Dois
Para a maior parte do país,
1970 foi um ano de revoltas e mudanças, mas naquela casa de Magnolia Drive,
tudo estava sempre organizado e tranquilo. Do lado de dentro, aos 10 anos de
idade, Demi Lovato estava sentada num piso frio de madeira, montando uma
pequena casinha de brinquedo para suas bonequinhas, que dormiam em minúsculos
lenços de papel cor-de-rosa. Se estivesse no quarto, estaria tocando Jackson
Five na vitrola, mas na sala não havia aparelho de som.
Sua avó não gostava muito
de música, nem de televisão ou jogos de tabuleiro. Durante a maior parte do
tempo – como naquele momento –, a Vovó ficava
sentada na cadeira de balanço ao lado da lareira fazendo bordados em ponto de
cruz. Ela produzia centenas de toalhinhas, a maioria com citações da Bíblia. No
período do Natal, ela as doava para a igreja, que as vendia em eventos beneficentes.
E o Vovô… ele só conseguia
ficar em silêncio. Desde seu derrame, passava o tempo todo na cama. Às vezes
tocava sua sineta, e era apenas nesses momentos que Demi via a Vovó afobada. Ao
primeiro toque, ela sorria, dizia “Minha nossa” e disparava pelo corredor o
mais rápido que seus chinelos lhe permitiam.
Demi pegou seu duende de
cabelos amarelos. Cantarolando bem baixinho, ela o fez dançar “Daydream
Believer” com uma bonequinha de olhos grandes. Na metade da canção, alguém
bateu à porta. Era um som tão inesperado que Demi fez uma pausa na brincadeira
e olhou para cima. A não ser pelos domingos, quando o Sr. e a Sra. Beattle apareciam
para levá-los à igreja, ninguém jamais os visitava. A Vovó guardou o bordado na
sacola plástica cor-de-rosa ao lado da cadeira e se levantou, atravessando a
sala naquele passo lento e arrastado que havia se
tornado normal nos últimos
anos. Quando abriu a porta, houve um longo silêncio, e então ela disse “Minha
nossa”. Demi notou algo estranho na voz da Vovó. Espiando de lado, ela viu uma mulher
alta com longos cabelos despenteados e um sorriso que não parava no lugar. Era
uma das mulheres mais bonitas que Demi já vira: pele branca feito leite, nariz fino e arrebitado e maçãs do rosto muito definidas acima do minúsculo queixo, olhos castanhos fluidos, que
abriam e fechavam lentamente.
– Essa não é uma grande
recepção para a filha que você não vê há
tanto tempo.
A mulher passou pela Vovó,
caminhou diretamente até Demi e se abaixou: – É a minha pequena Demetria
Devonne?
Filha? Isso
queria dizer…
– Mamãe? – sussurrou ela,
espantada, com medo de acreditar.
Havia esperado tanto tempo
por isso, sonhado tanto. O retorno da mãe.
– Sentiu saudade de mim?
– Ah, sim – disse Demi,
tentando não dar risada.
Mas ela estava feliz
demais.
A Vovó fechou a porta.
– Por que não vem até a
cozinha para tomar um café?
– Eu não vim tomar café.
Vim buscar a minha filha.
– Você não tem dinheiro –
falou a avó com desânimo.
Sua mãe pareceu irritada:
– E daí?
– A Demi precisa…
– Acho que consigo
descobrir do que a minha filha precisa.
Sua mãe parecia tentar
endireitar a postura, mas não estava funcionando.
Ela estava meio vacilante,
com os olhos esquisitos. Ficava enrolando no dedo uma mecha dos cabelos
compridos e ondulados.
A Vovó se aproximou das
duas.
– Criar um filho é uma grande responsabilidade, Diana. Talvez se você se mudasse
para cá por um tempo e conhecesse melhor a Demi, estaria pronta… –
Ela fez uma pausa, franziu
a testa e disse baixinho: – Você está bêbada.
A mãe deu uma risadinha e
piscou para Demi.
Demi piscou de volta. Estar
bêbado não era tão mau assim. O Vovô costumava beber bastante antes de ficar doente. Até mesmo a Vovó às vezes tomava uma taça de vinho.
– É meu aniversário, mãe;
ou você se esqueceu?
– Seu aniversário? – disse Demi
e se levantou num salto. – Espere aqui.
Ela saiu correndo até seu
quarto.
