Cinco
Selena ficou acordada na cama durante muito tempo depois de Demi ir embora.
Finalmente, atirou as cobertas para longe e se levantou. No andar de baixo,
encontrou o que estava procurando: uma pequena estátua da Virgem Maria, uma
vela votiva num castiçal de vidro vermelho, uma caixa de fósforos e o antigo
rosário da avó. Levou tudo de volta ao quarto, montou um pequeno altar em cima
da cômoda e acendeu a vela.
– Pai do céu – rezou, com a
cabeça abaixada e as mãos postas –, por favor, proteja Demi Lovato e a ajude a
atravessar esses tempos difíceis. E também, por favor, cure o câncer da mãe
dela. Eu sei que o Senhor pode ajudá-las. Amém. Rezou algumas Ave-Marias e
voltou para a cama. Mas passou a noite toda se revirando no colchão, sonhando
com o encontro com Demi, imaginando o que aconteceria de manhã. Será que ela
devia conversar com Demi na escola hoje, sorrir para ela? Ou deveria fingir que
nada havia acontecido? A popularidade tinha regras, códigos secretos escritos
em tinta invisível que apenas garotas como Demi conseguiam ler. Tudo o que Sel sabia
era que não queria cometer um erro e passar vergonha. Ouvira dizer que às vezes
as meninas populares eram “amigas secretas” de nerds: sorriam e davam “oi”
quando não estavam na escola ou quando seus pais eram amigos. Talvez fosse ser
assim com ela e Demi. Quando o despertador tocou, ela pulou da cama. Vestiu o
robe e desceu para a cozinha escura e silenciosa. Na sala de estar, o pai
estava lendo o jornal da noite anterior.
– Madrugou? Ei, Selly,
venha dar um abraço no seu pai.
Ela pulou no colo dele e
apoiou o rosto na lã áspera de sua camisa. Ele prendeu uma mecha de cabelos
atrás da orelha dela. Selena pôde ver como ele parecia cansado. Estava
trabalhando demais, dobrando turnos na Boeing para poder pagar as férias anuais
da família.
– Como estão as coisas na
escola?
Era a mesma pergunta que
ele sempre fazia. Uma vez, muito tempo atrás, ela havia respondido com
sinceridade: “Não muito bem, papai”, e ficara esperando
por seu conselho, palavra de conforto ou coisa parecida, mas não foi o que
recebeu. Ele havia escutado o que queria escutar, não o que ela dissera. Sua
mãe lhe explicara depois que era porque ele trabalhava muitas horas na
fábrica. Selena podia ter ficado chateada com a distração dele, mas na verdade isso fazia com
que o amasse ainda mais. Ele nunca gritava com ela ou a mandava prestar atenção
ou a lembrava que ela era responsável pela própria felicidade. Essas eram
palavras de sua mãe. O pai dela apenas continuava a amá-la incondicionalmente.
– Ótimas – respondeu ela,
sorrindo para reforçar a mentira.
– Como poderiam não estar?
– disse ele, beijando sua testa. – Você é a menina mais bonita da cidade, né? E
a sua mãe lhe deu o nome de uma das melhores personagens femininas de todos os
tempos.
– É. Scarlett O’Hara e eu
temos muita coisa em comum.
– Você vai ver – disse ele,
dando risada. – Ainda tem uma porção de vida pela frente, mocinha.
Ela olhou para o pai.
– Acha que eu vou ser
bonita quando crescer?
– Ah, Selly – disse ele. –
Você já é uma beleza rara.
Ela guardou aquelas
palavras no bolso. Eram como as pedras que os gregos antigos esfregavam para
aliviar as preocupações. De vez em quando, enquanto se arrumava para ir à
escola, ela as tocava, revirando-as nos dedos. Quando estava vestida e pronta
para sair, a casa estava vazia. O ônibus da Família Gomez havia deixado sua
garagem. Ela estava tão nervosa que chegou ao ponto de ônibus antes da hora.
Cada minuto que passava parecia uma eternidade, mas ainda não havia sinal de Demi
quando o ônibus apareceu e parou fazendo muito barulho. Selena abaixou a cabeça
e pegou um lugar na primeira fileira. Durante todas as aulas da manhã, ela
procurou Demi, mas não a viu. Na hora do almoço, passou apressadamente pelo
grupo de alunos populares, que se ocupavam de furar a fila do refeitório sempre que tinham vontade e sentavam numa das
mesas compridas que ficava no final do refeitório. Ao redor, todos riam,
conversavam e se empurravam. Porém, aquelas mesmas mesas na Sibéria social eram
tristemente silenciosas. Sel, como as outras pessoas que se sentavam perto
dela, raramente olhava para cima. Era uma habilidade de sobrevivência que os
alunos não populares aprendiam logo. O ginásio era como as selvas do Vietnã:
era melhor se abaixar e ficar quieto. Ela estava tão
atenta ao almoço que quando alguém se aproximou e disse “Oi”, ela praticamente
deu um salto da cadeira. Demi. Mesmo naquele dia frio de
maio, ela estava usando uma minissaia curtíssima, botas brancas de cano longo,
meias-calças pretas brilhantes e uma blusa tomara que caia. Vários colares com
o símbolo da paz pulavam em seu decote. Os cabelos dela cintilavam com mechas
cobre. Ela trazia uma imensa bolsa de macramê pendurada na altura da coxa.
– Você contou a alguém
sobre ontem à noite?
– Não. Claro que não.
– Então somos amigas, não
é?
Selena não soube o que a
surpreendeu mais: a pergunta ou a expressão vulnerável nos olhos de Demi ao
fazê-la.
– Somos.
– Ótimo.
Demi tirou um pacote de
bolinhos recheados da bolsa e sentou ao lado de Sel.
– Agora vamos falar de transformação.
Você precisa desesperadamente de uma, e eu não estou sendo uma vaca. Sério. É
que eu entendo de moda. É um dom. Posso tomar um gole do seu leite? Que bom.
Obrigada. Você vai comer esta banana? Eu poderia ir até a sua casa depois da
escola… Selena ficou parada do lado de fora
da farmácia, olhando para todos os lados da rua para ver se havia algum
conhecido da sua mãe.
– Você tem certeza disso?
– Absoluta.
A resposta foi mero
consolo, na verdade. No dia em que as duas se tornaram oficialmente amigas, Selena aprendeu uma coisa sobre Demi: ela era uma
menina que fazia Planos. E o plano de hoje era uma transformação.
– Você não confia em mim?
Eis a grande questão. Era
como um desafio sem resposta certa. No
instante em que Demi fez a pergunta, Selena perdeu o jogo. Ela precisava confiar na nova amiga.
– É claro que confio. É só que eu não tenho permissão para usar
maquiagem.
