Doze
O verão depois da formatura
foi o mais parecido com o paraíso que Demi
poderia imaginar. Ela e Sel encontraram um apartamento no estilo
dos anos
1960 numa ótima localização – em cima do mercado municipal.
Levaram para
lá móveis da casa da avó de Demi e encheram a cozinha de potes de
plástico e pratos de cerâmica de 40 anos antes. Penduraram nas paredes seus pôsteres
preferidos e puseram fotos delas mesmas em todas as mesinhas auxiliares. A Sra.
Gomez as surpreendera um dia com sacolas de compras e várias plantas artificiais,
para dar uma sensação de aconchego ao lugar, ela dissera. A vizinhança deu
origem a um estilo de vida. Elas podiam ir a pé a vários bares – os preferidos
eram o Athenian, dentro do mercado, e o velho e enfumaçado Virginia Inn, na
esquina. Às seis da manhã, em meio ao barulho
dos caminhões de entrega e buzinas de carros, elas atravessavam a
rua para
tomar um latte numa cafeteria da moda e comprar croissants numa padaria
francesa. Trabalhadoras solteiras, caíram numa rotina relaxada.
Todas as manhãs, tomavam café sentadas em mesas de ferro na calçada e liam os
vários jornais que reuniam: The New York Times , The Wall Street Journal , Seattle Times e Post-Intelligencer se
tornaram suas bíblias. Quando terminavam a leitura, iam para o trabalho, onde a
cada dia aprendiam algo novo sobre telejornalismo. Depois do expediente,
vestiam túnicas brilhosas com ombreiras e calças fuseau e iam a uma das muitas
casas noturnas do centro da cidade. Ouviam punk rock, new age, rock and roll,
pop, o que quer que lhes desse vontade. E como Demi não precisava mais esconder
a existência de Joe, os três agora saíam juntos com frequência, e se divertiam
à beça. Era tudo o que ela e Sel haviam sonhado, tantos anos antes, nas margens
escuras do rio Pilchuck, e Demi adorava cada minuto. Agora estavam estacionando
na frente do trabalho. Tinham conversando
durante todo o caminho até lá. Mas, no instante em que abriu a
porta, Demi soube que alguma coisa estava acontecendo. Mutt estava perto da
janela, arrumando às pressas o equipamento de gravação. Nicholas estava em sua
sala, berrando com alguém ao telefone.
– O que houve? – perguntou Demi, atirando a bolsa sobre a mesa
impecável
de Sel.
Mutt olhou para ela.
– Tem um protesto acontecendo. A história é nossa.
– Onde está a Carol?
– No hospital. Em trabalho de parto.
Era a chance de Demi. Ela foi direto para a sala de Nicholas, sem
sequer se
dar o trabalho de bater.
– Me deixe entrar no ar. Eu sei que você acha que não estou
pronta, mas eu
estou. E quem mais poderia fazer isso?
Ele desligou o telefone e olhou para ela.
– Eu já disse à emissora que você vai fazer a reportagem. Era por
isso que eu estava aos berros.
Deu a volta na mesa e se aproximou dela.
– Não me decepcione, Demi.
Demi sabia que aquilo seria pouco profissional, mas não conseguiu
se segurar e lhe deu um abraço.
– Você é o máximo. Vai sentir orgulho de mim. Você vai ver.
Ela estava a caminho da porta quando ele limpou a garganta e a
chamou de
volta. Ela parou e se virou.
– Não quer ler o material de apoio antes? Ou vai chegar lá às
cegas?
Demi sentiu o rosto queimar.
– Oooops. Vou ler.
Ele deu a ela um bolo de papel de fax.
– É sobre uma dona de casa de Yelm que recebe espíritos. J. Z. Knight.
Demi franziu a testa.
– Algum problema?
– Não. É só que… eu conheço alguém que mora lá. Só isso.
– Bom, não vai dar tempo de visitar amigos. Agora vá. Quero você
de volta
às duas, para editar.
Sem Mutt e Demi, o escritório estava em silêncio. Era a primeira
vez em
todo o verão que Sel ficava sozinha ali com Nicholas. Um pouco nervosa por
causa do silêncio – e por ver a porta do chefe aberta e sentir tão
intensamente a presença dele do outro lado –, acabava atendendo ao telefone
rápido demais e chegava a parecer um pouco esbaforida ao falar.
Quando Demi estava lá, havia barulho e comoção. Sua melhor amiga
vivia para o telejornalismo e não deixava nada fora de seu campo de visão. O
dia
inteiro, todos os dias, ela enchia Nicholas, Carol e Mutt de
perguntas. Estava sempre em busca da orientação deles sobre o que quer que
fosse.
Sel perdeu a noção das vezes em que vira Mutt revirar os olhos
quando Demi se afastava de uma conversa. Carol era ainda menos paciente. A
repórter principal mal falava com Demi ultimamente. Não que Demi parecesse se importar
com isso. O que tinha importância para era o jornalismo, em primeiro e em
último lugar. Sempre. Sel, por outro lado, se importava com as pessoas do
escritório, mais do que com as reportagens que faziam. Havia se entendido quase
que imediatamente com Carol, que costumava levá-la para almoçar para falar
sobre o parto iminente e, com a mesma frequência, chamava Sel para ajudá-la a editar
seus textos ou fazer pesquisas. Mutt também havia escolhido Sel como confidente. Passava longas horas
conversando com ela sobre seus problemas familiares e a mulher que não quisera
se casar com ele. A única pessoa com quem Sel não havia criado laços era Nicholas.
Ela ficava uma pilha de nervos
quando estava perto dele. Tudo o que ele precisava fazer era olhar para ela e
sorrir para que ela deixasse cair o que quer que estivesse em sua mão. Sempre
gaguejava ao lhe dar recados e vivia tropeçando no tapete da sala dele. Era
patético. No começo, Sel achou que fosse pela aparência dele. Ele era o
perfeito católico irlandês, com cabelos pretos e olhos azuis. Quando ele
sorria, seu rosto se enrugava de tal forma que ela sentia a respiração presa na
garganta. Sel imaginou que a paixonite não iria durar, que, com o tempo,
conforme ela o conhecesse melhor, sua aparência se tornaria menos arrebatadora.
No mínimo, imaginou que desenvolveria alguma imunidade ao sorriso dele. Mas não
teve essa sorte. Tudo o que ele dizia e fazia apenas apertava mais o nó em seu
peito. Por baixo do verniz cínico dele, ela via um idealista, e ainda mais: um
idealista ferido. Alguma coisa ferira Nicholas, deixara-o ali, à margem das
histórias importantes, e o mistério em relação a isso a atormentava. Ela foi
até o canto do escritório, onde uma pilha de fitas estava esperando para ser guardada. Havia acabado de pegar uma
braçada delas quando Nicholas apareceu na porta de sua sala.
– Ei – disse ele. – Está ocupada?
Ela largou a pilha de fitas. Idiota.
– Não – respondeu. – Não muito.
– Vamos sair para almoçar de verdade. O dia está devagar, e eu
estou
cansado de comer sanduíches da delicatéssen.
– Ahn… claro.
Sel se concentrou nas atividades diante de si: ligar a secretária
eletrônica,
vestir o casaco e pegar a bolsa. Ele chegou ao lado dela.
– Pronta?
– Vamos lá.
Ela caminhou ao lado dele pela quadra e depois atravessando a rua.
De vez
em quando, o corpo dele roçava no dela, e Sel tinha absoluta
consciência de
cada contato.
Quando os dois finalmente chegaram ao restaurante, ele a levou até uma
mesa num canto que dava para a baía Elliot e as lojas do Píer 70.
Uma garçonete apareceu quase que imediatamente para anotar seus pedidos.
– Você tem idade para beber, Gomez? – perguntou ele com um
sorriso.
– Muito engraçado. Mas não bebo no horário de trabalho.
