Sete
A volta para casa de British
Columbia, no Canadá, pareceu durar uma eternidade. Como o ar-condicionado do
carro estava quebrado, um vento morno inútil saía das aberturas de ar. Todo
mundo estava com calor, cansado e suado. E ainda assim a mãe e o pai de Selena queriam
cantar. E ficavam insistindo para que
os filhos cantassem com eles. Selena não estava mais aguentando aquilo.
– Mamãe, pode, por favor, mandar o Sean parar de cutucar meu ombro?
O irmão arrotou e começou a
rir.
No banco da frente, o pai se
inclinou e ligou o rádio. A voz de John Denver saiu dos alto-falantes com
“Thank God I’m a Country Boy”.
– Eu vou cantar, Margie. Se
eles não quiserem cantar junto… tudo bem.
Selena voltou para o livro
que estava lendo. O carro pulava tanto que as palavras dançavam nas páginas,
mas isso não importava. Não depois de todas as vezes que ela já havia lido O senhor dos anéis. Estou feliz que
esteja aqui comigo. Aqui, no fim de todas as coisas.
– Selly. Selena.
Ela levantou o olhar.
– Que foi?
– Chegamos – disse o pai. –
Largue esse bendito livro e nos ajude a tirar as coisas do carro.
– Posso ligar para a Demi
antes?
– Não. Vamos descarregar o
carro primeiro.
Selena fechou o livro com
força. Fazia sete dias que vinha esperando para fazer essa ligação. Mas tirar
as coisas do carro era mais importante.
– Tudo bem, mas é bom que o
Sean ajude.
Sua mãe suspirou.
– Preocupe-se só com você, Selena.
Saíram do carro fedido e
começaram o ritual final das férias. Quando terminaram,
estava escuro. Selena deixou as últimas peças de roupa suja na pilha no chão da
lavanderia, colocou a primeira carga da máquina e foi falar com a mãe, que
estava sentada no sofá com o pai. Os dois estavam encostados um no outro,
parecendo em transe.
– Posso ligar para a Demi
agora?
O pai consultou o relógio.
– Às nove e meia? Tenho
certeza de que a avó dela vai gostar muito disso.
– Mas…
– Boa noite, Selly – o pai
disse com firmeza, passando o braço ao
redor da esposa e puxando-a para mais perto.
– Isso não é justo.
A mãe riu.
– Quem disse para você que
a vida era justa? Agora vá para a cama.
Durante quase quatro horas,
Demi ficou parada na esquina de
sua casa, vendo os Gomez descarregarem o carro. Pensou várias vezes em subir correndo
a ladeira e simplesmente aparecer diante deles, mas ainda não estava pronta
para a agitação da família inteira. Queria ficar a sós
com Sel, em algum lugar tranquilo onde pudessem conversar. Assim, ela esperou
até as luzes serem apagadas e atravessou a rua. No gramado abaixo da janela de Sel,
ela aguardou durante mais trinta minutos, só por garantia.
Em algum lugar à sua
esquerda, pôde ouvir Sweetpea relinchando para ela e batendo os cascos no chão.
Sem dúvida, a velha égua também queria companhia. Durante a viagem da família,
o vizinho lhe dera comida, o que era diferente de receber amor.
– Eu entendo, garota –
disse Demi, sentando no chão.
Abraçou as próprias pernas.
Talvez devesse ter telefonado em vez de aparecer daquela maneira. Mas não
queria correr o risco de a Sra. Gomez dizer para ela ir no dia seguinte, que eles
estavam cansados da longa viagem; Demi não conseguiria esperar. Aquela solidão
era mais do que ela era capaz de suportar sozinha.
Finalmente, às onze horas,
ela se levantou, limpou a grama do jeans e atirou um cascalho na vidraça do
quarto de Sel. Teve de jogar outros três para que a amiga enfiasse a cabeça para fora da janela.
– Demi!
