domingo, 2 de março de 2014

Amigas Para Sempre Capítulo 2



Dois
Para a maior parte do país, 1970 foi um ano de revoltas e mudanças, mas naquela casa de Magnolia Drive, tudo estava sempre organizado e tranquilo. Do lado de dentro, aos 10 anos de idade, Demi Lovato estava sentada num piso frio de madeira, montando uma pequena casinha de brinquedo para suas bonequinhas, que dormiam em minúsculos lenços de papel cor-de-rosa. Se estivesse no quarto, estaria tocando Jackson Five na vitrola, mas na sala não havia aparelho de som.
Sua avó não gostava muito de música, nem de televisão ou jogos de tabuleiro. Durante a maior parte do tempo – como naquele momento –, a Vovó ficava sentada na cadeira de balanço ao lado da lareira fazendo bordados em ponto de cruz. Ela produzia centenas de toalhinhas, a maioria com citações da Bíblia. No período do Natal, ela as doava para a igreja, que as vendia em eventos beneficentes.
E o Vovô… ele só conseguia ficar em silêncio. Desde seu derrame, passava o tempo todo na cama. Às vezes tocava sua sineta, e era apenas nesses momentos que Demi via a Vovó afobada. Ao primeiro toque, ela sorria, dizia “Minha nossa” e disparava pelo corredor o mais rápido que seus chinelos lhe permitiam.
Demi pegou seu duende de cabelos amarelos. Cantarolando bem baixinho, ela o fez dançar “Daydream Believer” com uma bonequinha de olhos grandes. Na metade da canção, alguém bateu à porta. Era um som tão inesperado que Demi fez uma pausa na brincadeira e olhou para cima. A não ser pelos domingos, quando o Sr. e a Sra. Beattle apareciam para levá-los à igreja, ninguém jamais os visitava. A Vovó guardou o bordado na sacola plástica cor-de-rosa ao lado da cadeira e se levantou, atravessando a sala naquele passo lento e arrastado que havia se
tornado normal nos últimos anos. Quando abriu a porta, houve um longo silêncio, e então ela disse “Minha nossa”. Demi notou algo estranho na voz da Vovó. Espiando de lado, ela viu uma mulher alta com longos cabelos despenteados e um sorriso que não parava no lugar. Era uma das mulheres mais bonitas que Demi já vira: pele branca feito leite, nariz fino e arrebitado e maçãs do rosto muito definidas acima do minúsculo queixo, olhos castanhos fluidos, que abriam e fechavam lentamente.
– Essa não é uma grande recepção para a filha que você não vê há tanto tempo.
A mulher passou pela Vovó, caminhou diretamente até Demi e se abaixou: – É a minha pequena Demetria Devonne?
Filha? Isso queria dizer…
– Mamãe? – sussurrou ela, espantada, com medo de acreditar.
Havia esperado tanto tempo por isso, sonhado tanto. O retorno da mãe.
– Sentiu saudade de mim?
– Ah, sim – disse Demi, tentando não dar risada.
Mas ela estava feliz demais.
A Vovó fechou a porta.
– Por que não vem até a cozinha para tomar um café?
– Eu não vim tomar café. Vim buscar a minha filha.
– Você não tem dinheiro – falou a avó com desânimo.
Sua mãe pareceu irritada:
– E daí?
– A Demi precisa…
– Acho que consigo descobrir do que a minha filha precisa.
Sua mãe parecia tentar endireitar a postura, mas não estava funcionando.
Ela estava meio vacilante, com os olhos esquisitos. Ficava enrolando no dedo uma mecha dos cabelos compridos e ondulados.
A Vovó se aproximou das duas.
– Criar um filho é uma grande responsabilidade, Diana. Talvez se você se mudasse para cá por um tempo e conhecesse melhor a Demi, estaria pronta… –
Ela fez uma pausa, franziu a testa e disse baixinho: – Você está bêbada.
A mãe deu uma risadinha e piscou para Demi.
Demi piscou de volta. Estar bêbado não era tão mau assim. O Vovô costumava beber bastante antes de ficar doente. Até mesmo a Vovó às vezes tomava uma taça de vinho.
– É meu aniversário, mãe; ou você se esqueceu?
– Seu aniversário? – disse Demi e se levantou num salto. – Espere aqui.
Ela saiu correndo até seu quarto.
