Dezesseis
Desde o instante em que Demi
aceitou o novo emprego, Sel se viu assistindo à vida da amiga a distância.
Passaram-se meses com as duas vivendo de forma separada, ligadas apenas pelo
lugar. O minúsculo apartamento das duas, que um dia fora o porto seguro de suas
vidas, havia se transformado num lugar de passagem. Demi passava doze horas por
dia, sete dias por semana, trabalhando. Quando não estava tecnicamente no
trabalho, estava indo atrás de informações e gravando reportagens, num esforço
tremendo para fazer alguma coisa – qualquer coisa – que a pusesse diante das
câmeras. Sem Demi, a vida de Sel perdeu a forma, e como um suéter velho, não havia
o que fazer para que ele voltasse ao normal. Sua mãe insistia para que ela deixasse
o medo de lado e começasse a namorar, a se divertir. Mas como ela poderia sair
com alguém quando não tinha nenhum interesse pelos caras que se interessavam
por ela?
Demi não padecia do mesmo mal. Embora ainda chorasse por Joe
quando as duas bebiam juntas tarde da noite, ela não tinha problemas para
conhecer caras novos e levá-los para casa. Sel ainda não vira o mesmo cara sair
duas
vezes do quarto de Demi. Segundo a amiga, este era o plano. Ela
não tinha, pelo menos era o que dizia, nenhuma intenção de se apaixonar. Em
retrospecto, é claro, Demi passou a acreditar que amara Joe desesperadamente,
de tal forma que nenhum outro homem se compararia a ele. Mas não o bastante,
como Sel insistia em observar, para ligar para ele ou se mudar para o
Tennessee. Para ser sincera, Sel estava começando a se cansar das recordações
etílicas da amiga sobre o amor épico que sentira por Joe. Sel conhecia o amor,
sabia como era algo capaz de virar a pessoa pelo
avesso e secar seu coração. Um amor não correspondido era algo
triste e terrível. O dia todo, todos os dias, ela se movimentava como um planeta
menos importante na órbita de Nicholas, observando, desejando, ansiando por ele
num silêncio solitário. Depois daquela longa noite que os dois tinham passado
juntos na sala de espera do hospital, Sel pensara que talvez pudesse haver
alguma esperança. Ela sentira que uma porta havia se aberto entre eles. Os dois
haviam conversado com facilidade, e sobre coisas importantes. Mas qualquer
progresso que tivesse ocorrido sob a luz intensa da sala de espera desaparecera
ao amanhecer. Sel jamais se esqueceria da expressão no rosto dele ao saber que Demi
ficaria bem. Era mais do que
alívio. Foi quando ele se afastou dela. Agora, passados todos aqueles meses, Sel
sabia que estava na hora de se afastar dele. Estava na hora de ela deixar suas
fantasias de menina na caixa de areia junto com outros brinquedos e seguir em
frente. Ele não a amava. Quaisquer sonhos sobre isso não passavam de sonhos. Aquilo
não podia mais continuar. Foi a decisão que ela tomou no trabalho naquele dia,
parada na porta da sala dele, esperando que ele ao menos percebesse sua
presença. Assim que o expediente terminou, ela foi até a banca de revistas e
comprou todos os jornais locais. Enquanto Demi estivesse nos bares com seu
escolhido do dia, ou trabalhando até mais tarde, Sel pretendia repensar os
rumos de sua vida.
Agora, sentada à mesa da cozinha, com os restos do jantar dentro
das caixas ao seu redor, abriu o caderno de classificados do Seattle Times. Lá, viu várias opções
interessantes. Pegou uma caneta e estava prestes a marcar uma quando a porta
atrás dela se abriu. Ela se virou e viu Demi. A amiga estava com uma de suas
roupas de sair – um blusão cuidadosamente cortado que deixava um ombro à
mostra, jeans enfiados em botas de cano curto
e um cinto grande e solto. Os cabelos estavam puxados para a esquerda, presos
com uma pregadeira comprida, e um conjunto de crucifixos pendia de seu pescoço.
Claro que estava com um cara. Estava atirada em cima dele.
– Ei, Selly – disse ela com a voz de quem já havia tomado umas
três margaritas. – Veja quem eu encontrei.
O sujeito saiu de trás da porta.
Nicholas…
– Ei, Gomez – disse ele, sorrindo. – Demi quer que você venha
dançar conosco.
Ela fechou o jornal tomando um cuidado exagerado.
– Não, obrigada.
– Qual é, Selly? Vai ser como nos velhos tempos – disse Demi. – Os
três mosqueteiros.
– Não vai dar.
Demi soltou a mão de Nicholas e meio que tropeçou na sua direção.
– Por favor – disse ela. – Eu tive um dia ruim hoje. Eu preciso de
você.