– Acredite em mim, eu sou
tão boa nisso que a sua mãe nunca vai saber. Venha.
Demi percorreu as gôndolas
decidida, escolhendo as cores “certas” para Sel, e, então – impressionantemente
–, pagou tudo. Quando Selena começou a dizer alguma coisa, Demi a cortou,
feliz:– Nós somos amigas, não somos?
Na saída da loja, Demi lhe
deu uma trombada no ombro.
Selena riu e deu outra de
volta. As duas percorreram o caminho até a cidade e seguiram o rio até em casa.
Durante todo o trajeto, conversaram sobre roupas, música e a escola. Por fim, entraram em sua rua e seguiram até a entrada da garagem da casa
de Demi.
– A minha avó ficaria maluca se visse este lugar – disse Demi, parecendo envergonhada
dos arbustos do tamanho de balões que cobriam as laterais da casa.
– Esta casa é dela, sabe?
– Ela visita vocês?
– Não. É mais fácil
esperar.
– Pelo quê?
– Que a minha mãe se
esqueça de mim de novo.
Demi passou por cima de um
monte de jornais e contornou um trio de latas de lixo, então abriu a porta. Lá
dentro, o ambiente estava cheio de fumaça. A mãe dela estava na sala, deitada
no sofá, com os olhos semiabertos.
– O-olá, Sra. Lovato –
disse Sel. – Eu sou Sel, a vizinha.
A Sra. Lovato tentou se
levantar, mas estava, sem dúvida, fraca demais para isso.
– Olá, menina vizinha.
Demi agarrou a mão de Sel,
puxou-a pela sala até seu quarto e bateu a porta. Imediatamente começou a
remexer na pilha de discos, de onde tirou Goodbye Yellow Brick Road, que pôs para tocar. Quando a música começou, ela atirou uma
revista Tiger Beat para Selena e arrastou uma
cadeira até a frente da penteadeira.
– Pronta?
O nervosismo de Selena começou
a crescer. Sabia que teria problemas com isso, mas como faria amizades ou se
tornaria popular se não corresse alguns riscos?
– Pronta.
– Ótimo. Sente-se. Vamos
arrumar o seu cabelo primeiro. Ele precisa de umas luzes. É exatamente o que
Maureen McCormick usa. Selena olhou para Demi pelo espelho.
– Como você sabe disso?
– Li na Teen do mês
passado.
– Imagino que ela vá a
profissionais.
Selena abriu a Tiger Beat e tentou se concentrar na matéria: “A Namorada dos sonhos de Jack
Wild – Poderia ser você!”
– Retire o que disse. Eu li
as instruções duas vezes.
– Existe alguma chance de
eu acabar careca?
– Quase nenhuma. Agora
fique quieta. Estou lendo as instruções de novo. Demi dividiu os cabelos de Selena
em mechas e começou a borrifar o clareador em cada uma.
– Quando eu terminar, você
vai estar igual à Marcia Brady.
– Como é ser popular?
Selena não tinha a intenção
de fazer essa pergunta, mas escapou.
– Você vai ver. Mas vai
continuar sendo minha amiga, não vai?
Selena riu com isso.
– Engraçadinha. Ei, isso
está ardendo um pouco.
– É mesmo? Isso não deve
ser bom. E tem cabelo caindo.
Selena deu um jeito de não
fazer uma careta. Se ficar careca fosse o preço para
ficar amiga de Demi, ela o pagaria. Demi pegou o secador e o ligou, colocando o
vento quente para soprar os cabelos de Sel.
– Menstruei – anunciou Demi.
– Então pelo menos o cretino não me engravidou.
Selena ouviu a bravata na
voz da amiga e a viu em seus olhos.
– Eu rezei por você.
– Rezou? – perguntou Demi.
– Nossa! Obrigada.
Selena não sabia como
responder àquilo. Para ela, rezar era como escovar os dentes antes de dormir.
Simplesmente, era algo que se fazia. Demi desligou o secador e sorriu, mas pareceu
preocupada de novo. Talvez fosse o cheiro de cabelo queimado.
– Certo. Tome um banho e
enxágue isso.
Selena fez o que Demi
mandou. Alguns minutos depois, saiu do banheiro, se secou e se vestiu.
Demi agarrou a mão dela e a
levou de volta à cadeira.
– O seu cabelo está caindo?
– Um pouco – admitiu.
– Se você ficar careca, eu
raspo a minha cabeça. Prometo.
Demi penteou e secou os
cabelos de Sel. Selena não podia olhar. Fechou os olhos e deixou a voz de Demi
se fundir ao barulho do secador.
– Abra os olhos.
Selena não se apressou para
olhar. Daquela distância, ela não precisava dos óculos, mas a força do hábito a
fez se inclinar para a frente. A menina no espelho tinha cabelos loiros lisos e
com mechas, repartidos com precisão e perfeitamente secos. Pareciam macios e
bonitos, em vez de finos e escorridos. Os reflexos mais claros destacavam os olhos verdes e o tom rosado de seus
lábios. Ela estava quase bonita.
– Nossa – disse ela,
emocionada e grata demais para falar qualquer outra coisa.
– Espere até ver o que o
rímel e o blush podem fazer – disse Demi. – E o corretivo para essas espinhas
na sua testa.
– Eu vou ser sua amiga para
sempre – disse Sel, achando que havia sussurrado a promessa; mas, quando Demi
sorriu, soube que havia sido escutada.
– Que bom. Agora, vamos
para a maquiagem. Você viu a minha lâmina de barbear?
– Para que você precisa de
uma lâmina de barbear?
– Para as sobrancelhas, sua
boba. Ah, ali está. Feche os olhos.
Selena não pensou duas
vezes.
– Está bem.
Selena nem se deu o
trabalho de esconder o rosto quando chegou em casa, tamanha era a sua autoconfiança naquele momento. Pela primeira vez na vida, sabia que estava
bonita. O pai estava na sala, sentado em sua poltrona. Quando Selena entrou,
ele olhou para ela.
– Meu Deus – disse,
largando a bebida na mesa lateral em estilo provençal.
– Margie!
A mãe dela saiu da cozinha
limpando as mãos no avental. Estava usando seu uniforme de dias de semana:
blusa listrada de poliéster cor de ferrugem e verdeoliva, calça boca de sino de
veludo cotelê marrom e um avental amarrotado que dizia “Lugar da mulher éna
cozinha… e no Senado”. Quando viu Sel, parou.
Tirou o avental lentamente
e o largou em cima da mesa. O silêcio repentino atraiu Sean e o cachorro, que
entraram correndo na sala, tropeçando um no outro.
–A Selly está parecendo um
gambá–zombou Sean. –Fiu-fiu.