Ao dizer isso, que não poderia ser mais sem graça, ela estremeceu
e se achou uma idiota de novo.
– Você é uma garota muito responsável – disse ele quando a
garçonete se
afastou, e estava claramente se esforçando para não sorrir.
– Mulher – corrigiu ela com firmeza, torcendo para não ficar
vermelha.
Com isso ele sorriu.
– Eu estava tentando fazer um elogio.
– E escolheu responsável?
– O que você preferiria?
– Sexy. Brilhante. Linda – falou, nervosa, parecendo muito mais
com uma garota do que gostaria.
– Você sabe, as palavras que toda mulher quer ouvir.
Ela abriu um sorriso. Era sua chance de causar uma boa impressão,
atrair a
atenção dele como ele atraía a dela. Não queria perder a
oportunidade. Ele se recostou na cadeira, e ela teve esperanças de que não
fosse por de repente querer aumentar a distância entre os dois. Na verdade,
naquele momento ela desejou fervorosamente que tivesse ido para a cama com um
dos namorados da faculdade. Tinha certeza de que ele podia ver o carimbo da virgindade
nela.
– Você está conosco há, o quê… dois meses?
– Quase três.
– O que está achando?
– Estou gostando.
– Gostando? Que resposta estranha. Este é um negócio de amor ou
ódio –falou ele, e se inclinou para a frente, pondo os cotovelos sobre a mesa.
– Você tem paixão pelo jornalismo?
Aquela palavra de novo: a palavra que a separava de Demi como o
joio do trigo.
– S-sim.
Ele a analisou, depois deu um sorriso demonstrando que entendera. Sel
imaginou quanto de sua alma aquele olhar azul havia alcançado.
– Demi com certeza tem essa paixão.
– É.
Ele tentou parecer casual ao perguntar:
– Ela está saindo com alguém?
Sel considerou um triunfo pessoal não ter se encolhido nem torcido
a cara. Agora, pelo menos, sabia por que ele a havia convidado para almoçar. Devia
ter imaginado. Queria dizer que sim, que ela estava com o mesmo homem havia
anos, mas não ousou fazer isso. Demi podia não estar mais escondendo Joe, mas
não o exibia também.
– O que você acha?
– Acho que ela sai com muitos homens.
Felizmente, a garçonete voltou com seus pedidos e Sel pôde parar
de olhar
nos olhos dele e fingir que estava fascinada pelo prato.
– E você? Tenho a sensação que você não é exatamente apaixonado
pelo seu trabalho.
Ele ergueu o olhar rapidamente.
– O que a faz dizer isso?
Ela deu de ombros e continuou comendo, mas agora o estava
observando.
– Talvez não – admitiu ele baixinho.
Ela se sentiu imobilizar. Ficou com o garfo parado no ar. Pela
primeira vez,
os dois não estavam jogando conversa fora. Ele acabara de revelar
algo importante. Sel tinha quase certeza disso.
– Fale sobre El Salvador.
– Você sabe o que aconteceu lá? O massacre? Foi um banho de
sangue. As coisas têm piorado ultimamente. Os esquadrões da morte estão matando
civis, padres, freiras.
Sel não sabia de tudo aquilo, ou de nada daquilo, na realidade,
mas assentiu com a cabeça mesmo assim, observando as emoções que atravessavam o
rosto dele. Nunca o vira tão animado, tão intenso. Mais uma vez, havia uma emoção
impossível de interpretar em seus olhos.
– Você fala como se adorasse aquilo. Por que veio embora?
– Eu não falo sobre isso.
Ele terminou a cerveja e se levantou.
– É melhor voltarmos ao trabalho.
Ela olhou para seus pratos, que mal haviam sido tocados. Era óbvio
que fora longe demais, que se intrometera demais.
– Eu fui muito invasiva. Sinto muito…
– Não sinta. É uma história antiga. Vamos embora.
Durante todo o caminho de volta, ele não disse nada. Os dois
subiram as escadas rapidamente e entraram no escritório.
Lá, ela não se conteve e tocou no braço dele.
– Eu sinto muito, de verdade. Não queria chatear você.
– Como eu disse, já passou.
– Mas não passou realmente, não é? – disse ela baixinho, e soube
na hora
que havia ultrapassado os limites mais uma vez.
– Volte ao trabalho – disse ele bruscamente, entrando em sua sala
e batendo
a porta atrás de si.
Yelm ficava no vale verdejante
entre Olympia e Tacoma. Sempre fora o tipo
de cidade em que os moradores usavam camisas de anela e jeans desbotados e acenavam
uns para os outros ao se cruzarem nas ruas.
Tudo isso havia mudado alguns anos antes, no dia em que um velho guerreiro
de 35 mil anos de Atlântida teria aparecido na cozinha de uma dona de casa
comum. As pessoas da cidade, que em geral se guiavam pelo “viver e deixar
viver”, fizeram vista grossa por
muito tempo. Ignoraram os “malucos” que iam até Yelm (muitos deles em carros
caros, usando roupas de grife – “tipos de Hollywood”) e não deram atenção às
placas de “vendido” que começaram a
aparecer nos melhores terrenos. Quando surgiram boatos de que J.
Z. Knight estava se mobilizando para construir uma espécie de complexo para
abrigar uma escola para seus seguidores, porém, o pessoal da cidade deu um
basta. Segundo o chefe do escritório da KCPO na região sul, havia um protesto
na frente da propriedade de Knight.
A “multidão” que se opunha ao empreendimento era na verdade um
grupo
de cerca de dez pessoas que carregavam cartazes e conversavam umas
com as outras. Parecia mais um chá da tarde do que uma manifestação. Até o
carro da TV chegar. Aí as pessoas começaram a marchar e a gritar palavras de
ordem.
– Ah! – disse Mutt. – O poder da mídia.
Parou no acostamento da estrada e se virou para Demi.
– Agora o que não ensinam na faculdade: vá para o meio deles.
Misture-se.
Se parecer que vai haver uma briga, eu quero você no meio, está
bem? Não pare de fazer perguntas, de falar. E se eu der o sinal, saia de cena. O
coração de Demi estava a mil por hora enquanto pegava as orientações dele.
Os manifestantes se aproximaram deles. Todos estavam falando ao
mesmo
tempo, tentando defender suas ideias, acotovelando-se. Mutt empurrou
Demi com força. Ela cambaleou para a frente e se viu diante de um cara imenso e
moreno com uma barba estilo Papai Noel, que segurava uma placa onde se lia Diga não a Ramtha.
– Sou Demetria Lovato da KCPO. Por que o senhor está aqui hoje?
– Pegue o nome dele – gritou Mutt.
Demi se encolheu. Merda.
– Meu nome é Ben Nettleman – disse o homem. – Eu e a minha família
vivemos em Yelm há quase oitenta anos. Não queremos ver a cidade
se
transformando num supermercado para esquisitões da nova era.
– A Califórnia está aí para isso! – gritou alguém.
– Fale-me sobre a Yelm que o senhor conhece – pediu Demi.
– É um lugar tranquilo, onde as pessoas cuidam umas das outras. Começamos
nosso dia orando e normalmente não nos importamos com o que os vizinhos fazem…
até eles começarem a construir merdas que nada têm a ver com o lugar e a trazer
ônibus lotados de malucos.
– E o senhor diz malucos porque…
– Eles são! Aquela mulher incorpora um tal morto que diz que viveu
em
Atlântida.
– Eu também sei imitar sotaque de indiano. Isso não faz de mim uma
Ramtha – berrou outra pessoa.