– Não – Sel começou, mas Demi não estava escutando.
– Nós vamos ao Kel’s.
– Vamos lá, Gomez – Nicholas disse, indo na direção dela. – Vai
ser divertido. Como nos velhos tempos.
Ele sorriu de um jeito que tornava impossível dizer não, embora
ela soubesse que era uma péssima ideia se juntar a eles.
– Está bem – disse. – Vou me vestir.
Ela entrou no quarto e pôs um vestido azul brilhante com ombreiras
e um cinto ajustado. Quando voltou para a sala, Nicholas estava com Demi de
costas para a parede, segurando as mãos dela no alto e beijando-a.
– Estou pronta – disse ela, com indiferença.
Demi se desvencilhou de Nicholas e sorriu para ela.
– Ótimo. Vamos dançar.
De braços dados, os três saíram do apartamento e caminharam pela
rua de paralelepípedos deserta. No pub Kel’s, encontraram uma mesinha vazia
perto
da pista de dança. No instante em que Nicholas saiu para buscar as
bebidas, Sel olhou para o outro lado da mesa.
– O que você está fazendo com ele?
Demi riu.
– O que eu posso dizer? Nós nos encontramos depois do trabalho e bebemos
um pouco. Uma coisa levou a outra, e… – falou, então olhou diretamente para Sel.
– Você se incomoda se eu transar com ele?
Ali estava. A pergunta que importava. Sel não tinha dúvidas de
que, se ela abrisse o coração e dissesse a verdade, aquela noite terrível
estaria encerrada. Demi iria dar o fora em Nicholas num piscar de olhos, sem
nem dizer a ele por quê. Mas do que isso adiantaria? Sel sabia como Nicholas se
sentia em relação a Demi, como sempre se sentira. Ele queria uma mulher com
paixão. Perder Demi não o faria procurar Sel. E talvez estivesse na hora de
medidas drásticas, afinal. A esperança de Sel havia suportado muitas coisas, mas isso –
ele dormir com Demi – seria o fim de tudo.Ela olhou para a amiga, torcendo para
não estar com os olhos úmidos.
– Qual é, Demi? Não tem por que perguntar.
– Tem certeza? Você quer…
– Não. Mas… ele gosta de você. Você sabe disso, né? Você pode
magoá-lo.
Demi riu.
– Meninas católicas se preocupam com todo mundo, hein?
Antes que Sel pudesse responder, Nicholas voltou com duas
margaritas e
uma garrafa de cerveja. Deixando as bebidas em cima da mesa, pegou
a mão de Demi e a arrastou para a pista. Lá, os dois se misturaram à multidão,
onde ele a abraçou e a beijou. Sel pegou a bebida. Não fazia ideia do que
aquele beijo significava para Demi, mas sabia o
que significava para Nicholas, e esse
pensamento tomou conta dela como uma espécie de veneno.
Pelas duas horas seguintes, ela ficou sentada com eles, bebendo muito, fingindo estar se divertindo.
O tempo todo, alguma coisa dentro dela estava morrendo. A certa altura daquela
noite interminável e torturante, Demi foi ao banheiro e deixou Nicholas e Sel a
sós. Ela tentou pensar em alguma coisa para dizer a ele, mas, sinceramente, não
ousava sequer olhar em seus olhos. Com os cabelos cacheados úmidos e o rosto
corado, ele estava tão atraente que Sel sentia uma dor no peito.
– Ela é incrível mesmo – disse ele.
Atrás dele, a banda parou de tocar e estava escolhendo a próxima
canção.
– Eu achava que nunca iria acontecer… ela e eu – disse ele,
bebendo a cerveja e olhando na direção do banheiro, como se pudesse trazê-la de
volta
com seu desejo.
– Você precisa tomar cuidado – disse Sel quase baixo demais para
ser ouvida.
Ela sabia que aquelas palavras, e o alerta, revelaria um pouco do
que ela sentia, mas não podia evitar. Nicholas podia bancar o insensível no
trabalho, mas no hospital ela havia descoberto a verdade. Por dentro, onde
importava, ele era um idealista. Ninguém se feria tanto quanto alguém que
acreditava nas pessoas. E ela sabia disso.
Nicholas se inclinou para ela.
– O que você disse, Gomez?
Sel sacudiu a cabeça. De jeito nenhum ela repetiria aquilo. Além
do mais,
Demi havia voltado. Muito mais tarde, deitada sozinha em seu
quarto, ouvindo o barulho do sexo no quarto ao lado, ela finalmente chorou.