–Vá lavar as mãs para
jantar –ordenou a mãe enfaticamente. –Agora – acrescentou por ele ter ficado
ali. Sean resmungou e subiu a escada.
–Você deu permissão para
ela fazer isso com os cabelos, Margie? – perguntou o pai da sala.
–Deixe isso comigo, Bud
–falou a mãe, franzindo a testa para Selena ao atravessar a sala. – Foi a
vizinha que fez isso em você?
Selena assentiu, tentando
manter na mente como era se sentir bonita.
–Você gostou?
–Gostei.
–Bem, então eu também
gostei. Lembro de quando a sua tia Georgia tingiu meu cabelo de ruivo. A vovó Peet
ficou furiosa –contou, e sorriu. –Mas você devia ter me pedido. Ainda é muito
nova, Selena; não importa o que vocês pensem. Agora, o que você fez com as
sobrancelhas?
–A Demi raspou. Só para dar
forma.
A Mamãe fez uma careta
engraçda, como se estivesse tentando não rir.
–Entendo. O melhor mesmo é tirar
com pinça. Eu já devia ter lhe mostrado como fazer. Achei que você ainda fosse
nova demais.
Ela suspirou e procurou
pelos cigarros, que encontrou em cima da mesa. Então acendeu um.
–Depois do jantar, eu lhe
mostro. E imagino que você possa usar um pouco de brilho labial e rímel para ir
à escola. Vou ensiná-la a usar deixando a aparência natural.Selena abraçou a mãe.
–Eu amo você
–Eu amo você também. Agora
vá cuidar do pão de milho. E, Selly, estou feliz que você tenha feito uma
amiga; mas sem desobedecer mais regras, está bem? É assim que meninas como você
se metem em encrencas. Selena não pôde deixar de pensar na festa a que Demi
fora.
–Está bem, mamãe.
Em uma semana, Selena se
tornou popular por tabela. O pessoal delirava com sua nova aparência e não se
afastava dela nos corredores. Ser amiga de Demi Lovato queria dizer que ela era
bacana. Até mesmo seus pais notaram a diferença. Na hora do jantar, Selena não
era mais a menina quieta de sempre. Pelo contrário, ela não ficava quieta um instante. Contava
uma história depois da outra. Quem estava namorando quem, quem havia vencido na
peteca, quem fora suspenso por usar uma camiseta Faça amor, não faça guerra na escola, onde Demi havia
cortados os cabelos (em Seattle, com um cara chamado Gene Juarez – não era o
máximo?), e qual filme estava passando no
drive-in no final de semana. Ela ainda
estava falando sobre Demi depois do jantar, enquanto ela e a mãe lavavam a
louça.
– Mal posso esperar para
você conhecê-la. Ela é o máximo. Todo mundo gosta dela, até os malucos.
– Malucos?
– Os drogados. Os chapados.
– Ah.
A mãe pegou a fôrma
refratária da mão dela e a secou.
– Eu… eu andei perguntando
sobre essa menina, Selly. Ela tenta comprar cigarros com a Alma na loja de
conveniências.
– Ela provavelmente vai comprar
para a mãe dela.
A mãe largou a fôrma em
cima do balcão.
– Só me faça um favor, Selly.
Pense com sua própria cabeça quando estiver com essa menina. Não quero que você
se envolva em problemas indo atrás dela.
Selena atirou o pano de
prato com borda de crochê dentro da água ensaboada.
– Não acredito! E os seus
discursos sobre “correr riscos”? Há anos você está me dizendo para fazer amigos
e, no instante em que eu encontro alguém, você a chama de vadia.
– Eu nem passei perto de
chamá-la de…
Selena trovejou cozinha
afora. A cada passo, ela esperava que a mãe a chamasse de volta e a pusesse de
castigo, mas tudo o que se seguiu à sua saída dramática foi o silêncio. Lá em
cima, entrou no quarto e bateu a porta, para dar um efeito dramático. Então
sentou na cama e ficou esperando. Quando
entrasse lá, sua mãe estaria arrependida. Uma vez ao menos, Selena havia sido a
forte.
Mas a mãe não apareceu e,
perto das dez horas, Selena estava começando a se sentir mal. Será que havia
magoado a mãe? Ela se levantou e começou a andar de um lado para outro dentro
do quarto. Às dez em ponto, alguém bateu à porta. Ela se atirou rapidamente na
cama, tentando parecer entediada.
– Que foi?
A porta foi se abrindo
devagar. Sua mãe estava ali parada, usando seu roupão vermelho comprido
aveludado, outro presente do último Natal.
– Posso entrar?
– Como se eu pudesse
impedir.
– Você poderia – disse sua
mãe baixinho. – Posso entrar?
Selena deu de ombros, mas
foi um pouco para a esquerda para abrir espaço para a mãe.
– Sabe, Selly, a vida é…
Selena não pôde deixar de
gemer. Mais um sermão do tipo “a vida é”. A mãe a surpreendeu dando uma risada.
– Está bem, chega de
sermões. Talvez você esteja velha demais para isso.
Ela parou por um instante
diante do altar em cima da cômoda.
– Você não fazia um desses
desde a quimioterapia da Georgia. Quem está precisando das nossas orações?
– A mãe da Demi tem câncer,
e ela foi es…
Selena fechou a boca de
repente, horrorizada pelo que quase revelara. Durante toda a vida sempre
contara tudo para a mãe. Só que agora tinha uma melhor amiga e precisava tomar
cuidado.
– O que foi?
Selena encolheu os ombros.
– Eu não sei que tipo de
câncer, mas ela está muito doente.
– É mesmo? Eu não sabia
disso.
A mãe se sentou na cama ao
lado de Sel, exatamente como as duas faziam depois de toda briga.
– É uma carga muito grande
para uma menina da sua idade.
– A Demi parece estar
lidando bem com isso.
– É mesmo?
– Ela parece lidar bem com
qualquer coisa – disse Sel, sem conseguir evitar o tom de orgulho na voz.
– Como assim?
– Você não entenderia.
– Eu sou velha demais, é?
– Não foi o que eu disse.
A mãe afastou o cabelo da
testa de Selena com um toque que era tão familiar quanto respirar. Selena sempre
se sentia com 5 anos quando a mãe fazia isso.
– Eu sinto muito que você tenha
achado que eu estava julgando a sua amiga.
– E deve sentir mesmo.
– E você sente muito por
estar sendo tão cruel comigo, certo?
Selena não pôde deixar de
sorrir.
– Certo.
– Vamos fazer o seguinte:
por que você não convida a Demi para jantar aqui na sexta-feira?
– Você vai adorar a Demi.
Eu sei que vai.
– Tenho certeza disso –
assegurou a mãe, dando-lhe um beijo na testa. – Boa noite.