Estava com o coração disparado enquanto remexia a gaveta da mesa de cabeceira, espalhando suas coisas, procurando o colar de macarrão e contas que havia feito para a mãe no catecismo no ano anterior. A Vovó havia feito cara feia ao vê-lo, dizendo-lhe que não tivesse grandes esperanças, mas Demi não conseguira evitar. Ela estava cheia de esperanças fazia anos. Enfiou o colar no bolso e voltou correndo para a sala, bem a tempo de ouvir a mãe dizer:
– Eu não estou bêbada, mamãe querida. Eu estou com a minha filha novamente pela primeira vez em três anos. O amor é a melhor droga.
– Seis anos. Ela tinha 4 da última vez que você a deixou aqui.
– Faz tanto tempo assim? – disse a mãe de Demi, parecendo confusa.
– Volte para casa, Diana. Eu posso ajudar você.
– Como ajudou da última vez? Não, obrigada.
Última vez? Mamãe havia voltado antes?
A Vovó suspirou e então retesou o corpo.
– Por quanto tempo mais você vai usar isso contra mim?
– Não é exatamente o tipo de coisa que tenha data de vencimento, é? Vamos, Demetria.
A mãe dela já estava indo na direção da porta.
Demi franziu a testa. Isso não estava certo. Não era assim que as coisas deveriam acontecer. Sua mãe não a havia abraçado, beijado ou mesmo perguntado como ela estava. E todo mundo sabia que era preciso fazer uma mala para ir embora. Ela apontou para a porta do quarto.
– As minhas coisas…
– Você não precisa dessa parafernália materialista, Demetria.
Demi não fazia ideia do que a mãe dela estava falando.
– Ahn?
A Vovó foi até Demi, lhe deu um abraço que tinha um cheiro doce e familiar, de talco e spray de cabelos. Aqueles eram os únicos braços que haviam abraçado Demi, aquela era a única pessoa que sempre a fizera sentir-se segura e, de repente, a menina sentiu medo.
– Vovó? – disse, soltando-se. – O que está acontecendo?
– Você vem comigo – respondeu a mãe, segurando no batente da porta para se equilibrar.
A avó a soltou e deu um passo para trás.
– Você sabe o nosso telefone e o endereço, certo? Ligue se ficar assustada ou se alguma coisa der errado.
A Vovó estava chorando. Ver a avó forte e tranquila chorar deixou Demi desnorteada. O que estava havendo? O que fizera de errado?
– Eu sinto muito, Vovó, eu…
A Mamãe se lançou sobre ela e a agarrou pelos ombros, sacudindo-a com força.
Nunca peça desculpas. Faz você parecer patética. Vamos embora.
Pegou a mão de Demi e a puxou na direção da porta.
Demi saiu tropeçando atrás da mãe para fora da casa, desceu os degraus da entrada e atravessou a rua até uma Kombi enferrujada com adesivos de flores por todos os lados e um gigantesco símbolo da paz pintado em amarelo na lateral.
A porta se abriu e uma fumaça espessa e cinza saiu de dentro da van. Através da névoa, ela viu três pessoas. Um negro com um enorme penteado afro e tiara vermelha estava no assento do motorista. No banco de trás havia uma mulher de colete de franjas e calças listradas com um lenço marrom amarrado nos cabelos loiros. Ao seu lado, um homem de calças boca de sino e camiseta amarfanhada. O piso da van estava coberto por tapetes marrons de retalhos e havia alguns cachimbos espalhados, misturados com garrafas de cerveja vazias, embalagens de comida e fitas magnéticas.
– Esta é a minha filha, Demetria– disse a mamãe.
Demi não disse nada, mas detestava ser chamada de Demetria. Diria isso à mãe mais tarde, quando as duas estivessem a sós.
– Incrível – falou alguém.
– Ela é igualzinha a você. Que louco.
– Entre – disse o motorista rispidamente. – Vamos nos atrasar.
O homem de camiseta suja estendeu o braço na direção de Demi, agarrou-a pela cintura e puxou para dentro da van, onde ela se posicionou cuidadosamente de joelhos. A mãe entrou na Kombi e bateu a porta. Uma música estranha pulsava como um coração dentro da van. Tudo o que ela conseguiu entender foram algumas palavras. A fumaça deixava tudo suave e um tanto fora de foco. Demi se aproximou da lateral de metal para abrir espaço ao seu lado, mas a mãe se sentou perto da moça com lenço na cabeça. Elas imediatamente começaram a falar sobre porcos e marchas e sobre um homem chamado Kent. Nada daquilo fazia sentido para Demi, e a fumaça a estava deixando zonza. Quando o homem ao lado dela acendeu o cachimbo, ela não conseguiu segurar um pequeno suspiro de decepção.