Durante os vinte minutos seguintes, Demi fez o que fazia melhor:
conversou
com as pessoas. Passados seis ou sete minutos, ela encontrou seu
ritmo e lembrou o que havia aprendido. Ouviu as pessoas e fez as perguntas
pertinentes, que teria feito a qualquer um num dia normal. Não fazia ideia se
eram a abordagem correta ou se estava se posicionando no lugar ideal, mas sabia
que, depois da terceira entrevista, Mutt havia parado de dirigi-la e começara a
deixar que ela tomasse a frente. E Demi se sentia bem fazendo aquilo. As pessoas realmente
se abriam para ela, compartilhavam sentimentos, preocupações e medos.
– Muito bem, Demi – falou Mutt por trás dela. – Era isso.
Terminamos.
No instante em que a câmera foi desligada, a multidão se
dispersou.
– Consegui – sussurrou ela, controlando-se para não sair aos
pulos. – Que
barato.
– Você se saiu bem – afirmou Mutt, dando um sorriso que ela jamais esqueceria.
Mutt guardou os equipamentos em tempo recorde e entrou na caminhonete.
Demi estava tomada por adrenalina. Então viu a placa do camping.
– Vire aqui – disse ela, surpreendendo a si mesma.
– Por quê? – perguntou Mutt.
– A minha mãe está… de férias. Ela está neste camping. Me dê cinco
minutos para dar um alô.
– Vou fumar um cigarro. Isso lhe dará quinze minutos. Mas depois
precisamos ir.
A caminhonete parou na frente da mesa de reservas do camping.
Demi foi até lá e perguntou sobre a mãe. O homem que estava
atendendo
assentiu com a cabeça.
– Lote 36. Diga a ela que precisa pagar o que deve.
Seguindo o caminho pelas árvores, Demi quase deu meia-volta uma
dúzia de
vezes. Sinceramente, não fazia ideia de por que estava ali. Não
via nem falava com a mãe desde o funeral da avó e, embora tivesse se tornado a
testamenteira aos 18 anos e responsável pela remessa mensal de dinheiro para
Nuvem, nunca recebera um agradecimento sequer dela. Apenas uma série de
cartões-postais dizendo Me mudei, por favor mande o
dinheiro para este endereço . Aquele camping em Yelm
era o mais recente. Viu a mãe de pé, fumando ao lado de uma fileira de banheiros
químicos. Usava um suéter cinza e calça tipo pijama. Parecia ter fugido de uma
prisão feminina. Os anos haviam apagado parte de sua beleza e deixado uma rede
de rugas finas nas bochechas fundas.
– Ei, Nuvem – disse ela, ao se aproximar.
A mãe tragou o cigarro e exalou lentamente, olhando para ela por
entre as
pálpebras pesadas.
Demi viu como a mãe estava mal, como as drogas a estavam
envelhecendo
rapidamente. Apesar de ainda não ter 40 anos, Nuvem parecia estar
com 50 ou mais. Como sempre, seus olhos estavam com a aparência vidrada e fora
de foco de um viciado em drogas.
– Estou aqui fazendo uma reportagem para a emissora de TV KCPO.
Demi tentou não deixar seu orgulho transparecer na voz, sabendo
que era
bobagem esperar qualquer coisa da mãe. Mas estava lá, de qualquer
maneira,
em seus olhos e em sua voz: o resquício sombrio daquela menininha
patética
que enchera doze álbuns de recortes para que a mãe um dia a
conhecesse e
tivesse orgulho dela.
– Vai ser minha primeira reportagem a ir ao ar. Eu disse que um
dia eu apareceria na TV.
O corpo de Nuvem balançou muito levemente, como se estivesse
tocando
uma música que só ela conseguia ouvir.
– A TV é o ópio das massas.
Demi se recusou a se sentir atingida pela apatia da mãe.
– Bem, se existe alguém que entende de drogas, é você.
– Por falar nisso, estou meio dura este mês. Tem alguma grana aí?
Demi revirou a bolsa, encontrou a nota de 50 dólares que mantinha
na
carteira para emergências e a estendeu para a mãe.
– Não dê tudo ao primeiro traficante.
Nuvem deu um passo desajeitado para a frente e pegou o dinheiro.
Demi desejou que jamais tivesse ido até lá. Sabia o que esperar da
mãe: nada.
Por que não conseguia se lembrar disso?
– Vou mandar dinheiro para a sua próxima internação, Nuvem. Toda
família tem as suas tradições, certo?
Depois disso, ela se virou e voltou para a caminhonete.
Mutt a esperava. Depois de jogar o cigarro no chão e apagá-lo com
o
calcanhar, sorriu para Demi.
– A mamãe ficou orgulhosa da filhinha universitária?
– Está brincando? – disse Demi, sorrindo alegremente e secando os
olhos. –
Ela chorou feito um bebê.
Quando Demi e Mutt voltaram, a equipe acelerou a marcha. Os quatro
se apertaram dentro da sala de edição e transformaram 26 minutos de fita numa matéria precisa,
focada e imparcial de trinta segundos de duração. Sel tentou manter-se
concentrada na matéria, apenas na matéria, mas o almoço com Nicholas havia
anestesiado – ou estimulado – seus sentidos. Não sabia ao certo qual dos dois.
Só tinha certeza de que qualquer paixonite escolar que tivesse sentido antes de
ele convidá-la para almoçar havia se tornado outra coisa, mais profunda.
Quando terminaram o trabalho, Nicholas pegou o telefone e ligou
para o
gerente da emissora de Tacoma. Conversou por alguns minutos, então
desligou e olhou para Demi.
– Vão transmitir a matéria esta noite às dez, a menos que alguma
coisa
aconteça.
Demi deu um pulo e bateu palmas.
– Conseguimos!
Sel não pôde deixar de sentir uma pontada de inveja. Ao menos uma
vez, queria que Nicholas olhasse para ela da forma como olhava para Demi.
Se ao menos ela fosse como a amiga – confiante e sexy, disposta a ir
atrás
do que quer e de quem quer que desejasse. Talvez Sel tivesse
alguma chance
com Nicholas; mas a ideia de ser rejeitada por ele, de receber um
“Ahn?” indiferente, fazia com que se mantivesse na sombra.
Na sombra de Demi, para ser mais precisa. Como sempre, Sel era
quem ficava nos bastidores, nunca sob os holofotes.
– Vamos comemorar – disse Demi. – O jantar é por minha conta.
– Não contem comigo – falou Mutt. – Darla está me esperando.
– Eu não posso jantar, mas que tal uns drinques às nove? – falou Nicholas.
– Pode ser – concordou Demi.
Sel sabia que devia dizer não. A última coisa que queria era ficar sentada
numa mesa vendo Nicholas olhar para Demi. Mas que escolha tinha?
Ela era a
fiel escudeira. Aonde quer que Demi fosse, precisava ir atrás –
ainda que isso lhe causasse uma dor profunda.
Sel escolheu as roupas com cuidado: camiseta branca de mangas
cavadas, colete de jacquard preto vintage e jeans justo com botas de cano curto. Depois de
fazer cachos nos cabelos, prendeu-os num rabo de cavalo. Achou que estava super
bem até entrar na sala e ver Demi dançando ao ritmo da música, usando um
vestido de Jersey verde muito decotado com ombreiras e um cinto metálico largo.
– Demi, você está pronta?
Demi parou de dançar, desligou o aparelho de som e enganchou o
braço em
Sel.
– Vamos lá. Vamos nos mandar daqui.
Na rua, em frente ao apartamento delas, encontraram Nicholas
encostado no El Camino preto dele. Usava uma calça jeans desbotada e uma velha
camiseta do Aerosmith. Estava totalmente sexy, de um jeito casual e
desgrenhado.
– Aonde vamos? – perguntou Demi, e imediatamente prendeu o braço
livre
no dele.
– Eu tenho um plano – falou Nicholas.
– Amo homens com planos – disse Demi. – Você também não ama, Sel?
O verbo amar perto do nome dele ficaria perto demais da verdade, então
Sel preferiu não olhar para ele quando respondeu:
– Amo.