– Boa noite, mamãe.
Muito tempo depois de a mãe
ter saído do quarto e a casa estar em completo silêncio, Selena ainda estava
deitada de olhos abertos, agitada demais para dormir. Mal podia esperar para
convidar Demi para jantar. Depois, as duas poderiam assistir a “Jeannie é um
Gênio”, jogar Operação ou treinar maquiagens novas. Talvez Demi inclusive fosse
querer dormir lá. Elas poderiam… Poc.… conversar sobre meninos,
sobre beijos e…
Poc. Selena se
sentou. Não era o barulho de um passarinho no telhado ou de um rato nas
paredes. Poc. Era o barulho de uma
pedrinha batendo no vidro. Ela saiu de sob as cobertas, foi correndo até a
janela e abriu a vidraça.
Demi estava no quintal,
segurando uma bicicleta.
– Desça – disse ela, um
pouco alto demais, fazendo um gesto para que Sel se apressasse.
– Você quer que eu saia
escondida?
– Ahn. Dã.
Selena nunca havia feito
nada parecido, mas não podia agir feito uma nerd agora. Pessoas descoladas
desobedeciam às regras e saíam escondidas de casa. Todo mundo sabia disso. Todo
mundo sabia também que isso podia dar problemas. E era exatamente disso que sua
mãe estava falando. Pense com sua própria
cabeça quando estiver com essa menina. Selena não se importava com isso. O que importava era Demi.
– Estou indo.
Depois de fechar a janela,
ela procurou roupas. Por sorte, seu macacão jeans estava no canto,
cuidadosamente dobrado embaixo de um moletom preto. Ela tirou o velho pijama do
Scooby Doo e se vestiu com rapidez. Então percorreu em silêncio o corredor.
Quando passou pela porta do quarto dos pais, seu coração estava batendo de
forma tão acelerada que ela se sentia zonza. Os degraus rangeram a cada passo,
mas, no fim, ela conseguiu. Na porta dos fundos, fez uma pausa longa o bastante
apenas para pensar: eu posso ter muitos
problemas com isso, e então
abriu a porta. Demi estava esperando por ela. Trazia a bicicleta mais incrível
que Selena já vira. Tinha o guidom ondulado e um banco minúsculo em forma de
feijão sobre uma plataforma com um monte de cabos e fios.
– Nossa! – exclamou ela.
Precisaria juntar muito
dinheiro colhendo frutas para comprar uma
bicicleta daquelas.
– Tem dez marchas – disse Demi.
– A minha avó me deu no Natal passado.
Quer andar nela?
– De jeito nenhum.
Selena fechou a porta em
silêncio. Na garagem, pegou sua velha bicicleta cor de rosa com o guidom em
forma de U, um assento comprido cheio de adesivos de flores e uma cesta branca trançada. Era absolutamente sem graça.
Bicicleta de menininha. Demi nem pareceu notar. As duas montaram em suas
bicicletas e andaram
pela saída de carros
molhada e esburacada até o asfalto. Então viraram à esquerda e seguiram em
frente. Na Summer Hill, Demi disse: – Olhe isto. Faça como eu.
As duas desceram a ladeira
voando. Os cabelos de Selena esvoaçaram, e ela sentiu os olhos se encherem de
lágrimas. Ao redor, árvores escuras sussurravam na brisa. As estrelas brilhavam
no céu negro. Demi se atirou para trás e estendeu os braços. Dando risada, ela
olhou para Sel.
– Experimente.
– Não consigo. Estamos indo
rápido demais.
– Por isso mesmo.
– É perigoso.
– Vamos lá. Solte-se. Deus
não gosta de covardes. – Então, baixinho, acrescentou: – Confie em mim.
Agora Selena não tinha
escolha. Confiar fazia parte da amizade,
e Demi não andaria com uma covarde.
– Vamos lá – disse a si
mesma, tentando dar um tom grave.
Respirou fundo, fez uma
oração e ergueu os braços. Estava voando, navegando pelo céu da noite, descendo
a ladeira. O ar tinha o cheiro do estábulo próximo, de cavalos e feno. Ela
ouviu a amiga dando risada ao seu lado, mas, antes que conseguisse sequer
sorrir, alguma coisa deu errado. Seu pneu dianteiro bateu numa pedra. A
bicicleta corcoveou feito um touro bravo e virou de lado, pegando o aro do pneu
de Demi. Ela gritou, levou as mãos ao guidom, mas era tarde demais. Ela estava
no ar, agora voando de verdade. Ela foi de encontro ao asfalto, caindo e
derrapando com força, até aterrissar toda torta numa vala cheia de lama. Demi
rolou pelo asfalto e bateu nela. As bicicletas caíram no chão com estrondo. Tonta,
Selena olhou para o céu da noite. Sentia dor por todo o corpo. O tornozelo
esquerdo parecia estar quebrado. Estava inchado e dolorido. Ela podia sentir onde
o asfalto havia arrancado pedaços de sua pele.
– Isso foi incrível – disse
Demi, dando risada.
– Você está brincando? A
gente poderia ter morrido.
– Justamente.
Selena se encolheu de dor
ao tentar levantar.
– Vamos sair da vala. Um
carro pode aparecer…
– Mas não foi o máximo?
Espere até contarmos para o pessoal.
O pessoal da escola. Esta
seria uma história, e Selena seria uma das
estrelas. Todos escutariam atentamente, com espanto, dizendo coisas como Vocês saíram escondidas de casa? A Summer Hill sem as
mãos? Vocês devem estar mentindo… E, de repente, Selena também estava dando risada. As duas ajudaram
uma à outra a se levantar e pegaram as bicicletas. Quando chegaram ao outro
lado da rua, Selena nem lembrava mais onde havia se machucado. De repente, estava
se sentindo outra garota – mais ousada, mais corajosa, disposta a experimentar
qualquer coisa. E daí se uma noite como essa pudesse trazer problemas? O que
era um tornozelo torcido ou um joelho ensanguentado diante de uma aventura? Nos
últimos dois anos ela havia obedecido a todas as regras e ficado sozinha nas noites de fim de
semana. Nunca mais. Elas deixaram as bicicletas na rua e foram mancando até o
rio. Sob a luz do luar, tudo parecia leitoso e bonito – as ondas prateadas, as
pedras irregulares ao longo da margem. Demi se sentou ao lado de um toco de
árvore coberto de limo num lugar onde a grama era espessa como um carpete. Selena
se sentou ao lado dela. Estavam tão perto uma da outra que seus joelhos quase
se tocavam. Juntas, ficaram olhando para o céu
estrelado. A música do rio flutuou até elas, parecendo a
risada de uma menina. Naquele momento, com o mundo parado e silencioso, foi
como se a brisa tivesse trazido o frescor e as deixado a sós naquele lugar que
até então havia sido apenas mais
uma curva num rio que
transbordava a cada outono.