Nos dois meses que se passaram desde a noite no pub Kel’s, Sel não
foi a única a notar a mudança em Nicholas. O clima no escritório estava sombrio
e
silencioso. Mutt se mantinha absolutamente isolado, limpando e
arrumando o
equipamento, arquivando negativos em pastas. Carol, que havia sido
chamada
de volta ao trabalho depois da saída de Demi, ficava em sua própria sala,
com a porta fechada, mal dizendo qualquer coisa a alguém, mesmo quando pegava
seu café. Ninguém dizia nada sobre a aparência de Nicholas, mas todo mundo
percebia que nos últimos tempos ele parecia estar simplesmente saindo da cama e
indo direto para o trabalho. Estava com os cabelos compridos demais e começando
a formar cachos para todos os lados de um jeito esquisito. Passava dias sem
fazer a barba e os pelos formavam faixas escuras no rosto encovado. E usava
peças de roupa que não combinavam. Nas primeiras vezes que ele apareceu para
trabalhar desse jeito, todos ficaram em volta dele, deixando clara sua preocupação. Falando
baixo, mas com firmeza, ele fechava a porta da sala, garantindo que estava
ótimo. Mutt montou uma ofensiva que começou com uma oferta de maconha e
terminou com: “Você que sabe, cara. Eu estou aqui, se quiser conversar.”
A seu modo, Carol também havia tentado atravessar o fosso
invisível que Nicholas construíra ao seu redor. Suas tentativas fracassaram tão
estrondosamente quanto as de Mutt. A única pessoa que não tentara se aproximar
de Nicholas foi Sel, e ela era a única que sabia qual era o problema.
Demi.
Naquela manhã mesmo, quando as duas estavam tomando café, Demi dissera:
“Nicholas não para de me ligar. Será que eu devo sair com ele de novo?” Felizmente
para Sel, aquela acabara se revelando uma pergunta retórica. A própria Demi respondera:
“De jeito nenhum. Eu quero um relacionamento tanto quanto uma injeção letal.
Achei que ele soubesse disso.”
Agora, Sel estava sentada em sua mesa de trabalho, supostamente organizando
as novas informações de seguros.
Ela e Nicholas estavam a sós no escritório pela primeira vez em
dias. Carol e
Mutt estavam na rua, trabalhando. Sel se levantou lentamente e
caminhou até a porta fechada da sala dele. Não fazia nenhum sentido ela ir até
ele. Certamente, se a situação fosse inversa, ele não iria até ela, mas ele
estava sofrendo, e ela não podia suportar aquilo. Depois de um longo instante,
bateu à porta.
– Entre.
Ela abriu a porta.
Nicholas estava sentado à sua mesa, encurvado, escrevendo
furiosamente num bloco de folhas amarelas. Seus cabelos caíram sobre o rosto,
ele os puxou impacientemente para trás da orelha e olhou para Sel.
– O que foi, Gomez?
Ela foi até o frigobar que ficava no canto da sala e pegou duas cervejas.
Depois de abrir as duas, entregou uma a ele e se sentou na beira da
mesa
atulhada.
– Você parece estar se afogando – disse ela simplesmente.
Ele pegou a cerveja.
– Dá para ver, é?
– Dá.
Ele olhou para a porta.
– Estamos sozinhos?
– Mutt e Carol saíram há uns dez minutos.
Nicholas tomou um longo gole de cerveja e se recostou na cadeira.
– Ela não retorna as minhas ligações.
– Eu sei.
– Eu não entendo. Naquela noite… na nossa noite juntos, quero
dizer… eu
pensei…
– Quer saber a verdade?
– Eu sei a verdade.
Os dois ficaram sentados em silêncio por um longo tempo, bebendo
cerveja.
– É uma merda querer alguém que não se pode ter.
E, com aquelas poucas palavras, Sel entendeu. Ela nunca tivera uma
chance com ele.
– É mesmo.
Ficou em silêncio um instante, olhando para ele.
– Eu sinto muito, Nicholas – disse ela, afinal, levantando-se.
– Pelo que você sente muito?
Ela desejou ter coragem de responder, de dizer como se sentia, mas
algumas
coisas era melhor que permanecessem no silêncio.
– Bem, Srta. Gomez, seu currículo é bastante impressionante para
alguém
da sua idade. Posso perguntar por que está pensando em mudar para
a publicidade?
Sel tentou parecer relaxada. Havia se vestido com cuidado para
aquela entrevista, usando um terninho preto simples de gabardine de lã com uma
blusa branca e uma gravata de seda xadrez amarrada num laço ao redor do
pescoço.
Ela esperava que fosse um visual profissional.
– Nos anos que trabalhei com telejornalismo, aprendi algumas
coisas a meu
respeito e algumas coisas a respeito do mundo. As notícias, como
você sabe, são uma agitação constante. Estamos sempre andando na velocidade
máxima,
apurando os fatos e seguindo em frente. Muitas vezes eu me pego
mais interessada no que vem depois da história do que na história em si.