O homem escutou e se virou para ela. Soprando uma nuvem de fumaça cinza bem no rosto da menina, sorriu e disse:
– Apenas acompanhe o ritmo, garotinha.
– Olhe o jeito que a minha mãe a veste – disse sua mãe com amargura. – Como se ela fosse uma bonequinha. Como ela vai cair na real se não pode se sujar?
– Pode crer, Di – falou o sujeito, exalando mais fumaça e recostando-se.
A Mamãe olhou para Demi pela primeira vez. Olhou de verdade.
– Não se esqueça disso, garota. A vida é mais do que cozinhar, limpar e ter filhos. A vida é ser livre. Fazer o que se quer. Você pode ser a porra da presidente dos Estados Unidos, se quiser.
– Até que seria bom ter um novo presidente, sem dúvida – comentou o motorista.
A mulher com o lenço no cabelo deu um tapinha na coxa da Mamãe:– É isso aí. Passa esse bagulho para mim, Tommy – pediu, rindo.
Demi fez uma careta, sentindo um novo tipo de vergonha na boca do estômago. Ela achava que ficava bonita com aquele vestido. E não queria ser presidente. Queria ser bailarina. Mas, acima de tudo, queria que sua mãe a amasse. Foi chegando para o lado até ficar perto o bastante da mãe para tocá-la.
– Feliz aniversário – disse baixinho.
Enfiando a mão no bolso, tirou de dentro o colar em que havia trabalhado tanto, sofrido, até, continuando a colar purpurina até muito depois de as outras crianças terem saído da aula para brincar.
– Eu fiz para você.
Mamãe pegou o colar sem jeito e fechou os dedos ao redor dele. Demi ficou esperando que a mãe agradecesse e o pusesse no pescoço, mas ela não fez isso.
Simplesmente ficou ali sentada, dançando ao som da música e conversando com os amigos.
Por fim, Demi fechou os olhos. A fumaça a estava deixando com sono. Durante a maior parte de sua vida, ela havia sentido falta da mãe, e não do jeito que se sente falta de um brinquedo perdido ou de uma amiga que parou de brincar com você porque você não empresta seus brinquedos. Ela sentia saudade da mãe. Era um sentimento que estava sempre dentro dela, um espaço vazio que doía durante o dia e era quase insuportável à noite. Prometera a si mesma que, se a mãe um dia voltasse, ela seria boazinha. Perfeita. O que quer que tivesse feito ou dito de tão errado, ela consertaria ou mudaria. Mais do que qualquer outra coisa, queria que a mãe sentisse orgulho dela. Mas agora ela não sabia o que fazer. Em seus sonhos, as duas sempre iam embora juntas sozinhas, apenas as duas, de mãos dadas. “Aqui estamos”, a mamãe dos seus sonhos dizia quando as duas subiam uma colina que levava à casa delas. “Lar doce lar.” Então ela beijava Demi no rosto e sussurrava: “Senti tanto a sua falta. Eu não estava por perto porque…”
– Demetria. Acorde.
Demi acordou num salto. Estava com a cabeça latejando e a garganta doendo. Quando tentou dizer Onde estamos?, tudo o que saiu foi um resmungo. Todos deram risada e continuaram rindo enquanto saíam da van. Era uma rua movimentada do centro de Seattle com gente por todo lado, cantando, gritando e segurando cartazes que diziam Faça amor, não faça guerra e Não iremos à guerra. Demi nunca tinha visto tanta gente num único lugar. A Mamãe segurou sua mão e a puxou para perto dela. O resto do dia foi uma confusão de gente gritando palavras de ordem e cantando. Demi passou todos os momentos apavorada que de alguma forma pudesse largar da mão da mãe e ser arrastada pela multidão. Ela não se sentiu nem um pouco mais segura quando os policiais apareceram, porque eles traziam armas nos cintos, carregavam cassetetes e usavam escudos de plástico que protegiam seus rostos.
Mas a multidão apenas marchou e a polícia apenas observou.
Quando escureceu, ela estava cansada, com fome e dor de cabeça, mas eles continuavam caminhando, uma rua depois da outra. A multidão estava muito diferente agora. Todos haviam deixado os cartazes de lado e estavam bebendo. Às vezes ela ouvia frases inteiras ou pedaços de conversas, mas nada fazia sentido.