– Por que será que
escolheram esse nome, alameda dos Vaga-lumes? – perguntou Demi. – Nunca vi
nenhum vaga-lume aqui.
Selena encolheu os ombros.
– Perto da ponte velha tem
uma rua que se chama Missouri. Talvez algum fundador da cidade estivesse com
saudade de casa. Ou perdido.
– Ou talvez seja mágica. Esta
pode ser uma rua mágica – cogitou Demi, virando-se para a outra. – Isso poderia
significar que nós nascemos para
ser amigas.
Selena estremeceu com a
força daquilo.
– Antes de você se mudar
para cá, eu achava que era apenas uma rua que não dava em lugar nenhum.
– Agora é a nossa rua.
– A gente pode ir a todos
os tipos de lugares quando crescer.
– Lugares não importam –
disse Demi.
Selena ouviu alguma coisa
na voz da amiga. Uma tristeza que não compreendia. Ela se virou de lado. Demi
estava olhando fixamente para o céu.
– Está pensando na sua mãe?
– perguntou Selena com hesitação.
– Eu tento não pensar nela.
Houve uma longa pausa e
então ela pegou um cigarro Virginia Slim dentro do bolso e o acendeu. Selena cuidou
para não fazer careta por causa da fumaça.
– Quer uma tragada?
Selena sabia que não tinha
escolha.
– Ahn, claro.
– Se a minha mãe fosse
normal… quero dizer, se ela não fosse doente… eu poderia ter contado a ela o
que aconteceu comigo na festa.
Selena deu uma pequena
tragada, tossiu forte e disse:
– Você pensa muito no que
aconteceu?
Demi se recostou no toco de
árvore, pegando o cigarro de volta. Depois de uma longa pausa, ela disse:
– Eu tenho pesadelos com o
que aconteceu.
Selena desejou saber o que
dizer.
– E o seu pai? Você não
pode conversar com ele?
Demi não olhou para ela.
– Não acho que ela saiba
quem ele é – disse, e a voz falhou. – Ou então ele ficou sabendo de mim e
fugiu.
– Que dureza.
– A vida é dura. Além
disso, eu não preciso deles. Eu tenho você, Selly. Foi você quem me ajudou a
enfrentar o que aconteceu. Selena sorriu. O cheiro forte de fumaça preencheu o
ar entre as duas e ardeu em seus olhos, mas ela não se importou. O que importava
era estar ali, com sua nova melhor amiga.
– É para isso que servem as
amigas.
Na noite seguinte, Demi
estava no último capítulo de Vidas sem rumo quando ouviu a mãe gritando
pela casa.
– Demi! Atenda a porcaria
da porta.
Ela fechou o livro com
força e desceu até a sala, onde a mãe estava atirada em cima do sofá, fumando
um baseado e assistindo à TV.
– Você está ao lado da
porta.
A mãe deu de ombros:
– E daí?
– Esconda isso.
Dando um suspiro dramático,
Nuvem se inclinou para a frente e pôs o baseado embaixo da mesinha que ficava ao lado do sofá. Só um cego não o veria, mas aquilo era o
melhor que ela poderia fazer. Demi afastou os cabelos do rosto e abriu a porta.
Ali, parada na varanda,
havia uma mulher segurando um prato de comida coberto com papel-alumínio. De cabelos
curtos e escuros, vestindo jeans desbotado e um blusão de acrílico com estampa
indiana, a mulher sorria alegremente. Uma sombra azul acentuava seus olhos
escuros e um blush rosado forte demais criava a ilusão de bochechas fundas
naquele rosto arredondado.
– Você deve ser a Demi –
falou a mulher num tom de voz que era mais alto do que ela esperava. Era uma
voz de menina, cheia de entusiasmo, e combinava com o brilho em seus olhos. –
Eu sou a mãe de Sel. Desculpe aparecer sem avisar, mas o telefone estava
ocupado. Demi visualizou o telefone fora do gancho ao lado da cama da mãe.
– Ah.
– Enfim, eu trouxe um refogado de atum para você e a sua mãe jantarem. Imagino
que ela não tenha muita vontade de cozinhar. Minha irmã teve câncer há uns
anos, então eu sei como é.
Ela sorriu e ficou ali
parada. No fim, seu sorriso murchou.
– Vai me convidar para
entrar?
Demi gelou. Aquilo não ia
dar certo.
– Ahn… claro.
– Obrigada.
A Sra. Gomez entrou na
casa, passando por ela.
Nuvem estava deitada no
sofá, ainda meio que largada. Agora estava com um montinho de maconha em cima
da barriga. Sorrindo com ar estúpido, ela tentou se levantar, mas não
conseguiu. A tentativa fracassada fez com que ela dissesse alguns palavrões e
caísse na risada. A casa toda fedia a maconha.
A Sra. Gomez estacou. Seu
rosto foi tomado por uma expressão confusa.
– Sou a Margie, da casa em
frente – disse ela.
– Sou a Nuvem –
apresentou-se a mãe, tentando sentar novamente. – Bacana conhecer você.
– Digo o mesmo.
Durante um terrível
instante de constrangimento, as duas ficaram
apenas se encarando. Demi não teve dúvidas de que o olhar afiado da Sra. Gomez viu tudo – o baseado embaixo da mesa lateral, o
saco de erva no chão, a garrafa de vinho vazia virada e as caixas de pizza em
cima da mesa.
– Eu também queria que soubesse
que fico em casa na maior parte
dos dias e teria prazer em levá-la ao médico ou ajudá-la com coisas da casa.
Sei como a quimioterapia pode fazer mal.
Nuvem franziu a testa
lentamente.
– Quem está com câncer?
A Sra. Gomez se virou para Demi,
que quis se encolher num canto e morrer.
– Ah – disse ela.
– Bem, se me mostrar onde
fica o fogão, eu já estou indo.
– Demi, mostre à nossa
vizinha bacana onde fica a cozinha.
Demi saiu quase correndo em
direção à cozinha. No inferno cor-de-rosa, onde embalagens de comida pronta
cobriam a mesa, louça suja cobria toda a pia e cinzeiros cheios estavam
espalhados por todos os cantos, ela se virou para enfrentar a situação. A Sra. Gomez
passou por ela, se abaixou no fogão, pôs a comida dentro do forno, fechou a porta
com o quadril e se virou para olhar para Demi.
– A minha Selly é uma boa
menina – disse ela, afinal.
Lá vem.
– Sim, senhora.
– Ela está rezando para que
a sua mãe se recupere do câncer. Ela inclusive montou um pequeno altar no
quarto.