Acredito
que eu seja melhor pensando em longo prazo e fazendo planejamento.
Pensando em detalhes, em vez de pinceladas rápidas. E escrevo bem. Eu gostaria
de aprender mais sobre isso, mas vai ser impossível trabalhando com trechos de
áudio de dez segundos.
– Você tem pensado muito nisso.
– Tenho, sim.
A mulher do outro lado da mesa se recostou, analisando Sel através
de um
par de óculos modernos incrustado de contas. Pareceu gostar do que
estava
vendo.
– Está certo, Srta. Gomez. Vou conversar com meus sócios e
voltarei a
entrar em contato. Só para que eu saiba, quando você poderia começar
a
trabalhar?
– Eu teria de dar um aviso prévio de duas semanas, e então poderia
começar.
– Excelente – falou a mulher, levantando-se. – Precisa de um vale
para o estacionamento?
– Não, obrigada – respondeu Sel, depois apertou a mão da mulher
com firmeza e saiu do escritório.
Do lado de fora, a praça Pioneer estava lotada sob um austero céu
cinzento.
As ruas estreitas e antiquadas estavam repletas de carros, mas
poucos pedestres passavam por aqueles caminhos de prédios de tijolos aparentes.
Até mesmo os moradores de rua que dormiam nos bancos do parque e pediam
cigarros e dinheiro aos passantes estavam em algum outro lugar naquela tarde
fria de dezembro. Sel andou às pressas pela Primeira Avenida, abotoando o velho
casaco da faculdade enquanto caminhava. Pegou o ônibus para o centro e desceu
no ponto em frente à emissora de TV exatamente às 15h57. Surpreendentemente, a
sala principal estava vazia. Sel pendurou o casaco e atirou a bolsa e a pasta
embaixo da mesa, então foi até a sala de Nicholas.
– Voltei.
Ele estava ao telefone, mas fez um sinal para que ela entrasse.
–… qual é? – ele estava dizendo num tom exasperado. – Como é que
eu
posso ajudar vocês com isso?
Ficou em silêncio por um instante, franzindo a testa.
– Tudo bem – voltou a falar. – Mas você fica me devendo uma.
Desligou o telefone e sorriu para Sel, mas não foi seu velho
sorriso, aquele
que a deixava sem fôlego. Ela não via um daqueles desde a noite
com Demi.
– Você está de terno – disse ele. – Aqui, isso quer dizer apenas
duas coisas, e como eu sei que você não vai apresentar o noticiário…
– Mogelgaard & Associates.
– A agência de publicidade? Para que vaga você se candidatou?
– Executiva de contas.
– Você vai ser boa nisso.
– Obrigada, mas ainda não consegui o emprego.
– Mas vai conseguir.
Sel esperou que ele dissesse mais alguma coisa, mas ele apenas a
encarou, como se algo o estivesse incomodando. Sem dúvida ela o fazia
lembrar-se da
noite com Demi.
– Bem, é melhor eu voltar ao trabalho.
– Espere. Estou trabalhando numa matéria para o Mike. Preciso de
uma
ajuda.
– Claro.
Pelas horas seguintes, os dois ficaram sentados colados um ao outro na mesa dele, trabalhando e
retrabalhando o texto problemático. Sel tentava manter distância e dizia a si
mesma para não olhar em seus olhos. As duas decisões fracassaram. Quando
terminaram o trabalho, a noite havia caído. As salas silenciosas lá fora
estavam imersas na escuridão.
– Eu lhe devo um jantar – falou Nicholas, pondo os papéis de lado.
– São quase oito horas.
– Você não me deve nada – respondeu ela sem encará-lo. – Eu só
estava fazendo meu trabalho.
Ele olhou para ela.
– Como eu vou me virar sem você?
Meses antes, quando ainda tinha esperanças, ela teria corado num
instante
como aquele. Talvez até mesmo uma semana atrás isso tivesse acontecido.
– Eu o ajudo a contratar alguém.
– Você acha que vai ser fácil substituí-la?
Ela não soube o que responder.
– Estou indo embora…
– Eu lhe devo um jantar. Só isso. Agora vá pegar seu casaco. Por
favor.
– Está bem.
Os dois desceram e entraram no carro dele. Em poucos minutos,
estavam parando em frente a uma bela casa flutuante de cedro no lago Union.
– Onde estamos? – perguntou Sel.
– Na minha casa. Não se preocupe, eu não vou cozinhar para você.
Só quero me trocar. Você está toda arrumada.
Sel endureceu novamente para não permitir que a emoção se
instalasse em seu peito. Não a deixaria entrar. Por muito tempo, ela se
permitira ter sonhos de um final feliz que nunca aconteceria. Ela o seguiu até
o deque e para o interior de uma casa surpreendentemente espaçosa. Nicholas foi
direto até a lareira, onde a lenha já estava posta. Agachou-se, pôs fogo numa
folha de jornal e a usou para acender a lareira. Então ele se virou para ela.