Estava com o coração
disparado enquanto remexia a gaveta da mesa de cabeceira, espalhando suas
coisas, procurando o colar de macarrão e contas que havia feito para a mãe no
catecismo no ano anterior. A Vovó havia feito cara feia ao vê-lo, dizendo-lhe
que não tivesse grandes esperanças, mas Demi não conseguira evitar. Ela estava
cheia de esperanças fazia anos. Enfiou o
colar no bolso e voltou correndo para a sala, bem a tempo de ouvir a mãe dizer:
– Eu não estou bêbada,
mamãe querida. Eu estou com a minha filha novamente pela primeira vez em três
anos. O amor é a melhor droga.
– Seis anos. Ela tinha 4 da
última vez que você a deixou aqui.
– Faz tanto tempo assim? –
disse a mãe de Demi, parecendo confusa.
– Volte para casa, Diana.
Eu posso ajudar você.
– Como ajudou da última
vez? Não, obrigada.
Última vez? Mamãe havia
voltado antes?
A Vovó suspirou e então
retesou o corpo.
– Por quanto tempo mais
você vai usar isso contra mim?
– Não é exatamente o tipo
de coisa que tenha data de vencimento, é? Vamos, Demetria.
A mãe dela já estava indo
na direção da porta.
Demi franziu a testa. Isso
não estava certo. Não era assim que as coisas deveriam acontecer. Sua mãe não a
havia abraçado, beijado ou mesmo perguntado como ela estava. E todo mundo sabia
que era preciso fazer uma mala para ir embora. Ela apontou para a porta do
quarto.
– As minhas coisas…
– Você não precisa dessa
parafernália materialista, Demetria.
Demi não fazia ideia do que
a mãe dela estava falando.
– Ahn?
A Vovó foi até Demi, lhe
deu um abraço que tinha um cheiro doce e familiar, de talco e spray de cabelos.
Aqueles eram os únicos braços que haviam abraçado Demi, aquela era a única
pessoa que sempre a fizera sentir-se segura e, de
repente, a menina sentiu medo.
– Vovó? – disse,
soltando-se. – O que está acontecendo?
– Você vem comigo –
respondeu a mãe, segurando no batente da porta para se equilibrar.
A avó a soltou e deu um
passo para trás.
– Você sabe o nosso
telefone e o endereço, certo? Ligue se ficar assustada ou se alguma coisa der
errado.
A Vovó estava chorando. Ver
a avó forte e tranquila chorar deixou Demi desnorteada. O que estava havendo? O
que fizera de errado?
– Eu sinto muito, Vovó, eu…
A Mamãe se lançou sobre ela
e a agarrou pelos ombros, sacudindo-a com força.
– Nunca peça
desculpas. Faz você parecer patética. Vamos embora.
Pegou a mão de Demi e a
puxou na direção da porta.
Demi saiu tropeçando atrás
da mãe para fora da casa, desceu os degraus da entrada e atravessou a rua até
uma Kombi enferrujada com adesivos de flores por
todos os lados e um gigantesco símbolo da paz pintado em amarelo na lateral.
A porta se abriu e uma
fumaça espessa e cinza saiu de dentro da van. Através da névoa, ela viu três
pessoas. Um negro com um enorme penteado afro e tiara vermelha estava no
assento do motorista. No banco de trás havia uma mulher de colete de franjas e
calças listradas com um lenço marrom amarrado nos cabelos loiros. Ao seu lado,
um homem de calças boca de sino e camiseta amarfanhada. O piso da van estava
coberto por tapetes marrons de retalhos e havia alguns cachimbos espalhados,
misturados com garrafas de cerveja vazias, embalagens de comida e fitas
magnéticas.
– Esta é a minha filha, Demetria–
disse a mamãe.
Demi não disse nada, mas
detestava ser chamada de Demetria. Diria isso à mãe mais tarde, quando as duas
estivessem a sós.
– Incrível – falou alguém.
– Ela é igualzinha a você.
Que louco.
– Entre – disse o motorista
rispidamente. – Vamos nos atrasar.
O homem de camiseta suja
estendeu o braço na direção de Demi, agarrou-a pela cintura e puxou para dentro
da van, onde ela se posicionou cuidadosamente de joelhos. A mãe entrou na Kombi
e bateu a porta. Uma música estranha pulsava como um coração dentro da van.
Tudo o que ela conseguiu entender foram algumas palavras. A fumaça deixava tudo
suave e um tanto fora de foco. Demi se aproximou da lateral de metal para abrir
espaço ao seu lado, mas a mãe se sentou perto da moça com lenço na cabeça. Elas
imediatamente começaram a falar sobre porcos e marchas e sobre um homem chamado
Kent. Nada daquilo fazia sentido para Demi, e a fumaça a estava deixando zonza.