Lado a lado, os três saíram caminhando pela rua de paralelepípedo
do
mercado vazio.
Na sex shop com luzes de neon da esquina, Nicholas as fez virar
para a
direita. Sel franziu a testa. Havia uma linha invisível, como o
equador, que passava pela rua Pike. Ao sul, as coisas cavam feias. Era aonde
turistas não iam, a menos que estivessem atrás de drogas ou prostitutas. Os
estabelecimentos dos dois lados da rua tinham aparência miserável. Passaram por
duas livrarias e um cinema pornô.
– Que máximo – disse Demi. – Sel e eu nunca viemos aqui.
Nicholas parou ao lado de uma porta de madeira com aparência podre
que
um dia fora vermelha.
– Prontas? – perguntou ele com um sorriso.
Demi assentiu.
Nicholas abriu a porta. A música era ensurdecedora.
Um homem negro imenso estava sentado num banquinho na entrada.
– Identidade, por favor – falou ele, e apontou uma lanterna para
as carteiras
de motorista. – Podem entrar.
Demi e Sel seguiram em frente, pelo corredor estreito e escuro
coberto de
panfletos, cartazes e adesivos. O corredor acabava num salão
comprido e retangular que estava lotado de gente vestida de couro preto com
apliques de metal. Sel nunca vira tantos cabelos esquisitos num único lugar.
Havia dezenas de pessoas com moicanos de vinte centímetros de altura
perfeitamente eretos e tingidos com as cores do arco-íris. Nicholas atravessou com elas a pista de dança, passando
por algumas mesas de madeira e indo até o bar, onde uma menina com cabelos
espetados pintados de magenta e com um piercing na bochecha anotou seus
pedidos. Na ponta do bar, suspensa no canto, havia uma TV de tamanho razoável
que estava ligada na MTV. Ninguém prestava atenção. Quando a moça voltou com as
bebidas, Nicholas deu a ela uma bela gorjeta e um sorriso enorme e levou Sel e Demi
até uma mesa no canto, embaixo da TV.
Demi imediatamente ergueu sua margarita para um brinde:
– A nós. Fomos o máximo hoje.
Os três brindaram e beberam. E beberam.
Na terceira rodada, Demi estava totalmente ligada. Quando começava
a
música certa – “Call Me”, ou “Sweet Dreams”, ou “Do You Really
Wanna Hurt
Me”? – ela se levantava e ficava dançando sozinha ao lado da mesa.
Sel desejou conseguir ficar tão empolgada e à vontade, mas dois drinques
não bastavam para desfazer quem ela era. Em vez disso, ela apenas ficou
sentada, olhando para Nicholas olhar para Demi. Ele só olhou para Sel
quando Demi foi ao banheiro.
– Ela nunca diminui o ritmo, né?
Sel tentou pensar numa resposta que desviasse o assunto da melhor
amiga,
que talvez até revelasse seu próprio lado apaixonado, mas quem ela
estava
tentando enganar? Ela não tinha um lado apaixonado. Demi era seda
vermelho vivo. Sel era algodão bege.
– É.
Demi voltou correndo do banheiro e se aproximou meio bêbada do
bar.
– Oi. São dez horas. Podemos mudar o canal da TV? Não tem ninguém
assistindo mesmo.
– Pode ser.
A atendente, que parecia figurante de filme de guerra apocalíptico, subiu
numa escadinha e mudou o canal. Demi se aproximou da TV como uma
fiel que estivesse perto do papa. Então seu rosto encheu a tela. Aqui é Demetria Lovato, em Yelm, Washington. Esta cidade pacata
foi hoje palco de um protesto quando os seguidores de J. Z. Knight e do
espírito de 35.000 anos que ela chama de Ramtha entraram em confronto com os
moradores locais por causa do projeto de construção de um complexo… Quando a matéria terminou, Demi se virou para Sel e perguntou,
nervosa e com a voz baixa:
– E aí?
– Você matou a pau – disse Sel, sinceramente. – Excelente.
Demi jogou os braços ao redor de Sel e lhe deu um abraço apertado.
Então,
agarrou a mão da amiga.
– Vamos lá. Eu quero dançar. Você também, Nicholas. Podemos dançar
os
três juntos. Havia homens dançando juntos e mulheres se beijando
ao som do Sex Pistols. A menina ao lado dela, que usava minissaia de vinil e
coturnos com meia arrastão, dançava sozinha. Demi foi a primeira a começar a
dançar, depois Nicholas, e, finalmente, Sel. No começo, ela se sentiu constrangida – como se
estivesse sobrando –, mas, no final da música, estava mais tranquila. O álcool funcionava um pouco
como lubrificante, deixando seu corpo
mais fluido, e quando a música ficou mais lenta, ela quase
não hesitou em se aninhar nos braços de Demi e Nicholas. Os três se
movimentaram juntos com uma facilidade natural surpreendentemente sexy. Sel
olhou para Nicholas, que estava olhando para Demi, e não pôde deixar de desejar
que, ao menos uma vez, ele olhasse para ela daquele jeito.
– Eu nunca vou me esquecer desta noite – disse Demi aos dois.
Ele se inclinou para a frente e beijou Demi. Sel estava bêbada o
bastante
para demorar um segundo para registrar o que via. Então sentiu a
dor. Demi recuou do beijo.
– Nicholas, menino mau – falou ela, rindo, e o empurrou.
Ele passou a mão pelas costas de Demi, tentando puxá-la para perto
novamente.
– Qual o problema de ser mau?
Antes que Demi pudesse responder, alguém a chamou e ela se virou.
Joe vinha abrindo caminho pela multidão que dançava. Com os
cabelos pretos compridos e a camiseta puída de Bruce Springsteen, parecia um
roqueiro num mundo nova era. Demi correu até ele. Os dois se beijaram como se
estivessem a sós no salão, e então Sel ouviu a amiga dizer:
– Me leve para a cama, meu velho.
Sem sequer acenar para dizer oi ou adeus, os dois desapareceram. Sel
ficou
lá parada, ainda nos braços de Nicholas. Ele olhava fixamente para a porta, como se
esperasse que Demi voltasse, gritasse que estava brincando e começasse a dançar
com eles de novo.
– Ela não vai voltar – avisou Sel.
Nicholas despertou. Depois de soltá-la, voltou para a mesa e pediu
dois drinques. No silêncio que se seguiu, ela olhou para ele, pensando: olhe
para mim.
– Aquele era Joe Jonas – disse ele.
Sel assentiu.
– Não é de admirar…
Ele ficou olhando fixamente para o corredor
vazio do outro lado da pista de
dança.
– Os dois estão juntos há muito tempo.
Sel examinou o perfil dele. Por um instante maluco, pensou em tomar a iniciativa,
aproximar-se dele. Talvez conseguisse fazer com que se esquecesse de Demi ou
mudasse de ideia. Talvez aquela noite ela não se importasse de ser sua segunda
opção ou uma opção feita pela bebida. O amor podia nascer de uma paixão
alcoolizada, não?
– Você achou que você e Demi poderiam…
Ele assentiu antes que ela terminasse.
– Vamos lá, Gomez. Eu levo você para casa.
Durante todo o trajeto até o apartamento, ela disse a si mesma que
era
melhor que fosse assim.
– Bem, boa noite, Nicholas – disse ela na porta do apartamento.
– Boa noite.
Ele se virou e foi na direção do elevador. Na metade do caminho,
parou e se
virou para ela.
– Gomez?
Ela fez uma pausa e olhou para ele.
– Sim?
– Você se saiu muito bem hoje. Eu lhe disse isso? Você é uma das
redatoras
mais talentosas que já vi.
– Obrigada.
Mais tarde, deitada na cama, fixando a escuridão, ela se lembrou das
palavras dele e de como ele as dissera. De alguma forma, ele a
havia notado hoje. Talvez não fosse um caso totalmente perdido, como ela
imaginava. Doze
O verão depois da formatura
foi o mais parecido com o paraíso que Demi
poderia imaginar. Ela e Sel encontraram um apartamento no estilo
dos anos
1960 numa ótima localização – em cima do mercado municipal.