– Quer beber alguma coisa?
– Rum com Coca?
– Perfeito.
Nicholas foi até a cozinha, serviu duas bebidas e voltou.
– Aqui está. Eu já volto.
Ela ficou ali parada por um
momento, sem saber o que fazer. Olhou ao redor na sala, percebendo como havia
poucas fotografias. Sobre o armário da televisão
havia uma única foto de um casal de meia-idade usando roupas muito coloridas. Os dois estavam agaJoeos num
ambiente parecido com uma selva, cercados de crianças.
– Meus pais – disse Nicholas, aparecendo atrás dela –, Myrna e
William.
Ela se virou com a sensação de ter sido pega bisbilhotando.
– Onde eles moram? – perguntou ela.
Foi até o sofá e se sentou. Precisava de distância entre eles.
– Eles eram missionários. Foram mortos em Uganda pelos esquadrões
da
morte de Idi Amin.
– Onde você estava?
– Quando eu tinha 16 anos, eles me mandaram estudar em Nova York.
Foi a última vez que eu os vi.
Sel sabia que devia apenas dizer que sentia muito e deixar para
lá. Aquelas lembranças, sem dúvida, eram dolorosas para ele. Mas não conseguiu
fazer isso, não conseguiu simplesmente deixar passar.
– Então eles também eram idealistas.
– O que quer dizer com também?
Sel não viu por que exprimir com palavras aquele conhecimento que
havia
adquirido ao longo dos anos, montando uma imagem da vida dele.
– Não importa. Você teve sorte de ter sido criado por pessoas que acreditavam
em alguma coisa.
Ele a encarou, franzindo a testa.
– Foi por isso que se tornou correspondente de guerra? Para lutar
à sua maneira?
Nicholas suspirou e balançou a cabeça, então foi até o sofá e
sentou ao lado dela. A forma como olhava para ela, como se ela estivesse de
algum jeito diluída ou fora de foco, fez o coração de Sel disparar.
– Como você faz isso?
– O quê?
– Me conhecer tão bem.
Ela sorriu, esperando não aparentar a fragilidade que sentia.
– Nós trabalhamos juntos há muito tempo.
Levou algum tempo até ele perguntar:
– Por que você está saindo, de verdade, Gomez?
Ela se inclinou um pouco para trás.
– Lembra quando você disse que era horrível querer algo que não se
pode ter? Eu nunca vou ser uma grande repórter ou uma produtora incrível. Eu
não vivo e respiro notícia. Estou cansada de não ser boa o bastante.
– Eu disse que era horrível querer alguém que não se pode ter.
– Bem… é a mesma coisa.
– É mesmo?
Ele largou a bebida sobre a mesa de centro. Ela se virou para
encará-lo e
sentou em cima das pernas.
– Eu sei como é querer alguém.
Ele pareceu não acreditar. Sem dúvida estava pensando nas vezes
que Demi
a provocara por nunca sair com ninguém.
– Quem?
Sel sabia que devia mentir, deixar passar a pergunta, mas naquele momento,
com ele tão perto, ela sentiu uma necessidade dele que quase a dominou. Que
Deus a protegesse, mas aquela porta parecia estar aberta de novo. Embora ela
soubesse que não estava, soubesse que era uma ilusão, ela continuou mesmo
assim.
– Você.
Ele recuou. Ficou evidente que ele nunca imaginara isso.
– Você nunca…
– E como eu poderia? Eu sabia o que você sentia por Demi.
Sel esperou que Nicholas dissesse alguma coisa, mas ele apenas ficou olhando para ela. Ela
não sabia o que pensar daquele silêncio. Nicholas não lhe dera um não, não
achara graça. Talvez aquilo significasse algo. Durante anos, ela fizera muito esforço para
controlar seu desejo por ele, mas, agora, com ele tão perto, não havia como se
segurar. Era sua última chance.
– Me beije, Nicholas. Mostre que eu estou errada em querer você.
– Eu não quero magoá-la. Você é uma boa garota, e eu não quero
entrar num…
– Vou ficar magoada se você não me beijar.
– Selly…
Ao menos uma vez Sel não era Gomez. Ela se aproximou mais dele.
– Agora quem está com medo? Me beije, Nicholas.