Quando o homem ao lado dela acendeu o cachimbo, ela não conseguiu segurar um
pequeno suspiro de decepção.
O homem escutou e se virou
para ela. Soprando uma nuvem de fumaça cinza bem no rosto da menina, sorriu e
disse:
– Apenas acompanhe o ritmo,
garotinha.
– Olhe o jeito que a minha
mãe a veste – disse sua mãe com amargura. – Como se ela fosse uma bonequinha.
Como ela vai cair na real se não pode se sujar?
– Pode crer, Di – falou o
sujeito, exalando mais fumaça e recostando-se.
A Mamãe olhou para Demi
pela primeira vez. Olhou de verdade.
– Não se esqueça disso,
garota. A vida é mais do que cozinhar, limpar e ter filhos. A vida é ser livre.
Fazer o que se quer. Você pode ser a porra da presidente dos Estados Unidos, se
quiser.
– Até que seria bom ter um
novo presidente, sem dúvida – comentou o motorista.
A mulher com o lenço no
cabelo deu um tapinha na coxa da Mamãe:– É isso aí. Passa esse bagulho para
mim, Tommy – pediu, rindo.
Demi fez uma careta,
sentindo um novo tipo de vergonha na boca do estômago. Ela achava que ficava bonita com aquele vestido. E não queria ser presidente.
Queria ser bailarina. Mas, acima de tudo, queria que sua mãe a amasse. Foi
chegando para o lado até ficar perto o bastante da mãe para tocá-la.
– Feliz aniversário – disse
baixinho.
Enfiando a mão no bolso, tirou de dentro o colar em que havia
trabalhado tanto, sofrido, até, continuando a colar purpurina até muito depois
de as outras crianças terem saído da aula para brincar.
– Eu fiz para você.
Mamãe pegou o colar sem
jeito e fechou os dedos ao redor dele. Demi ficou esperando
que a mãe agradecesse e o pusesse no pescoço, mas ela não fez isso.
Simplesmente ficou ali
sentada, dançando ao som da música e conversando com os amigos.
Por fim, Demi fechou os olhos. A fumaça a estava deixando com sono. Durante
a maior parte de sua vida, ela havia sentido falta da mãe, e não do jeito que
se sente falta de um brinquedo perdido ou de uma amiga que parou de brincar com
você porque você não empresta seus brinquedos. Ela sentia saudade da mãe. Era um sentimento que estava sempre dentro dela, um espaço
vazio que doía durante o dia e era quase insuportável à noite. Prometera a si
mesma que, se a mãe um dia voltasse, ela seria boazinha. Perfeita. O que quer
que tivesse feito ou dito de tão errado, ela consertaria ou mudaria. Mais do
que qualquer outra coisa, queria que a mãe sentisse orgulho dela. Mas agora ela
não sabia o que fazer. Em seus sonhos, as duas sempre iam embora juntas
sozinhas, apenas as duas, de mãos dadas. “Aqui estamos”, a mamãe dos seus sonhos dizia quando as duas
subiam uma colina que levava à casa delas. “Lar doce lar.” Então ela beijava Demi
no rosto e sussurrava: “Senti tanto a sua falta. Eu não estava por perto
porque…”
– Demetria. Acorde.
Demi acordou num salto.
Estava com a cabeça latejando e a garganta doendo. Quando tentou dizer Onde estamos?, tudo o que saiu foi um resmungo. Todos deram risada e
continuaram rindo enquanto saíam da van. Era uma rua movimentada do centro de
Seattle com gente por todo lado, cantando, gritando e segurando cartazes que
diziam Faça amor, não faça guerra e Não iremos à guerra. Demi nunca tinha visto tanta gente num único lugar. A Mamãe
segurou sua mão e a puxou para perto dela. O resto do dia foi uma confusão de
gente gritando palavras de ordem e cantando. Demi passou todos os momentos
apavorada que de alguma forma pudesse largar da mão da mãe e ser arrastada pela
multidão. Ela não se sentiu nem um pouco mais segura quando os policiais apareceram,
porque eles traziam armas nos cintos, carregavam cassetetes e usavam escudos de
plástico que protegiam seus rostos.
Mas a multidão apenas
marchou e a polícia apenas observou.
Quando escureceu, ela
estava cansada, com fome e dor de cabeça, mas eles continuavam caminhando, uma
rua depois da outra. A multidão estava muito diferente agora. Todos haviam
deixado os cartazes de lado e estavam bebendo. Às vezes ela ouvia frases
inteiras ou pedaços de conversas, mas nada fazia sentido.