Ela voltou para dentro do
quarto e fechou a janela com barulho. Levou menos de um minuto para aparecer na
lateral da casa. Usando uma camisola da Mulher Biônica, os velhos óculos de
armação preta e aparelho nos dentes, Sel gritou e correu para Demi de braços
abertos. Demi sentiu os braços de Selena ao seu redor e, pela primeira vez
depois de dias, sentiu-se segura.
– Eu senti tanta saudade –
disse Sel, abraçando-a mais apertado.
Demi não conseguiu
responder. Era tudo o que podia fazer para não chorar. Ela se perguntou se Selena
tinha noção de quão importante era aquela amizade para ela.
– Peguei as nossas
bicicletas – disse ela, dando um passo para trás para que Selena não visse seus
olhos cheios de lágrimas.
– Legal.
Em poucos minutos, as duas
estavam no caminho delas, voando colina Summer abaixo, com as mãos estendidas
para sentir o vento. No final da ladeira, largaram as bicicletas perto das
árvores e caminharam pela longa e sinuosa estradinha que levava até o rio. Ao
redor, as árvores conversavam entre si. O vento suspirava e folhas caíam dos
galhos, num primeiro sinal do outono que se aproximava. Selena se atirou no
antigo lugar das duas, apoiando as costas num toco de árvore cheio de limo, com
as pernas esticadas na grama, que havia crescido na ausência delas. Demi sentiu
uma inesperada pontada de nostalgia do tempo em que as duas eram mais novas.
Elas haviam passado a maior parte de um verão ali, unindo suas vidas solitárias
na amizade. Ela deitou ao lado de Sel, tão perto a ponto dos ombros se tocarem.
Depois dos últimos dias, precisava saber que sua melhor amiga estava finalmente ao seu lado. Posicionou seu radinho bem perto e aumentou
o volume.
– A Semana Infernal com Mosquitos
foi pior do que o normal – disse Sel.
– Mas convenci o Sean a
comer uma lesma, o que valeu a semana de mesada que perdi – contou ela, dando
risada. – Você precisava ver a cara dele quando comecei a rir. Tia Georgia
tentou conversar comigo sobre métodos anticoncepcionais. Acredita nisso? Ela
disse até que eu deveria…
– Você tem ideia da sorte
que tem?
As palavras saíram antes
que Demi pudesse contê-las, cuspidas como balas de goma de uma máquina.
Selena mudou de posição e
se virou de lado na grama, para olhar para Demi.
– Você sempre quer saber
tudo sobre as nossas férias.
– É. Tive uma semana ruim.
– Foi demitida?
– Esta é a sua ideia de uma
semana ruim? Eu quero a sua vida perfeita só por um dia.
Selena recuou, franzindo a
testa.
– Você parece estar brava
comigo.
– Não é com você – suspirou
Demi e tentou sorrir. – Você é a minha melhor amiga.
– Então com quem você está
brava?
– Com Nuvem. Com a Vovó.
Com Deus. Pode escolher – falou ela, depois respirou fundo e disse: – A Vovó
morreu enquanto você estava viajando.
– Ah, Demi.
E ali estava o que Demi
vinha esperando a semana inteira: alguém que a amava e realmente lamentava por
ela. Seus olhos se encheram de lágrimas e, sem se dar conta, ela começou a
soluçar. Soluços fortes que sacudiram seu corpo e não a deixaram respirar
direito. E Selena a abraçou, deixando que ela chorasse, sem dizer nada. Quando
não tinha mais lágrimas, Demi deu um sorriso frágil.
– Obrigada por não dizer
que sente muito por mim.
– Mas eu sinto.
– Eu sei.
Demi se recostou no toco de
árvore e olhou para o céu. Queria admitir que estava com medo e que, por mais
solitária que tivesse se sentido antes, ela agora sabia como era a verdadeira
solidão. Mas não conseguiu dizer isso, nem mesmo para Sel. Pensamentos – até
mesmo medos – são coisas feitas de ar e sem forma, até que os tornamos sólidos
com a nossa voz. E depois que lhes damos esse peso, eles podem nos esmagar.