Pouco antes de tocar seus lábios nos dele, Sel achou que o ouviu
dizer “É uma péssima ideia”, mas, antes que ela pudesse tranquilizá-lo, Nicholas
estava correspondendo ao beijo. Não era a primeira vez que Sel beijava. Não era
sequer a primeira vez que ela beijava um homem de quem gostava. Ainda assim, de
uma maneira absurda, ela começou a chorar. Ele tentou se afastar quando
percebeu as lágrimas, mas ela não deixou. Num instante eles estavam se
agarrando como dois adolescentes no sofá. No instante seguinte, ela estava no
chão, em frente à lareira, nua. Ele se ajoelhou ao lado dela, ainda vestido. As
sombras escondiam metade do corpo dele e ressaltavam os ângulos precisos e as
partes côncavas do seu rosto.
– Você tem certeza?
– Essa seria uma boa pergunta para fazer antes de eu ficar sem
roupa.
Sorrindo, ela se levantou um pouco e começou a desabotoar a camisa
dele.
Ele fez um som que era meio desespero, meio rendição, e deixou que
ela tirasse sua roupa. Então a tomou nos braços de novo. Os beijos dele estavam
diferentes agora. Mais duros, mais profundos, mais eróticos. Sel sentiu o
próprio corpo reagindo de uma forma que nunca havia feito. Era como se ela se
tornasse nada e tudo, apenas uma coleção de terminações nervosas. O toque dele
era sua tortura e sua salvação. As sensações se tornaram tudo, tudo o que ela
era, tudo com o que ela se importava. Dor, prazer, frustração. Até mesmo a
respiração não era dela. Ela estava arfando, engasgando, pedindo que ele
parasse e que não parasse, que continuasse e não continuasse. Ela sentiu o
corpo arqueando para cima, como se todo o seu ser estivesse em busca de alguma
coisa, algo de que ela precisava com desespero e que a angustiava, mas ela
sequer sabia o que era.
E então ele estava dentro dela, ferindo-a. Ela arfou com a dor
repentina, mas não fez qualquer som. Em vez disso, agarrou-se a Nicholas,
beijando-o e
movimentando-se com ele até que a dor se dissolvesse e não restasse
mais nada dela. Tudo o que havia era aquilo: a sensação do lugar onde os dois
se uniam, o desejo feroz e angustiante de algo mais…
Eu te amo, ela pensou, abraçando-o e
indo ao encontro dele. As palavras contidas encheram sua cabeça e se tornaram a
trilha sonora do ritmo de seus corpos.
– Selly – gritou ele, entrando fundo nela.
O corpo dela explodiu como uma estrela no espaço, partindo-se e
flutuando.
O tempo parou por um instante, e então se reacomodou lentamente.
– Nossa – disse ela, caindo de costas no tapete quente.
Pela primeira vez na vida, entendeu do que tanto se falava.
Ele deitou ao lado dela, com o corpo molhado de suor aconchegado
ao dela.
Mantendo um braço ao redor de Sel, Nicholas ficou olhando fixamente para o teto.
Estavam os dois ofegantes.
– Você era virgem – disse ele, parecendo assustadoramente
distante.
– Era – foi tudo o que ela conseguiu dizer.
Ela se virou de lado e passou uma perna por cima dele.
– É sempre assim?
Quando Nicholas se virou, Sel viu algo nos olhos azuis dele que a
deixou
confusa: medo.
– Não, Selly – disse ele depois de um longo tempo. – Não é.
Selly acordou nos braços de Nicholas. Os dois estavam deitados com
os lençóis amontoados na altura dos quadris. Ela ficou olhando para o teto rebaixado, sentindo o peso pouco familiar
da mão dele entre seus seios nus.
O brilho suave do amanhecer invadia o ambiente pela janela aberta,
refletindo no piso de madeira.
O arrebentar contínuo das ondas no casco ecoava a batida lenta e constante de
seu coração. Ela não sabia o que fazer agora, como agir. Desde o primeiro
beijo, aquilo havia sido um presente mágico e inesperado. Os dois zeram amor três vezes durante
a noite. A última, apenas poucas horas antes. Eles haviam se beijado, feito
omeletes e comido em frente à lareira, tinham conversado sobre suas famílias, o
trabalho e seus sonhos. Nicholas havia inclusive contado uma série de piadas
extremamente idiotas. Mas não haviam conversando sobre o amanhã, e agora ele
havia chegado, tão presente entre os dois quanto os lençóis macios e o som da
respiração deles. Sel estava feliz por ter esperado para fazer amor, embora
esperar pelo cara certo estivesse fora de moda. Tudo o que acontecera na noite
anterior mexera com o mundo dela, exatamente como diziam os poetas. Mas e se Nicholas
não achasse que ela era a garota certa? Ele não dissera que a amava – é claro
que não – e, sem essas palavras, como uma mulher poderia inserir a paixão
naquele contexto? Será que ela devia se vestir, sair às escondidas e fingir que nada havia acontecido?