– Viram aqueles porcos?
Eles estavam morrendo de vontade de quebrar nossos
dentes, mas nós estávamos em paz, cara. Eles não podiam nos tocar. Ei, Di, você
está monopolizando esse baseado.
Todo mundo ao redor deu
risada, a mãe mais do que todos. Demi não conseguiu entender o que estava
acontecendo e estava com uma dor de cabeça terrível. Havia muita gente ao redor
deles, rindo e dançando. De algum lugar, vinha uma música que tomava conta da
rua. E então, de repente, ela não estava se segurando a nada.
– Mamãe! – gritou.
Ninguém respondeu nem se
virou para ela, embora houvesse pessoas por todo lado. Ela começou a empurrar
as pessoas à procura da mãe, chamando por ela até não ter mais voz. Por fim, voltou ao local onde a vira pela última vez e ficou esperando
na beira da calçada.
Ela vai voltar.
Demi sentiu as lágrimas
ardendo em seus olhos e rolando pelo rosto enquanto ela estava ali sentada,
esperando, tentando ser corajosa. Mas sua mãe não voltou.
Durante anos após esse dia,
ela tentou se lembrar do que havia acontecido depois, o que ela havia feito,
mas todas aquelas pessoas eram como uma nuvem obscurecendo suas lembranças.
Tudo de que se lembrava era de acordar sobre um degrau imundo de cimento numa
rua completamente deserta e ver um policial a cavalo.
Lá de cima, ele franziu a
testa para ela e perguntou:
– Ei, pequenina, você está
perdida?
– Estou.
Foi tudo o que ela
conseguiu dizer sem chorar.
Ele a levou de volta à casa
na Queen Anne Hill, onde sua avó a abraçou apertado, beijou seu rosto e lhe
disse que não era culpa dela. Mas Demi sabia que era. De alguma forma, ela
cometera um erro, havia feito algo feio. Da próxima vez que sua mãe viesse, ela
se esforçaria mais. Prometeria se tornar presidente do país e nunca, nunca mais
pediria desculpas. Demi conseguiu uma tabela com os nomes dos presidentes dos
Estados Unidos e decorou todos, na ordem da posse. Ela dizia a quem quer que perguntasse
que seria a primeira mulher presidente. Chegou inclusive a desistir das aulas
de balé. Em seu aniversário de 11 anos, enquanto Vovó acendia as velas de seu
bolo e cantava uma versão desanimada e chorosa de “Parabéns para Você”, Demi ficou olhando sem parar para a porta, pensando é agora, mas ninguém
bateu e o telefone não tocou. Mais tarde, com as caixas de presentes abertas ao
seu redor, ela tentou continuar sorrindo. Na frente dela, em cima da mesa de
centro, havia um álbum de recortes vazio. Não era o melhor dos presentes, mas
sua avó sempre lhe dava coisas assim – projetos para mantê-la ocupada e quieta.
– Ela nem ligou – disse Demi,
levantando o olhar.
A Vovó suspirou,
desanimada.
– A sua mãe tem… problemas,
Demi. Ela é fraca e confusa. Eu já lhe disse isso cem vezes. Você precisa parar
de fingir que as coisas são diferentes. O que importa é que você é forte.
Tinha ouvido esse conselho
inúmeras vezes.
– Eu sei.
A Vovó se sentou ao lado de
Demi no velho sofá floral e a colocou no colo. Demi adorava quando a Vovó lhe
dava colo. Ela se aninhou e apoiou o rosto no peito macio da Vovó.
– Eu gostaria que as coisas
fossem diferentes com a sua mãe, Demi, e esta é a mais pura verdade, mas ela é
uma alma perdida. Já faz muito tempo.
– É por isso que ela não me
ama?
A Vovó olhou para ela. Os
óculos de aros escuros aumentavam seus olhos cinza-claros.
– Ela ama você do jeito
dela. É por isso que sempre volta.
– Não parece amor.
– Eu sei.
– Eu acho que ela nem gosta
de mim.
– É de mim que ela não
gosta. Aconteceu uma coisa muito tempo atrás e eu não… Bem, isso não importa
agora – falou a avó, e abraçou Demi com mais força. – Um dia ela vai se
arrepender de ter perdido todos esses anos ao seu lado. Tenho certeza disso.
– Eu poderia mostrar meu
álbum de recortes a ela.
A Vovó não olhou para Demi.
– Isso seria legal.