Levaram para
lá móveis da casa da avó de Demi e encheram a cozinha de potes de
plástico e pratos de cerâmica de 40 anos antes. Penduraram nas paredes seus pôsteres
preferidos e puseram fotos delas mesmas em todas as mesinhas auxiliares. A Sra.
Gomez as surpreendera um dia com sacolas de compras e várias plantas artificiais,
para dar uma sensação de aconchego ao lugar, ela dissera. A vizinhança deu
origem a um estilo de vida. Elas podiam ir a pé a vários bares – os preferidos
eram o Athenian, dentro do mercado, e o velho e enfumaçado Virginia Inn, na
esquina. Às seis da manhã, em meio ao barulho
dos caminhões de entrega e buzinas de carros, elas atravessavam a
rua para
tomar um latte numa cafeteria da moda e comprar croissants numa padaria
francesa. Trabalhadoras solteiras, caíram numa rotina relaxada.
Todas as manhãs, tomavam café sentadas em mesas de ferro na calçada e liam os
vários jornais que reuniam: The New York Times , The Wall Street Journal , Seattle Times e Post-Intelligencer se
tornaram suas bíblias. Quando terminavam a leitura, iam para o trabalho, onde a
cada dia aprendiam algo novo sobre telejornalismo. Depois do expediente,
vestiam túnicas brilhosas com ombreiras e calças fuseau e iam a uma das muitas
casas noturnas do centro da cidade. Ouviam punk rock, new age, rock and roll,
pop, o que quer que lhes desse vontade. E como Demi não precisava mais esconder
a existência de Joe, os três agora saíam juntos com frequência, e se divertiam
à beça. Era tudo o que ela e Sel haviam sonhado, tantos anos antes, nas margens
escuras do rio Pilchuck, e Demi adorava cada minuto. Agora estavam estacionando
na frente do trabalho. Tinham conversando
durante todo o caminho até lá. Mas, no instante em que abriu a
porta, Demi soube que alguma coisa estava acontecendo. Mutt estava perto da
janela, arrumando às pressas o equipamento de gravação. Nicholas estava em sua
sala, berrando com alguém ao telefone.
– O que houve? – perguntou Demi, atirando a bolsa sobre a mesa
impecável
de Sel.
Mutt olhou para ela.
– Tem um protesto acontecendo. A história é nossa.
– Onde está a Carol?
– No hospital. Em trabalho de parto.
Era a chance de Demi. Ela foi direto para a sala de Nicholas, sem
sequer se
dar o trabalho de bater.
– Me deixe entrar no ar. Eu sei que você acha que não estou
pronta, mas eu
estou. E quem mais poderia fazer isso?
Ele desligou o telefone e olhou para ela.
– Eu já disse à emissora que você vai fazer a reportagem. Era por
isso que eu estava aos berros.
Deu a volta na mesa e se aproximou dela.
– Não me decepcione, Demi.
Demi sabia que aquilo seria pouco profissional, mas não conseguiu
se segurar e lhe deu um abraço.
– Você é o máximo. Vai sentir orgulho de mim. Você vai ver.
Ela estava a caminho da porta quando ele limpou a garganta e a
chamou de
volta. Ela parou e se virou.
– Não quer ler o material de apoio antes? Ou vai chegar lá às
cegas?
Demi sentiu o rosto queimar.
– Oooops. Vou ler.
Ele deu a ela um bolo de papel de fax.
– É sobre uma dona de casa de Yelm que recebe espíritos. J. Z. Knight.
Demi franziu a testa.
– Algum problema?
– Não. É só que… eu conheço alguém que mora lá. Só isso.
– Bom, não vai dar tempo de visitar amigos. Agora vá. Quero você
de volta
às duas, para editar.
Sem Mutt e Demi, o escritório estava em silêncio. Era a primeira
vez em
todo o verão que Sel ficava sozinha ali com Nicholas. Um pouco nervosa por
causa do silêncio – e por ver a porta do chefe aberta e sentir tão
intensamente a presença dele do outro lado –, acabava atendendo ao telefone
rápido demais e chegava a parecer um pouco esbaforida ao falar.
Quando Demi estava lá, havia barulho e comoção. Sua melhor amiga
vivia para o telejornalismo e não deixava nada fora de seu campo de visão. O
dia
inteiro, todos os dias, ela enchia Nicholas, Carol e Mutt de
perguntas. Estava sempre em busca da orientação deles sobre o que quer que
fosse.
Sel perdeu a noção das vezes em que vira Mutt revirar os olhos
quando Demi se afastava de uma conversa. Carol era ainda menos paciente. A
repórter principal mal falava com Demi ultimamente. Não que Demi parecesse se importar
com isso. O que tinha importância para era o jornalismo, em primeiro e em
último lugar. Sempre. Sel, por outro lado, se importava com as pessoas do
escritório, mais do que com as reportagens que faziam. Havia se entendido quase
que imediatamente com Carol, que costumava levá-la para almoçar para falar
sobre o parto iminente e, com a mesma frequência, chamava Sel para ajudá-la a editar
seus textos ou fazer pesquisas. Mutt também havia escolhido Sel como confidente. Passava longas horas
conversando com ela sobre seus problemas familiares e a mulher que não quisera
se casar com ele. A única pessoa com quem Sel não havia criado laços era Nicholas.
Ela ficava uma pilha de nervos
quando estava perto dele. Tudo o que ele precisava fazer era olhar para ela e
sorrir para que ela deixasse cair o que quer que estivesse em sua mão. Sempre
gaguejava ao lhe dar recados e vivia tropeçando no tapete da sala dele. Era
patético. No começo, Sel achou que fosse pela aparência dele. Ele era o
perfeito católico irlandês, com cabelos pretos e olhos azuis. Quando ele
sorria, seu rosto se enrugava de tal forma que ela sentia a respiração presa na
garganta. Sel imaginou que a paixonite não iria durar, que, com o tempo,
conforme ela o conhecesse melhor, sua aparência se tornaria menos arrebatadora.
No mínimo, imaginou que desenvolveria alguma imunidade ao sorriso dele. Mas não
teve essa sorte. Tudo o que ele dizia e fazia apenas apertava mais o nó em seu
peito. Por baixo do verniz cínico dele, ela via um idealista, e ainda mais: um
idealista ferido. Alguma coisa ferira Nicholas, deixara-o ali, à margem das
histórias importantes, e o mistério em relação a isso a atormentava. Ela foi
até o canto do escritório, onde uma pilha de fitas estava esperando para ser guardada. Havia acabado de pegar uma
braçada delas quando Nicholas apareceu na porta de sua sala.
– Ei – disse ele. – Está ocupada?
Ela largou a pilha de fitas. Idiota.
– Não – respondeu. – Não muito.
– Vamos sair para almoçar de verdade. O dia está devagar, e eu
estou
cansado de comer sanduíches da delicatéssen.
– Ahn… claro.
Sel se concentrou nas atividades diante de si: ligar a secretária
eletrônica,
vestir o casaco e pegar a bolsa. Ele chegou ao lado dela.
– Pronta?
– Vamos lá.
Ela caminhou ao lado dele pela quadra e depois atravessando a rua.
De vez
em quando, o corpo dele roçava no dela, e Sel tinha absoluta
consciência de
cada contato.
Quando os dois finalmente chegaram ao restaurante, ele a levou até uma
mesa num canto que dava para a baía Elliot e as lojas do Píer 70.
Uma garçonete apareceu quase que imediatamente para anotar seus pedidos.
– Você tem idade para beber, Gomez? – perguntou ele com um
sorriso.
– Muito engraçado. Mas não bebo no horário de trabalho.