Ou devia descer, preparar o café da manhã e rezar para que a noite anterior
tivesse sido um começo e não um fim? Quando o sentiu se mexer ao seu lado,
ficou tensa.
– Bom dia – disse ele, com a voz rouca.
Ela não saberia bancar a tímida ou agir com indiferença. Ela o
amava havia
muito tempo para isso. O que importava agora era que eles não
haviam simplesmente se levantado e seguido cada um o seu rumo.
– Me conte alguma coisa que eu não saiba a seu respeito.
Ele acariciou o braço dela.
– Hum. Eu fui coroinha.
Foi surpreendentemente fácil imaginá-lo como coroinha: um menino magricela
com os cabelos úmidos penteados para trás andando com cuidado
pelo corredor a caminho do altar. A imagem a fez dar risada.
– A minha mãe ia adorar você.
– Agora me conte alguma coisa de você.
– Sou fã de ficção científica. Guerra nas Estrelas, Jornada nas Estrelas , Os
hereges de Duna. Gosto de tudo isso.
– Achei que você fosse leitora de romances.
– Isso também. Agora me diga alguma coisa importante. Por que você
desistiu de ser repórter?
– Você sempre mergulha direto nas águas profundas, não é? – falou
ele,
com um suspiro. – Acho que já descobriu, de qualquer maneira. Eu
fui para lá
como uma espécie de bravo cavaleiro, pronto para lançar minha luz
sobre o que estivesse acontecendo. E então eu vi o que estava acontecendo…
Ela não disse nada, apenas o beijou no ombro.
– Meus pais haviam escondido muita coisa de mim. Eu me achava
preparado, mas não se pode estar preparado para aquilo. É sangue,
morte e
corpos espalhados. São crianças mortas nas ruas e meninos com
metralhadoras. Eu fui capturado…
Sua voz desapareceu. Ele limpou a garganta e voltou a falar.
– Não sei por que me deixaram vivo, mas deixaram. Eu enfiei o rabo entre
as pernas e voltei correndo para casa.
– Você não fez nada do que deva se envergonhar.
– Eu fugi como um covarde. Fracassei. Agora você sabe tudo, sabe
por que
eu estou em Seattle.
– Você acha que isso muda o que eu sinto por você?
Ele fez uma pequena pausa antes de dizer:
– Precisamos ir devagar com isso, Selly.
– Eu sei.
Ela colou seu corpo ao dele. Tentou memorizar todo o rosto dele, e
como
ele era no começo da manhã. Viu uma sombra de barba que havia
crescido
durante o sono e pensou: já há mudanças.
Ele pôs o cabelo atrás da orelha de Sel.
– Não quero magoar você.
Sel queria dizer simplesmente, então não magoe, mas não era o momento
para respostas simples ou faz de conta. O momento era de
sinceridade.
– Eu assumo o risco de me magoar se você também assumir – disse
ela com
tranquilidade.
Um pequeno sorriso curvou os cantos da boca de Nicholas, mas ela
não o viu
refletido em seus olhos. Na
verdade, ele parecia muito mais do que um pouco preocupado.
– Eu sabia que você era perigosa.
Sel não entendeu.
– Eu? Você deve estar brincando. Nunca ninguém achou que eu fosse perigosa.
– Eu acho.
– Por quê?
Ele não respondeu. Em vez disso, inclinou-se apenas o suficiente para beijá-la.
Ela fechou os olhos, esperando pelo beijo. Sel não teve certeza,
mas, talvez,
pouco antes dos lábios dele tocarem os dela, Nicholas tivesse
dito: “Porque você é o tipo de garota por quem um cara pode se apaixonar.” E
ele não pareceu muito feliz ao dizer isso. Na frente da porta do apartamento, Sel
fez uma pausa. Apenas momentos atrás, ela estava voando alto, revivendo a noite
passada nos braços de Nicholas. Mas agora estava de volta ao mundo real, onde
havia acabado de dormir com um homem com quem a melhor amiga havia dormido
antes.
O que Demi iria dizer?
Sel abriu a porta e entrou. Naquela manhã clara e chuvosa, o
apartamento
estava surpreendentemente silencioso. Atirou a bolsa em cima da
mesa da
cozinha e preparou uma xícara de chá.
– Onde foi que você se meteu?
Ela se virou, hesitante.
Demi estava parada na frente dela com os cabelos encharcados e
enrolada
numa toalha.
– Eu quase chamei a polícia ontem à noite. Onde… você está usando
o
mesmo terninho de ontem.
Um sorriso malicioso tomou conta do rosto de Demi.
– Você passou a noite com alguém? Meu Deus, foi isso. Você está ficando
vermelha – constatou Demi, rindo. – E eu pensando que você ia
acabar morrendo virgem.
Agarrou o braço de Sel e a arrastou até o sofá.