Depois de um longo
silêncio, a avó disse:
– Feliz aniversário, Demi.
– E a beijou na testa. – Agora é melhor eu ficar um
pouco com o seu avô. Ele não está se sentindo bem hoje.
Depois que a avó saiu da
sala, Demi ficou sentada olhando para a
primeira página em branco de seu novo álbum de recortes. Seria o presente
perfeito para dar à mãe um dia, para mostrar o que ela havia perdido. Mas com o
que Demi o preencheria? Tinha algumas fotos de si mesma, tiradas principalmente
pelas mães das amiguinhas em festas e passeios, mas não muitas. Os olhos da
Vovó não eram bons o bastante para aquelas lentes minúsculas das câmeras fotográficas.
E da mãe só tinha uma foto. Ela pegou uma caneta e escreveu cuidadosamente a
data no canto superior direito da página. Então franziu a testa. O que mais? Querida mamãe. Hoje foi meu aniversário de 11 anos…
Depois desse dia, ela
começou a colecionar objetos que mostravam sua vida. Fotos da escola, fotos
dela praticando esportes, ingressos de cinema. Durante anos, sempre que tinha
um bom dia, voltava correndo para casa e escrevia a respeito, colando qualquer
recibo ou notinha que provasse onde ela havia estado ou o que havia feito. A
certa altura, começou a criar algumas coisas, de forma que parecesse melhor.
Não eram mentiras, apenas exageros. Qualquer coisa que algum dia pudesse levar
a mãe a dizer que tinha orgulho dela. Ela preencheu aquele álbum de recortes e
então outro e depois outro. A cada aniversário, ganhava um álbum novo em folha,
até chegar à adolescência. Até que, um dia, algo aconteceu com ela. Ela não
sabia ao certo o quê; talvez os seios que tivessem crescido mais rápido do que
os de qualquer outra menina, ou talvez ela apenas houvesse ficado cansada de registrar a vida em pedaços de papel que ninguém
nunca pedia para ver. Aos 14 anos, ela parou. Depositou todos os seus álbuns de
menina numa caixa de papelão grande, que enfiou nofundo
do armário, e pediu que a avó não comprasse mais nenhum.
– Tem certeza, querida?
– Tenho – respondeu.
Ela não se importava mais
com a mãe e tentava nunca pensar nela. Na verdade, passou a dizer a todo mundo na
escola que a mãe morrera num acidente de barco.
A mentira a libertou. Ela
parou de comprar suas roupas no setor infantil e passou para a área juvenil.
Comprava mini blusas justas que exibiam seus peitos e calças boca de sino de
cintura baixa que deixavam seu bumbum bonito. Precisava esconder essas roupas
da avó, mas isso era fácil: com um casaco largo e comprido e um aceno rápido,
saía de casa usando o que bem entendesse. Ela descobriu que, se usasse as
roupas certas e agisse de determinada maneira, era aceita pelos meninos e
meninas populares. Nas noites de sexta e sábado, dizia à avó que dormiria na casa
de uma amiga e ia andar de patins em Lake Hills, onde ninguém nunca perguntava
a ela sobre sua família ou olhava para ela como se ela fosse a “pobre Demi”. Aprendeu
a fumar sem tossir e a mascar chiclete para disfarçar o hálito. Na oitava
série, era uma das garotas mais populares da escola; e ter tantos amigos
ajudava. Quando se ocupava, não pensava na mulher que não a queria. Ela já não
se sentia tão solitária. Mas em algumas ocasiões tinha a impressão de estar… à
margem de tudo. Como se todas as pessoas com quem ela andava estivessem apenas
fazendo figuração.
Era o que acontecia naquele
momento. Estava em silêncio no lugar de sempre no ônibus escolar, ouvindo o
zum-zum-zum das conversas ao redor. Todo mundo parecia estar falando sobre
coisas de família. Ela não tinha nada a acrescentar a essas conversas. Não
sabia nada sobre brigar com o irmão mais novo, ficar de
castigo por responder aos pais ou ir ao shopping com a mãe. Felizmente, quando
o ônibus parou em seu ponto, ela saiu rápido, dando um tchau animado para as
amigas, rindo alto e acenando. Fingindo – o que se tornara um hábito nos
últimos tempos. Assim que o ônibus se afastou, ela pôs a mochila nos ombros e
começou a longa caminhada para casa. Havia acabado de virar a esquina quando a
viu. Lá, estacionada do outro lado da rua, na frente da casa da avó, uma velha Kombi
vermelha. Os adesivos de flores ainda estavam colados nas laterais.
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