Ao dizer isso, que não poderia ser mais sem graça, ela estremeceu
e se achou uma idiota de novo.
– Você é uma garota muito responsável – disse ele quando a
garçonete se
afastou, e estava claramente se esforçando para não sorrir.
– Mulher – corrigiu ela com firmeza, torcendo para não ficar
vermelha.
Com isso ele sorriu.
– Eu estava tentando fazer um elogio.
– E escolheu responsável?
– O que você preferiria?
– Sexy. Brilhante. Linda – falou, nervosa, parecendo muito mais
com uma garota do que gostaria.
– Você sabe, as palavras que toda mulher quer ouvir.
Ela abriu um sorriso. Era sua chance de causar uma boa impressão,
atrair a
atenção dele como ele atraía a dela. Não queria perder a
oportunidade. Ele se recostou na cadeira, e ela teve esperanças de que não
fosse por de repente querer aumentar a distância entre os dois. Na verdade,
naquele momento ela desejou fervorosamente que tivesse ido para a cama com um
dos namorados da faculdade. Tinha certeza de que ele podia ver o carimbo da virgindade
nela.
– Você está conosco há, o quê… dois meses?
– Quase três.
– O que está achando?
– Estou gostando.
– Gostando? Que resposta estranha. Este é um negócio de amor ou
ódio –falou ele, e se inclinou para a frente, pondo os cotovelos sobre a mesa.
– Você tem paixão pelo jornalismo?
Aquela palavra de novo: a palavra que a separava de Demi como o
joio do trigo.
– S-sim.
Ele a analisou, depois deu um sorriso demonstrando que entendera. Sel
imaginou quanto de sua alma aquele olhar azul havia alcançado.
– Demi com certeza tem essa paixão.
– É.
Ele tentou parecer casual ao perguntar:
– Ela está saindo com alguém?
Sel considerou um triunfo pessoal não ter se encolhido nem torcido
a cara. Agora, pelo menos, sabia por que ele a havia convidado para almoçar. Devia
ter imaginado. Queria dizer que sim, que ela estava com o mesmo homem havia
anos, mas não ousou fazer isso. Demi podia não estar mais escondendo Joe, mas
não o exibia também.
– O que você acha?
– Acho que ela sai com muitos homens.
Felizmente, a garçonete voltou com seus pedidos e Sel pôde parar
de olhar
nos olhos dele e fingir que estava fascinada pelo prato.
– E você? Tenho a sensação que você não é exatamente apaixonado
pelo seu trabalho.
Ele ergueu o olhar rapidamente.
– O que a faz dizer isso?
Ela deu de ombros e continuou comendo, mas agora o estava
observando.
– Talvez não – admitiu ele baixinho.
Ela se sentiu imobilizar. Ficou com o garfo parado no ar. Pela
primeira vez,
os dois não estavam jogando conversa fora. Ele acabara de revelar
algo importante. Sel tinha quase certeza disso.
– Fale sobre El Salvador.
– Você sabe o que aconteceu lá? O massacre? Foi um banho de
sangue. As coisas têm piorado ultimamente. Os esquadrões da morte estão matando
civis, padres, freiras.
Sel não sabia de tudo aquilo, ou de nada daquilo, na realidade,
mas assentiu com a cabeça mesmo assim, observando as emoções que atravessavam o
rosto dele. Nunca o vira tão animado, tão intenso. Mais uma vez, havia uma emoção
impossível de interpretar em seus olhos.
– Você fala como se adorasse aquilo. Por que veio embora?
– Eu não falo sobre isso.
Ele terminou a cerveja e se levantou.
– É melhor voltarmos ao trabalho.
Ela olhou para seus pratos, que mal haviam sido tocados. Era óbvio
que fora longe demais, que se intrometera demais.
– Eu fui muito invasiva. Sinto muito…
– Não sinta. É uma história antiga. Vamos embora.
Durante todo o caminho de volta, ele não disse nada. Os dois
subiram as escadas rapidamente e entraram no escritório.
Lá, ela não se conteve e tocou no braço dele.
– Eu sinto muito, de verdade. Não queria chatear você.
– Como eu disse, já passou.
– Mas não passou realmente, não é? – disse ela baixinho, e soube
na hora
que havia ultrapassado os limites mais uma vez.
– Volte ao trabalho – disse ele bruscamente, entrando em sua sala
e batendo
a porta atrás de si.
Yelm ficava no vale verdejante
entre Olympia e Tacoma. Sempre fora o tipo
de cidade em que os moradores usavam camisas de anela e jeans desbotados e acenavam
uns para os outros ao se cruzarem nas ruas.
Tudo isso havia mudado alguns anos antes, no dia em que um velho guerreiro
de 35 mil anos de Atlântida teria aparecido na cozinha de uma dona de casa
comum. As pessoas da cidade, que em geral se guiavam pelo “viver e deixar
viver”, fizeram vista grossa por
muito tempo. Ignoraram os “malucos” que iam até Yelm (muitos deles em carros
caros, usando roupas de grife – “tipos de Hollywood”) e não deram atenção às
placas de “vendido” que começaram a
aparecer nos melhores terrenos. Quando surgiram boatos de que J.
Z. Knight estava se mobilizando para construir uma espécie de complexo para
abrigar uma escola para seus seguidores, porém, o pessoal da cidade deu um
basta. Segundo o chefe do escritório da KCPO na região sul, havia um protesto
na frente da propriedade de Knight.
A “multidão” que se opunha ao empreendimento era na verdade um
grupo
de cerca de dez pessoas que carregavam cartazes e conversavam umas
com as outras. Parecia mais um chá da tarde do que uma manifestação. Até o
carro da TV chegar. Aí as pessoas começaram a marchar e a gritar palavras de
ordem.
– Ah! – disse Mutt. – O poder da mídia.
Parou no acostamento da estrada e se virou para Demi.
– Agora o que não ensinam na faculdade: vá para o meio deles.
Misture-se.
Se parecer que vai haver uma briga, eu quero você no meio, está
bem? Não pare de fazer perguntas, de falar. E se eu der o sinal, saia de cena. O
coração de Demi estava a mil por hora enquanto pegava as orientações dele.
Os manifestantes se aproximaram deles. Todos estavam falando ao
mesmo
tempo, tentando defender suas ideias, acotovelando-se. Mutt empurrou
Demi com força. Ela cambaleou para a frente e se viu diante de um cara imenso e
moreno com uma barba estilo Papai Noel, que segurava uma placa onde se lia Diga não a Ramtha.
– Sou Demetria Lovato da KCPO. Por que o senhor está aqui hoje?
– Pegue o nome dele – gritou Mutt.
Demi se encolheu. Merda.
– Meu nome é Ben Nettleman – disse o homem. – Eu e a minha família
vivemos em Yelm há quase oitenta anos. Não queremos ver a cidade
se
transformando num supermercado para esquisitões da nova era.
– A Califórnia está aí para isso! – gritou alguém.
– Fale-me sobre a Yelm que o senhor conhece – pediu Demi.
– É um lugar tranquilo, onde as pessoas cuidam umas das outras. Começamos
nosso dia orando e normalmente não nos importamos com o que os vizinhos fazem…
até eles começarem a construir merdas que nada têm a ver com o lugar e a trazer
ônibus lotados de malucos.
– E o senhor diz malucos porque…
– Eles são! Aquela mulher incorpora um tal morto que diz que viveu
em
Atlântida.
– Eu também sei imitar sotaque de indiano. Isso não faz de mim uma
Ramtha – berrou outra pessoa.