Demi olhou para o chão,
envergonhada demais para responder. Como poderia explicar por que havia mentido?
Nenhuma resposta seria boa o bastante, não para uma mãe como a Sra. Gomez, que
amava os filhos. Com isso, uma onda de
pura inveja se juntou à vergonha que estava tomando conta dela. Talvez, se Demi
tivesse uma mãe que a amasse, não acharia tão fácil – tão
necessário – mentir, antes
de mais nada. E agora ela iria perder a única coisa que importava para ela: Selly.
Ela engoliu o nó que tinha
na garganta. Selly era a única amiga de verdade que tivera na vida, e ela havia
estragado tudo.
– Acha legal mentir para os
seus amigos?
– Não, senhora.
Ela estava encarando tão firmemente o chão que se assustou quando um toque delicado em seu
queixo a forçou a olhar para cima.
– Você vai ser uma boa
amiga para a Sel? Ou do tipo que a envolve em problemas?
– Eu jamais magoaria a Selly.
Demi queria falar mais,
talvez cair de joelhos e jurar que seria uma boa pessoa, mas estava tão à beira
das lágrimas que não ousou se mexer ou falar. Ela encarou os olhos escuros da
Sra. Gomez e viu algo que jamais esperaria: compreensão.
Na sala, Nuvem foi
tropeçando até a TV e mudou de canal. De onde estava, Demi conseguia enxergar a
tela através do lixo da sala; Jean Enersen apresentava as principais notícias
do dia.
– É você que faz tudo, não
é? – deduziu a Sra. Gomez, falando baixinho como se Nuvem pudesse estar ouvindo
atrás da porta. – Paga as contas, faz as compras, limpa a casa. De onde vem o
dinheiro?
Demi engoliu em seco.
Ninguém nunca havia enxergado sua vida com tanta clareza antes.
– Minha avó manda um cheque
toda semana.
A Sra. Gomez assentiu e
sentou ao lado dela. Depois de um instante, disse:
– Meu pai era alcoólatra, e
a cidade inteira sabia disso – disse ela com uma voz suave que combinava com a
expressão do seu olhar. – Ele era mau, também. Nas noites de sexta-feira e
sábado, minha irmã, Georgia, precisava ir até o bar e arrastá-lo de volta para
casa. Ele vinha pelo caminho batendo nela e xingando-a. Ela era como um
daqueles palhaços de rodeio que sempre ficam entre
o touro e o peão. Quando eu estava quase me formando, entendi por que ela
andava com desajustados e bebia demais.
– Porque não queria que as
pessoas olhassem para ela com pena.
A Sra. Gomez assentiu.
– Ela detestava aquele
olhar. Mas o que importa não são as outras pessoas, isso eu aprendi. Quem a sua
mãe é e como decidiu viver não são um reflexo de quem
você é. Você pode fazer as
próprias escolhas. E não tem nada do que se envergonhar. Mas você vai ter de
sonhar alto, Demi – disse, e olhando para a sala, emendou: – Como aquela Jean
Enersen ali, na TV. Uma mulher que chega a uma posição como a dela na vida sabe
ir atrás do que deseja.
– Como eu vou saber o que
quero?
– Fique de olhos abertos e
faça a coisa certa. Vá para a faculdade. Mas você vai precisar ser forte, Demi
Lovato. E confiar nos seus amigos.
– Eu confio na Sel.
– Então você vai contar a
verdade a ela?
– Eu preciso contar? E se
eu prometer que…
– Uma de nós duas vai
contar, Demi. Acho que deveria ser você.
Demi respirou fundo. Embora
dizer a verdade contrariasse todo e qualquer instinto que tivesse, na verdade
não tinha escolha. Ela queria que a Sra. Gomez sentisse orgulho dela.
– Está bem.
– Ótimo. Então espero você
para o jantar amanhã à noite. Às cinco horas. Vai ser a sua chance de
recomeçar.
Na noite seguinte, Demi
trocou de roupa pelo menos quatro vezes, tentando encontrar o visual certo.
Quando ficou pronta, estava tão
atrasada que precisou correr todo o caminho ladeira acima do outro lado da rua.
A mãe de Selena abriu a
porta. Estava usando calça boca de sino de gabardine roxa e uma blusa listrada
com decote V e mangas morcego. Sorrindo, ela disse: – Já vou avisando que as
coisas aqui são barulhentas e malucas.
– Eu adoro barulho e
maluquices – disse Demi.
– Então vai se sentir à
vontade.
A Sra. Gomez passou um
braço no ombro de Demi e a levou até a sala de estar de paredes bege com
carpete felpudo verde-musgo, sofá vermelho-vivo e uma poltrona reclinável
preta. Um pequeno quadro de Jesus com moldura dourada e outro de Elvis eram as
únicas peças decorativas nas paredes, mas dezenas de fotos da família se
amontoavam na parte de cima da TV. Demi não pôde deixar de pensar na TV da casa
dela. A parte de cima estava sempre coberta de cinzeiros lotados e embalagens
de cigarro vazias. Não havia uma única foto de família em lugar algum.
– Bud? – A Sra. Gomez
chamou o homem robusto de cabelos escuros sentado na poltrona. – Esta é a nossa
vizinha Demi Lovato.
O Sr. Gomez sorriu para ela
e largou a bebida.
– Ora, ora. Então é sobre
você que ouvimos tanto falar. Que bom tê-la aqui, Demi.
– É bom estar aqui.
A Sra. Gomez deu um tapinha
no ombro dela.
– O jantar só é servido às
seis. A Selly está no quarto dela, lá em cima. É o que fica no final da escada. Tenho certeza de que vocês duas têm muito o
que conversar.
Demi entendeu o recado e
assentiu, sem conseguir dizer nada. Agora que estava ali, naquela casa quente
que tinha cheiro de comida caseira, parada ao lado da mãe mais perfeita do
mundo, não podia imaginar perder tudo aquilo, deixar de ser bem-vinda.
– Eu nunca mais vou mentir
para ela – prometeu.
– Ótimo. Agora vá.
Dando um último sorriso, a
Sra. Gomez a deixou e foi para a sala de estar. O Sr. Gomez passou o braço na
cintura da mulher e a puxou para a poltrona com ele. Imediatamente, os dois
aproximaram a cabeça um do outro. Demi sentiu algo tão forte e inesperado que
não conseguiu se mexer. Tudo teria sido diferente para ela se ela houvesse tido
uma família assim. Ela não queria sair dali ainda.
– Estão vendo o noticiário?
– perguntou Demi.
O Sr. Gomez olhou para ela.
– Nunca deixamos de ver.
– Jean Enerson está mudando
o mundo – disse a Sra. Gomez, sorrindo. – Ela é uma das primeiras mulheres a
ser âncora de um noticiário noturno.
