copo de isopor.
Selly quase se encolheu com a forma como ele disse aquilo, e de
repente
entendeu que estava enrascada. Não importava quantas vezes
lembrasse a si
mesma que ele era seu chefe, não fazia diferença. No fim, o que contava era
como se sentia perto dele. Apaixonando-se. Não havia outra forma de descrever aquilo. Ainda assim, durante o
resto do dia, enquanto atendia a telefonemas e arquivava papéis, ela repassava
mentalmente aquele último instante com ele e a maneira simples e direta como
ele havia respondido à pergunta dela a respeito de Demi: paixão.
Mas, acima de tudo, ela se lembrava da forma como ele sorrira
admirado ao
dizer isso.
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