– Viram aqueles porcos? Eles estavam morrendo de vontade de quebrar nossos dentes, mas nós estávamos em paz, cara. Eles não podiam nos tocar. Ei, Di, você está monopolizando esse baseado.
Todo mundo ao redor deu risada, a mãe mais do que todos. Demi não conseguiu entender o que estava acontecendo e estava com uma dor de cabeça terrível. Havia muita gente ao redor deles, rindo e dançando. De algum lugar, vinha uma música que tomava conta da rua. E então, de repente, ela não estava se segurando a nada.
– Mamãe! – gritou.
Ninguém respondeu nem se virou para ela, embora houvesse pessoas por todo lado. Ela começou a empurrar as pessoas à procura da mãe, chamando por ela até não ter mais voz. Por fim, voltou ao local onde a vira pela última vez e ficou esperando na beira da calçada.
Ela vai voltar.
Demi sentiu as lágrimas ardendo em seus olhos e rolando pelo rosto enquanto ela estava ali sentada, esperando, tentando ser corajosa. Mas sua mãe não voltou.
Durante anos após esse dia, ela tentou se lembrar do que havia acontecido depois, o que ela havia feito, mas todas aquelas pessoas eram como uma nuvem obscurecendo suas lembranças. Tudo de que se lembrava era de acordar sobre um degrau imundo de cimento numa rua completamente deserta e ver um policial a cavalo.
Lá de cima, ele franziu a testa para ela e perguntou:
– Ei, pequenina, você está perdida?
– Estou.
Foi tudo o que ela conseguiu dizer sem chorar.
Ele a levou de volta à casa na Queen Anne Hill, onde sua avó a abraçou apertado, beijou seu rosto e lhe disse que não era culpa dela. Mas Demi sabia que era. De alguma forma, ela cometera um erro, havia feito algo feio. Da próxima vez que sua mãe viesse, ela se esforçaria mais. Prometeria se tornar presidente do país e nunca, nunca mais pediria desculpas. Demi conseguiu uma tabela com os nomes dos presidentes dos Estados Unidos e decorou todos, na ordem da posse. Ela dizia a quem quer que perguntasse que seria a primeira mulher presidente. Chegou inclusive a desistir das aulas de balé. Em seu aniversário de 11 anos, enquanto Vovó acendia as velas de seu bolo e cantava uma versão desanimada e chorosa de “Parabéns para Você”, Demi ficou olhando sem parar para a porta, pensando é agora, mas ninguém bateu e o telefone não tocou. Mais tarde, com as caixas de presentes abertas ao seu redor, ela tentou continuar sorrindo. Na frente dela, em cima da mesa de centro, havia um álbum de recortes vazio. Não era o melhor dos presentes, mas sua avó sempre lhe dava coisas assim – projetos para mantê-la ocupada e quieta.
– Ela nem ligou – disse Demi, levantando o olhar.
A Vovó suspirou, desanimada.
– A sua mãe tem… problemas, Demi. Ela é fraca e confusa. Eu já lhe disse isso cem vezes. Você precisa parar de fingir que as coisas são diferentes. O que importa é que você é forte.
Tinha ouvido esse conselho inúmeras vezes.
– Eu sei.
A Vovó se sentou ao lado de Demi no velho sofá floral e a colocou no colo. Demi adorava quando a Vovó lhe dava colo. Ela se aninhou e apoiou o rosto no peito macio da Vovó.
– Eu gostaria que as coisas fossem diferentes com a sua mãe, Demi, e esta é a mais pura verdade, mas ela é uma alma perdida. Já faz muito tempo.
– É por isso que ela não me ama?
A Vovó olhou para ela. Os óculos de aros escuros aumentavam seus olhos cinza-claros.
– Ela ama você do jeito dela. É por isso que sempre volta.
– Não parece amor.
– Eu sei.
– Eu acho que ela nem gosta de mim.
– É de mim que ela não gosta. Aconteceu uma coisa muito tempo atrás e eu não… Bem, isso não importa agora – falou a avó, e abraçou Demi com mais força. – Um dia ela vai se arrepender de ter perdido todos esses anos ao seu lado. Tenho certeza disso.
– Eu poderia mostrar meu álbum de recortes a ela.
A Vovó não olhou para Demi.
– Isso seria legal.