– Eu vou ser repórter –
disse Demi de repente.
– Que maravilha! – falou a
Sra. Gomez.
– Você está aí – disse Sel,
aparecendo ao lado dela. – Que legal que todo mundo me avisou que você havia
chegado – reclamou em voz alta.
– Eu estava contando aos
seus pais que vou ser repórter de TV – falou Demi.
A Sra. Gomez ficou encantada com aquilo. Em seu sorriso, Demi viu tudo o que
estava faltando em sua vida.
– Não é um grande sonho, Selly?
Selena pareceu confusa por
um instante. Então enganchou o braço no de Demi e a puxou para fora da sala,
escada acima. Em seu pequeno quarto no sótão, Selena foi até uma pequena pilha
de discos. Quando escolheu um deles – Tapestry, de
Carole King –, Demi estava na janela, olhando para a noite cor de lavanda.
A adrenalina da chegada
havia diminuído, deixando em seu rastro uma espécie de tristeza silenciosa. Ela
sabia o que tinha de fazer agora, mas pensar nisso a deixava nauseada. Conte a
verdade a ela. Se não contar, a Sra. Gomez vai contar.
– Comprei a nova Seventeen e a Tiger Beat – disse Sel, deitando no
tapete felpudo azul. – Quer ler? Nós podemos fazer o teste “Você Pode Ser
Namorada de Tony DeFranco?”.
Demi deitou ao lado dela.
– Claro.
– Jan-Michael Vincent é tão
gato – disse Sel, folheando a revista até encontrar uma foto do ator.
– Ouvi dizer que ele
enganava a namorada – disse Demi, olhando de lado para a amiga.
– Eu odeio gente que engana
os outros – falou Sel, virando a página. – Quer mesmo ser repórter de TV? Você
nunca me disse isso.
– Quero – disse Demi.
Só então imaginou aquilo de
verdade. Talvez ela pudesse ser famosa. Então todo mundo iria admirá-la.
– Mas você também vai ter
de ser – emendou. – Porque a gente faz tudo juntas.
– Eu?
– Nós seríamos uma equipe,
como Bob Woodward e Carl Bernstein, só que mais bonitas e com roupas melhores.
– Eu não sei…
Demi deu um encontrão nela.
– Sabe, sim. O Sr. Ramsdale
falou para a turma inteira que você escreve muito bem.
Selena riu.
– É verdade. Está bem. Eu
vou ser repórter também.
– Quando ficarmos famosas, vamos dar uma entrevista a Mike Wallace e dizer
que não teríamos vencido uma sem a outra.
Depois disso, as duas ficaram em silêncio, folheando a revista. Por duas vezes, Demi
tentou puxar o assunto da mãe, mas nas duas vezes Selena a interrompeu, e então
ouviram um grito de “Jantar!” e sua chance de abrir o jogo havia escapado.
Durante toda a melhor
refeição de sua vida, Demi sentiu o peso da mentira. Quando tiraram a mesa e
lavaram e secaram a louça, ela estava se sentindo extremamente tensa. Nem mesmo
sonhar com a fama na televisão a acalmava. – Ei, mamãe – disse Sel, guardando o
último prato branco. – A gente vai andar de bicicleta no parque, está bem?
– Nós vamos –
corrigiu a mãe, pegando o guia de TV no bolso lateral da poltrona reclinável. –
Mas esteja de volta às oito.
– Ahhh, mamãe…
– Oito – reforçou o pai, da
sala.
Selena olhou para Demi.
– Eles me tratam como se eu
fosse um bebê.
– Você não sabe a sorte que
tem. Venha, vamos pegar as bicicletas. Foram pedalando a toda a velocidade,
descendo a rua esburacada, rindo o caminho todo. Na Summer Hill, Demi abriu os
braços, e Selena a imitou. Quando chegaram ao parque do rio, largaram as
bicicletas perto das árvores e deitaram na grama, lado a lado, olhando para o
céu e ouvindo o rio gorgolejar nas pedras.
– Tem uma coisa que eu
preciso contar – falou Demi.
– O que é?
Demi respirou fundo e
disse:
– A minha mãe não tem
câncer. Ela é uma maconheira.
– A sua mãe fuma maconha.
Ah, tá, tá bom.
– É verdade. Ela está
sempre chapada.
Selena se virou para ela.
– É mesmo?
– É.
– Você mentiu para mim?
Demi mal conseguia olhar
para Selena de tanta vergonha.
– Eu não queria ter
mentido.
– As pessoas não mentem sem
querer. Não é como tropeçar numa calçada.
– Você não sabe como é
sentir vergonha da própria mãe.
– Você está brincando? Você
devia ver o que a minha mãe usou para sair para jantar na…
– Não – disse Demi. – Você
não sabe.
– Então me diga como é.
Demi sabia o que Selena estava
pedindo. Ela queria saber o motivo da mentira, mas Demi não sabia se
conseguiria contar, se poderia transformar sua dor em palavras e passá-la
adiante como cartas de um baralho. Guardara esses segredos durante toda sua
vida. Se contasse a verdade a Selena e então perdesse sua amizade, seria
insuportável. Porém, se não contasse, perderia a amizade com certeza.
– Eu tinha 2 anos – disse
ela, afinal – quando a minha mãe me
largou pela primeira vez na casa dos meus avós. Ela foi à cidade para comprar
leite e voltou quando eu estava com 4 anos. Quando eu tinha 10, ela apareceu de
novo e eu fiquei toda empolgada. Achei
que queria dizer que me amava. Dessa vez, ela me largou no meio de uma
multidão. Eu só voltei a vê-la de novo aos 14 anos. A minha avó nos deixou
morar nesta casa e nos manda dinheiro toda semana. Isso vai durar até a minha
mãe dar no pé de novo. O que ela certamente vai fazer.
– Eu não estou entendendo.
– Claro que não está. A
minha mãe não é como a sua. Esse é o período mais longo que já morei com ela.
Mais cedo ou mais tarde ela vai ficar entediada e vai embora
sem mim.
– Como uma mãe pode fazer
isso?
Demi encolheu os ombros.
– Acho que tem alguma coisa
errada comigo.
– Não tem nada errado com
você. Ela que é a trouxa. Mas ainda não entendi por que você mentiu para mim.
Demi finalmente olhou para
ela.
– Eu queria que você
gostasse de mim.
– Você estava
preocupada comigo?
Selena explodiu numa
gargalhada. Demi estava prestes a perguntar o que era tão engraçado quando ela
parou de rir e disse:
– Chega de mentiras, está
bem?
– Pode ter certeza disso.
– Nós vamos ser melhores
amigas para sempre – disse Selena com sinceridade. – Combinado?