– Pode ir falando.
Sel encarou a melhor amiga e desejou que tivesse chegado em casa
depois de Demi ter saído para trabalhar. Aquela conversa precisava ser pensada,
planejada. Demi poderia estragar tudo com uma palavra, um olhar. Ele é meu, a amiga poderia dizer, e
então o que Sel iria fazer?
– Fale – insistiu Demi, dando um encontrão na amiga.
Sel respirou fundo.
– Eu estou apaixonada.
– Opa, pode ir parando, Penélope Charmosa. Apaixonada? Depois de
uma noite?
Era agora ou nunca, e embora nunca parecesse bom, não fazia
sentido adiar o inevitável.
– Não – disse ela. – Eu sou apaixonada por ele há anos.
– Quem?
– Nicholas.
– O nosso Nicholas?
Sel se recusou a deixar o pronome feri-la.
– Sim. Ontem à noite…
– Ele transou comigo há… o quê? Dois meses? Depois não parava de
me ligar. Ele está se recuperando do trauma; não pode estar apaixonado por
você.
Sel tentou não deixar que as palavras de Demi a afetassem, mas
afetaram.
– Eu sabia que você faria o assunto girar em torno de você.
– Mas… ele é seu chefe, pelo amor de Deus.
– Eu pedi demissão. Vou começar a trabalhar com publicidade em
duas semanas.
– Ah, que ótimo! Agora você vai desistir da sua carreira por um
cara.
– Nós duas sabemos que eu não sou boa o bastante para trabalhar em
rede
nacional. Este sonho é seu, Demi. Sempre foi.
Sel viu que a amiga queria discutir a questão. E viu também que
qualquer coisa que tentasse argumentar seria mentira.
– Eu sou apaixonada por ele, Demi – disse ela afinal. – Sou apaixonada por
ele há anos.
– Por que não me contou?
– Porque eu tinha medo.
– Do quê?
Selly não pôde responder.
Demi a encarou. Naqueles olhos escuros e expressivos, Sel viu
tudo: medo,
preocupação e inveja.
– Isso só pode acabar mal.
– Eu desconfiei do Joe no início, lembra? Mas deixei isso de lado, porque
você precisava que eu fizesse isso.
– Por falar em acabar mal…
– Você pode ficar feliz por mim?
Demi encarou a amiga e, embora finalmente tenha sorrido, não foi de
verdade, e as duas sabiam disso.
– Vou tentar.
Está se recuperando do trauma . A
expressão, bem como o que ela fazia
relembrar, não saía da cabeça de Sel.
Ele transou comigo há… o quê? Dois meses?
… não pode estar apaixonado por você.
Assim que Demi saiu do apartamento, Sel ligou para o trabalho
dizendo que estava doente e se enfiou na cama. Não fazia vinte minutos que
estava deitada quando uma batida na porta a arrancou dos pensamentos num susto.
– Caramba, Demi – resmungou, vestindo o roupão aveludado
cor-de-rosa e
os chinelos de coelhinho. – Você nunca se lembra de levar a chave?
Abriu a porta.
Nicholas estava lá.
– Você não parece doente.
– Mentiroso. Eu estou com uma cara horrível.
Ele se aproximou, abriu o cinto e tirou o roupão dela, que ficou amontoado
no chão formando um monte cor-de-rosa.
– Camisola de flanela. Que sexy.
Nicholas fechou a porta atrás de si.
Sel tentou não pensar na conversa que tivera com Demi…
Está se recuperando do trauma…
… não pode estar apaixonado por você…
… mas as palavras sucediam uma à outra em sua mente, tropeçando de
vez
em quando na frase dele… não quero magoar
você.
Ela via agora, de repente, o perigo que havia aceitado tão
ingenuamente. Ele
poderia destruir seu coração, e ela não tinha como se proteger.
– Achei que você fosse ficar feliz de me ver – disse ele.
– Eu contei a Demi sobre nós.
– Ah. E houve algum problema?
– Ela acha que você está me usando para se recuperar do trauma.
– Ah, ela acha, é?
Sel engoliu em seco.
– Você a ama?
– É por isso que você está assim?
Ele a pegou nos braços, levando-a para o quarto como se ela não
pesasse nada. Já na cama, começou a desabotoar a camisola, espalhando beijos
pelo caminho.
– Isso não faz diferença – disse ele, afinal. – Ela não me amava.
Sel fechou os olhos e deixou que ele abalasse o mundo dela mais
uma vez.
Mas, quando tudo terminou e ela estava enroscada nele de novo, a
incerteza
voltou. Ela podia não ser a garota mais experiente do mundo, mas
também não era a mais ingênua. E de uma coisa tinha certeza: fazia diferença se
Nicholas havia amado Demi.
Fazia muita diferença.
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