Durante os vinte minutos seguintes, Demi fez o que fazia melhor:
conversou
com as pessoas. Passados seis ou sete minutos, ela encontrou seu
ritmo e lembrou o que havia aprendido. Ouviu as pessoas e fez as perguntas
pertinentes, que teria feito a qualquer um num dia normal. Não fazia ideia se
eram a abordagem correta ou se estava se posicionando no lugar ideal, mas sabia
que, depois da terceira entrevista, Mutt havia parado de dirigi-la e começara a
deixar que ela tomasse a frente. E Demi se sentia bem fazendo aquilo. As pessoas realmente
se abriam para ela, compartilhavam sentimentos, preocupações e medos.
– Muito bem, Demi – falou Mutt por trás dela. – Era isso.
Terminamos.
No instante em que a câmera foi desligada, a multidão se
dispersou.
– Consegui – sussurrou ela, controlando-se para não sair aos
pulos. – Que
barato.
– Você se saiu bem – afirmou Mutt, dando um sorriso que ela jamais esqueceria.
Mutt guardou os equipamentos em tempo recorde e entrou na caminhonete.
Demi estava tomada por adrenalina. Então viu a placa do camping.
– Vire aqui – disse ela, surpreendendo a si mesma.
– Por quê? – perguntou Mutt.
– A minha mãe está… de férias. Ela está neste camping. Me dê cinco
minutos para dar um alô.
– Vou fumar um cigarro. Isso lhe dará quinze minutos. Mas depois
precisamos ir.
A caminhonete parou na frente da mesa de reservas do camping.
Demi foi até lá e perguntou sobre a mãe. O homem que estava
atendendo
assentiu com a cabeça.
– Lote 36. Diga a ela que precisa pagar o que deve.
Seguindo o caminho pelas árvores, Demi quase deu meia-volta uma
dúzia de
vezes. Sinceramente, não fazia ideia de por que estava ali. Não
via nem falava com a mãe desde o funeral da avó e, embora tivesse se tornado a
testamenteira aos 18 anos e responsável pela remessa mensal de dinheiro para
Nuvem, nunca recebera um agradecimento sequer dela. Apenas uma série de
cartões-postais dizendo Me mudei, por favor mande o
dinheiro para este endereço . Aquele camping em Yelm
era o mais recente. Viu a mãe de pé, fumando ao lado de uma fileira de banheiros
químicos. Usava um suéter cinza e calça tipo pijama. Parecia ter fugido de uma
prisão feminina. Os anos haviam apagado parte de sua beleza e deixado uma rede
de rugas finas nas bochechas fundas.
– Ei, Nuvem – disse ela, ao se aproximar.
A mãe tragou o cigarro e exalou lentamente, olhando para ela por
entre as
pálpebras pesadas.
Demi viu como a mãe estava mal, como as drogas a estavam
envelhecendo
rapidamente. Apesar de ainda não ter 40 anos, Nuvem parecia estar
com 50 ou mais. Como sempre, seus olhos estavam com a aparência vidrada e fora
de foco de um viciado em drogas.
– Estou aqui fazendo uma reportagem para a emissora de TV KCPO.
Demi tentou não deixar seu orgulho transparecer na voz, sabendo
que era
bobagem esperar qualquer coisa da mãe. Mas estava lá, de qualquer
maneira,
em seus olhos e em sua voz: o resquício sombrio daquela menininha
patética
que enchera doze álbuns de recortes para que a mãe um dia a
conhecesse e
tivesse orgulho dela.
– Vai ser minha primeira reportagem a ir ao ar. Eu disse que um
dia eu apareceria na TV.
O corpo de Nuvem balançou muito levemente, como se estivesse
tocando
uma música que só ela conseguia ouvir.
– A TV é o ópio das massas.
Demi se recusou a se sentir atingida pela apatia da mãe.
– Bem, se existe alguém que entende de drogas, é você.
– Por falar nisso, estou meio dura este mês. Tem alguma grana aí?
Demi revirou a bolsa, encontrou a nota de 50 dólares que mantinha
na
carteira para emergências e a estendeu para a mãe.
– Não dê tudo ao primeiro traficante.
Nuvem deu um passo desajeitado para a frente e pegou o dinheiro.
Demi desejou que jamais tivesse ido até lá. Sabia o que esperar da
mãe: nada.
Por que não conseguia se lembrar disso?
– Vou mandar dinheiro para a sua próxima internação, Nuvem. Toda
família tem as suas tradições, certo?
Depois disso, ela se virou e voltou para a caminhonete.
Mutt a esperava. Depois de jogar o cigarro no chão e apagá-lo com
o
calcanhar, sorriu para Demi.
– A mamãe ficou orgulhosa da filhinha universitária?
– Está brincando? – disse Demi, sorrindo alegremente e secando os
olhos. –
Ela chorou feito um bebê.
Quando Demi e Mutt voltaram, a equipe acelerou a marcha. Os quatro
se apertaram dentro da sala de edição e transformaram 26 minutos de fita numa matéria precisa,
focada e imparcial de trinta segundos de duração. Sel tentou manter-se
concentrada na matéria, apenas na matéria, mas o almoço com Nicholas havia
anestesiado – ou estimulado – seus sentidos. Não sabia ao certo qual dos dois.
Só tinha certeza de que qualquer paixonite escolar que tivesse sentido antes de
ele convidá-la para almoçar havia se tornado outra coisa, mais profunda.
Quando terminaram o trabalho, Nicholas pegou o telefone e ligou
para o
gerente da emissora de Tacoma. Conversou por alguns minutos, então
desligou e olhou para Demi.
– Vão transmitir a matéria esta noite às dez, a menos que alguma
coisa
aconteça.
Demi deu um pulo e bateu palmas.
– Conseguimos!
Sel não pôde deixar de sentir uma pontada de inveja. Ao menos uma
vez, queria que Nicholas olhasse para ela da forma como olhava para Demi.
Se ao menos ela fosse como a amiga – confiante e sexy, disposta a ir
atrás
do que quer e de quem quer que desejasse. Talvez Sel tivesse
alguma chance
com Nicholas; mas a ideia de ser rejeitada por ele, de receber um
“Ahn?” indiferente, fazia com que se mantivesse na sombra.
Na sombra de Demi, para ser mais precisa. Como sempre, Sel era
quem ficava nos bastidores, nunca sob os holofotes.
– Vamos comemorar – disse Demi. – O jantar é por minha conta.
– Não contem comigo – falou Mutt. – Darla está me esperando.
– Eu não posso jantar, mas que tal uns drinques às nove? – falou Nicholas.
– Pode ser – concordou Demi.
Sel sabia que devia dizer não. A última coisa que queria era ficar sentada
numa mesa vendo Nicholas olhar para Demi. Mas que escolha tinha?
Ela era a
fiel escudeira. Aonde quer que Demi fosse, precisava ir atrás –
ainda que isso lhe causasse uma dor profunda.
Sel escolheu as roupas com cuidado: camiseta branca de mangas
cavadas, colete de jacquard preto vintage e jeans justo com botas de cano curto. Depois de
fazer cachos nos cabelos, prendeu-os num rabo de cavalo. Achou que estava super
bem até entrar na sala e ver Demi dançando ao ritmo da música, usando um
vestido de Jersey verde muito decotado com ombreiras e um cinto metálico largo.
– Demi, você está pronta?
Demi parou de dançar, desligou o aparelho de som e enganchou o
braço em
Sel.
– Vamos lá. Vamos nos mandar daqui.
Na rua, em frente ao apartamento delas, encontraram Nicholas
encostado no El Camino preto dele. Usava uma calça jeans desbotada e uma velha
camiseta do Aerosmith. Estava totalmente sexy, de um jeito casual e
desgrenhado.
– Aonde vamos? – perguntou Demi, e imediatamente prendeu o braço
livre
no dele.
– Eu tenho um plano – falou Nicholas.
– Amo homens com planos – disse Demi. – Você também não ama, Sel?
O verbo amar perto do nome dele ficaria perto demais da verdade, então
Sel preferiu não olhar para ele quando respondeu:
– Amo.