– Você quer dizer que
sempre estará do meu lado?
– Sempre – respondeu Sel. –
Não importa o que aconteça.
Demi sentiu uma emoção se
abrir dentro dela feito uma flor exótica. Quase podia
sentir seu aroma doce no ar. Pela primeira vez na vida, ela se sentia totalmente
segura com alguém.
– Para sempre – prometeu. –
Não importa o que aconteça.
Selena sempre se lembraria
do verão depois da oitava série como um dos melhores períodos de sua vida.
Todos os dias de semana, ela fazia suas tarefas matinais sem reclamar e cuidava
do irmão até as três da tarde, quando a mãe voltava da rua e do trabalho
voluntário com jovens. Depois disso, Selena estava liberada. Os fins de semana,
na maior parte do tempo, eram todos seus. Ela e Demi andavam de bicicleta por
todo o vale e passavam horas boiando no rio Pilchuck. Nos finais de tarde, deitavam sobre toalhas minúsculas, usando biquínis
de crochê em cores neon, com a pele escorregadia por causa de uma mistura de
óleo de bebê e iodo. Ficavam ouvindo as top quarenta no rádio de que nunca se
separavam e conversando. Conversavam sobre tudo: moda, música, meninos, a
guerra e o que ainda estava acontecendo por lá, como seria ser uma dupla de
repórteres, filmes. Nada ficava de fora. Nenhuma questão ficava de lado. Um dia, no final de
agosto, as duas estavam no quarto de Sel, finalizando a maquiagem para irem à
feira. Como sempre, Selena teria de trocar de roupa e se maquiar depois de sair
de casa. Pelo menos se quisesse ficar com uma aparência bacana.
Sua mãe ainda achava que ela era jovem demais para tudo.
– Pegou o seu tomara que
caia? – perguntou Demi.
– Peguei.
Sorrindo uma para a outra
por conta de seu plano brilhante, as duas desceram a escada, onde o pai de Selena
estava vendo TV sentado no sofá.
– Estamos indo para a feira
– anunciou Sel.
Estava contente por a mãe
não estar em casa. Ela perceberia que a bolsa era grande demais para uma ida à
feira do condado. Sua visão de raios X provavelmente veria as roupas, os
sapatos e a maquiagem através do exterior de macramê.
– Cuidem-se, vocês duas –
disse ele, sem desviar o olhar da tela.
Era o que ele sempre dizia,
desde que garotas começaram a desaparecer em Seattle. Nos últimos dias, o
noticiário estava se referindo ao assassino como “Ted” porque uma menina no
parque estadual Lake Sammamish havia conseguido escapar e feito uma descrição à
polícia. Jovens de todo o estado estavam apavoradas. Ninguém via um Fusca
amarelo sem se preocupar que pudesse ser o carro de Ted.
– Tomaremos muito cuidado –
disse Demi, sorrindo.
Ela adorava quando os pais
da amiga se preocupavam com elas.
Selena atravessou a sala
para dar um beijo de despedida no pai, que passou o braço em torno dela e lhe
deu uma nota de 10 dólares.
– Divirtam-se.
– Obrigada, papai.
Ela e Demi saíram pela
entrada de carros balançando suas bolsas
alegremente.
– Você acha que o Kenny
Markson vai estar na feira? – perguntou Sel.
– Você se preocupa demais
com os meninos.
Selena deu um encontrão de
quadril na amiga.
– Ele tem uma queda por
você.
– Grande coisa. Eu sou mais
alta do que ele.
De repente, Demi parou.
– Ai, Demi, pare de andar
feito uma retardada. Eu quase caí…
– Ah, merda – sussurrou Demi.
– O que houve?
Então Selena viu o carro de
polícia parado na frente da casa da amiga.
Demi agarrou a mão de Selena
e praticamente a arrastou. As duas atravessaram a rua e foram até a porta da
frente das Lovatos, que estava aberta. Um policial esperava na sala.
Quando as viu, seu rosto
gorducho se contorceu, ficando parecido com o de um
palhaço.
– Olá, meninas. Eu sou o
policial Dan Myers.
– O que ela fez desta vez?
– perguntou Demi.
– Houve um protesto pela
coruja-pintada no lago Quinault que saiu do controle ontem. A sua mãe e várias
outras pessoas fizeram uma manifestação que
custou um dia inteiro de trabalho à madeireira. Pior: alguém atirou um cigarro
na mata. – Ele fez uma pausa. – O incêndio acabou de ser controlado.
– Deixe eu adivinhar: ela
vai para a cadeia.
– O advogado dela está
pedindo tratamento voluntário para vício em drogas. Se tiver sorte, ela vai
ficar no hospital por um tempo. Se não…
Ele deixou a frase no ar.
– Alguém ligou para a minha
avó?
O policial assentiu.
– Ela está esperando por
você. Precisa de ajuda para arrumar suas coisas?
Selena não estava
entendendo o que se passava. Então se virou para a amiga:
– Demi?
Os olhos castanhos de Demi
estavam terrivelmente inexpressivos, e Sel entendeu de repente que aquilo era
importante, o que quer que fosse.
– Preciso voltar para a
casa da minha avó – disse Demi, passando por Selena e indo até seu quarto.
Selena correu atrás dela.
– Você não pode ir! Eu não quero que você vá.
Demi tirou uma mala do
armário e a abriu.
– Não tenho escolha.
– Eu faço a sua mãe voltar.
Vou dizer a ela que…
Demi parou de arrumar suas
coisas e olhou para Sel.
– Você não tem como
consertar isso – disse ela de modo suave, parecendo uma adulta: cansada e
ferida.
Pela primeira vez, Selena compreendeu
de verdade todas as histórias sobre a mãe sem noção de Demi. Elas riam de Nuvem,
faziam piada sobre o uso de drogas, as roupas malucas e suas histórias; mas não
tinha graça. E Demi sempre soubera que aquilo iria acontecer.
– Prometa – disse ela, afinal, com a voz embargada – que seremos sempre a melhor amiga uma
da outra.
– Sempre – foi tudo o que Selena
pôde dizer.
Demi terminou de arrumar
suas coisas e fechou a mala. Sem dizer nada, voltou para a sala. No rádio,
estava tocando “American Pie”, e Selena se perguntou se algum dia conseguiria
ouvir aquela música novamente sem se lembrar daquele momento. O dia em que a
música morreu, como dizia a letra.
Seguiu Demi até a saída da
garagem. Lá, as duas caíram no choro e ficaram abraçadas
até que o policial Dan gentilmente afastasse Demi da amiga. Selena não
conseguiu nem sequer acenar. Apenas ficou ali
parada, anestesiada, com lágrimas escorrendo pelo rosto, assistindo à melhor
amiga ir embora.
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