Depois de um longo silêncio, a avó disse:
– Feliz aniversário, Demi. – E a beijou na testa. – Agora é melhor eu ficar um pouco com o seu avô. Ele não está se sentindo bem hoje.
Depois que a avó saiu da sala, Demi ficou sentada olhando para a primeira página em branco de seu novo álbum de recortes. Seria o presente perfeito para dar à mãe um dia, para mostrar o que ela havia perdido. Mas com o que Demi o preencheria? Tinha algumas fotos de si mesma, tiradas principalmente pelas mães das amiguinhas em festas e passeios, mas não muitas. Os olhos da Vovó não eram bons o bastante para aquelas lentes minúsculas das câmeras fotográficas. E da mãe só tinha uma foto. Ela pegou uma caneta e escreveu cuidadosamente a data no canto superior direito da página. Então franziu a testa. O que mais? Querida mamãe. Hoje foi meu aniversário de 11 anos…
Depois desse dia, ela começou a colecionar objetos que mostravam sua vida. Fotos da escola, fotos dela praticando esportes, ingressos de cinema. Durante anos, sempre que tinha um bom dia, voltava correndo para casa e escrevia a respeito, colando qualquer recibo ou notinha que provasse onde ela havia estado ou o que havia feito. A certa altura, começou a criar algumas coisas, de forma que parecesse melhor. Não eram mentiras, apenas exageros. Qualquer coisa que algum dia pudesse levar a mãe a dizer que tinha orgulho dela. Ela preencheu aquele álbum de recortes e então outro e depois outro. A cada aniversário, ganhava um álbum novo em folha, até chegar à adolescência. Até que, um dia, algo aconteceu com ela. Ela não sabia ao certo o quê; talvez os seios que tivessem crescido mais rápido do que os de qualquer outra menina, ou talvez ela apenas houvesse ficado cansada de registrar a vida em pedaços de papel que ninguém nunca pedia para ver. Aos 14 anos, ela parou. Depositou todos os seus álbuns de menina numa caixa de papelão grande, que enfiou nofundo do armário, e pediu que a avó não comprasse mais nenhum.
– Tem certeza, querida?
– Tenho – respondeu.
Ela não se importava mais com a mãe e tentava nunca pensar nela. Na verdade, passou a dizer a todo mundo na escola que a mãe morrera num acidente de barco.
A mentira a libertou. Ela parou de comprar suas roupas no setor infantil e passou para a área juvenil. Comprava mini blusas justas que exibiam seus peitos e calças boca de sino de cintura baixa que deixavam seu bumbum bonito. Precisava esconder essas roupas da avó, mas isso era fácil: com um casaco largo e comprido e um aceno rápido, saía de casa usando o que bem entendesse. Ela descobriu que, se usasse as roupas certas e agisse de determinada maneira, era aceita pelos meninos e meninas populares. Nas noites de sexta e sábado, dizia à avó que dormiria na casa de uma amiga e ia andar de patins em Lake Hills, onde ninguém nunca perguntava a ela sobre sua família ou olhava para ela como se ela fosse a “pobre Demi”. Aprendeu a fumar sem tossir e a mascar chiclete para disfarçar o hálito. Na oitava série, era uma das garotas mais populares da escola; e ter tantos amigos ajudava. Quando se ocupava, não pensava na mulher que não a queria. Ela já não se sentia tão solitária. Mas em algumas ocasiões tinha a impressão de estar… à margem de tudo. Como se todas as pessoas com quem ela andava estivessem apenas fazendo figuração.

Era o que acontecia naquele momento. Estava em silêncio no lugar de sempre no ônibus escolar, ouvindo o zum-zum-zum das conversas ao redor. Todo mundo parecia estar falando sobre coisas de família. Ela não tinha nada a acrescentar a essas conversas. Não sabia nada sobre brigar com o irmão mais novo, ficar de castigo por responder aos pais ou ir ao shopping com a mãe. Felizmente, quando o ônibus parou em seu ponto, ela saiu rápido, dando um tchau animado para as amigas, rindo alto e acenando. Fingindo – o que se tornara um hábito nos últimos tempos. Assim que o ônibus se afastou, ela pôs a mochila nos ombros e começou a longa caminhada para casa. Havia acabado de virar a esquina quando a viu. Lá, estacionada do outro lado da rua, na frente da casa da avó, uma velha Kombi vermelha. Os adesivos de flores ainda estavam colados nas laterais. 

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