Lado a lado, os três saíram caminhando pela rua de paralelepípedo
do
mercado vazio.
Na sex shop com luzes de neon da esquina, Nicholas as fez virar
para a
direita. Sel franziu a testa. Havia uma linha invisível, como o
equador, que passava pela rua Pike. Ao sul, as coisas cavam feias. Era aonde
turistas não iam, a menos que estivessem atrás de drogas ou prostitutas. Os
estabelecimentos dos dois lados da rua tinham aparência miserável. Passaram por
duas livrarias e um cinema pornô.
– Que máximo – disse Demi. – Sel e eu nunca viemos aqui.
Nicholas parou ao lado de uma porta de madeira com aparência podre
que
um dia fora vermelha.
– Prontas? – perguntou ele com um sorriso.
Demi assentiu.
Nicholas abriu a porta. A música era ensurdecedora.
Um homem negro imenso estava sentado num banquinho na entrada.
– Identidade, por favor – falou ele, e apontou uma lanterna para
as carteiras
de motorista. – Podem entrar.
Demi e Sel seguiram em frente, pelo corredor estreito e escuro
coberto de
panfletos, cartazes e adesivos. O corredor acabava num salão
comprido e retangular que estava lotado de gente vestida de couro preto com
apliques de metal. Sel nunca vira tantos cabelos esquisitos num único lugar.
Havia dezenas de pessoas com moicanos de vinte centímetros de altura
perfeitamente eretos e tingidos com as cores do arco-íris. Nicholas atravessou com elas a pista de dança, passando
por algumas mesas de madeira e indo até o bar, onde uma menina com cabelos
espetados pintados de magenta e com um piercing na bochecha anotou seus
pedidos. Na ponta do bar, suspensa no canto, havia uma TV de tamanho razoável
que estava ligada na MTV. Ninguém prestava atenção. Quando a moça voltou com as
bebidas, Nicholas deu a ela uma bela gorjeta e um sorriso enorme e levou Sel e Demi
até uma mesa no canto, embaixo da TV.
Demi imediatamente ergueu sua margarita para um brinde:
– A nós. Fomos o máximo hoje.
Os três brindaram e beberam. E beberam.
Na terceira rodada, Demi estava totalmente ligada. Quando começava
a
música certa – “Call Me”, ou “Sweet Dreams”, ou “Do You Really
Wanna Hurt
Me”? – ela se levantava e ficava dançando sozinha ao lado da mesa.
Sel desejou conseguir ficar tão empolgada e à vontade, mas dois drinques
não bastavam para desfazer quem ela era. Em vez disso, ela apenas ficou
sentada, olhando para Nicholas olhar para Demi. Ele só olhou para Sel
quando Demi foi ao banheiro.
– Ela nunca diminui o ritmo, né?
Sel tentou pensar numa resposta que desviasse o assunto da melhor
amiga,
que talvez até revelasse seu próprio lado apaixonado, mas quem ela
estava
tentando enganar? Ela não tinha um lado apaixonado. Demi era seda
vermelho vivo. Sel era algodão bege.
– É.
Demi voltou correndo do banheiro e se aproximou meio bêbada do
bar.
– Oi. São dez horas. Podemos mudar o canal da TV? Não tem ninguém
assistindo mesmo.
– Pode ser.
A atendente, que parecia figurante de filme de guerra apocalíptico, subiu
numa escadinha e mudou o canal. Demi se aproximou da TV como uma
fiel que estivesse perto do papa. Então seu rosto encheu a tela. Aqui é Demetria Lovato, em Yelm, Washington. Esta cidade pacata
foi hoje palco de um protesto quando os seguidores de J. Z. Knight e do
espírito de 35.000 anos que ela chama de Ramtha entraram em confronto com os
moradores locais por causa do projeto de construção de um complexo… Quando a matéria terminou, Demi se virou para Sel e perguntou,
nervosa e com a voz baixa:
– E aí?
– Você matou a pau – disse Sel, sinceramente. – Excelente.
Demi jogou os braços ao redor de Sel e lhe deu um abraço apertado.
Então,
agarrou a mão da amiga.
– Vamos lá. Eu quero dançar. Você também, Nicholas. Podemos dançar
os
três juntos. Havia homens dançando juntos e mulheres se beijando
ao som do Sex Pistols. A menina ao lado dela, que usava minissaia de vinil e
coturnos com meia arrastão, dançava sozinha. Demi foi a primeira a começar a
dançar, depois Nicholas, e, finalmente, Sel. No começo, ela se sentiu constrangida – como se
estivesse sobrando –, mas, no final da música, estava mais tranquila. O álcool funcionava um pouco
como lubrificante, deixando seu corpo
mais fluido, e quando a música ficou mais lenta, ela quase
não hesitou em se aninhar nos braços de Demi e Nicholas. Os três se
movimentaram juntos com uma facilidade natural surpreendentemente sexy. Sel
olhou para Nicholas, que estava olhando para Demi, e não pôde deixar de desejar
que, ao menos uma vez, ele olhasse para ela daquele jeito.
– Eu nunca vou me esquecer desta noite – disse Demi aos dois.
Ele se inclinou para a frente e beijou Demi. Sel estava bêbada o
bastante
para demorar um segundo para registrar o que via. Então sentiu a
dor. Demi recuou do beijo.
– Nicholas, menino mau – falou ela, rindo, e o empurrou.
Ele passou a mão pelas costas de Demi, tentando puxá-la para perto
novamente.
– Qual o problema de ser mau?
Antes que Demi pudesse responder, alguém a chamou e ela se virou.
Joe vinha abrindo caminho pela multidão que dançava. Com os
cabelos pretos compridos e a camiseta puída de Bruce Springsteen, parecia um
roqueiro num mundo nova era. Demi correu até ele. Os dois se beijaram como se
estivessem a sós no salão, e então Sel ouviu a amiga dizer:
– Me leve para a cama, meu velho.
Sem sequer acenar para dizer oi ou adeus, os dois desapareceram. Sel
ficou
lá parada, ainda nos braços de Nicholas. Ele olhava fixamente para a porta, como se
esperasse que Demi voltasse, gritasse que estava brincando e começasse a dançar
com eles de novo.
– Ela não vai voltar – avisou Sel.
Nicholas despertou. Depois de soltá-la, voltou para a mesa e pediu
dois drinques. No silêncio que se seguiu, ela olhou para ele, pensando: olhe
para mim.
– Aquele era Joe Jonas – disse ele.
Sel assentiu.
– Não é de admirar…
Ele ficou olhando fixamente para o corredor
vazio do outro lado da pista de
dança.
– Os dois estão juntos há muito tempo.
Sel examinou o perfil dele. Por um instante maluco, pensou em tomar a iniciativa,
aproximar-se dele. Talvez conseguisse fazer com que se esquecesse de Demi ou
mudasse de ideia. Talvez aquela noite ela não se importasse de ser sua segunda
opção ou uma opção feita pela bebida. O amor podia nascer de uma paixão
alcoolizada, não?
– Você achou que você e Demi poderiam…
Ele assentiu antes que ela terminasse.
– Vamos lá, Gomez. Eu levo você para casa.
Durante todo o trajeto até o apartamento, ela disse a si mesma que
era
melhor que fosse assim.
– Bem, boa noite, Nicholas – disse ela na porta do apartamento.
– Boa noite.
Ele se virou e foi na direção do elevador. Na metade do caminho,
parou e se
virou para ela.
– Gomez?
Ela fez uma pausa e olhou para ele.
– Sim?
– Você se saiu muito bem hoje. Eu lhe disse isso? Você é uma das
redatoras
mais talentosas que já vi.
– Obrigada.
Mais tarde, deitada na cama, fixando a escuridão, ela se lembrou das
palavras dele e de como ele as dissera. De alguma forma, ele a
havia notado hoje. Talvez não fosse um caso totalmente perdido, como ela
imaginava.
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