Selena esperou um instante
e disse:
– E o que vai acontecer?
Demi secou os olhos e tirou
um maço de cigarros do bolso. Depois de acender um, ela deu uma tragada e
tossiu. Fazia anos que não fumava.
– Tenho que ficar com uma
família substituta. Mas vai ser por pouco tempo. Quando fizer 18 anos, vou
poder morar sozinha.
– Você não vai morar com
estranhos – assegurou Selena enfaticamente. –Vou procurar Nuvem e obrigá-la a
fazer a coisa certa.
Demi não se deu o trabalho
de responder. Ela amava a amiga por dizer aquilo, mas as duas viviam em mundos
diferentes, ela e Sel. No mundo de Demi, as mães não ajudavam. O que importava
era fazer as coisas do seu jeito. O que importava era não se importar. E a
melhor maneira de não se importar era se cercar de barulho e pessoas. Ela havia
aprendido essa lição muito tempo atrás. Ela não tinha mais muito tempo ali, em
Snohomish. Em breve as autoridades a encontrariam e a arrastariam de volta para
sua encantadora nova família, composta de adolescentes abandonados e adultos
pagos para ficar com eles.
– Precisamos ir àquela
festa. Aquela de que você falou na última carta.
– Na casa da Karen? A festa
de fim de verão?
– Exatamente.
Selena fez uma careta.
– Meus pais teriam um troço
se descobrissem que eu fui a uma festa onde há cerveja.
– Vamos dizer a eles que
você vai ficar na minha casa, do outro
lado da rua.
A sua mãe vai acreditar que
Nuvem voltou por um dia.
– Se eu for pega…
– Isso não vai acontecer.
Demi viu como a amiga
estava preocupada, e entendeu que devia
interromper aquele plano
imediatamente. Era imprudente, talvez até perigoso. Mas ela não podia parar o
trem. Se não fizesse alguma coisa
drástica, seria afogada na escuridão dramática dos próprios medos. Ela pensaria
na mãe que a abandonara tantas vezes, nos estranhos com quem estaria morando em
breve e na avó que morrera.
– Nós não vamos ser pegas.
Eu prometo – garantiu e se virou para Selena para confirmar: – Você confia em
mim, não confia?
– Claro – disse Selena ainda
hesitante.
– Ótimo. Então nós vamos à
festa.
– Crianças! O café está
pronto.
Selena foi a primeira a
chegar à mesa.
A mãe havia acabado de
servir um prato de panquecas quando alguém bateu à porta.
Selena deu um salto.
– Eu atendo.
Foi correndo até a porta,
que abriu com força.
– Mamãe, olhe. É a Demi.
Nossa, eu não vejo você há tanto tempo!
De braços dados, as duas
entraram na cozinha.
Sua mãe estava parada perto
da mesa, vestindo seu robe longo vermelho e as pantufas cor-de-rosa.
– Oi, Demi, que bom
revê-la! Sentimos sua falta no acampamento este ano, mas sei quanto seu emprego
é importante.
Demi deu um passo à frente.
Olhou para cima e tentou dizer algo, mas nenhum som saiu de sua boca. Ela ficou
parada, olhando para a mãe de Sel.
– O que foi? – a mãe disse,
indo na direção da menina. – O que aconteceu?
– Minha avó morreu – disse Demi
baixinho.
– Ah, querida…
A mãe de Selena puxou Demi
para um abraço apertado, que manteve por um longo tempo. Por fim, recuou,
passou um braço ao redor de Demi e a levou até o sofá da sala de estar.
– Desligue o fogo, Selly –
pediu a mãe sem olhar para trás.
Franzindo a testa, Selena desligou
o fogo e as seguiu até a sala. Ficou um pouco para trás, parada embaixo do arco
que separava os dois ambientes. Nenhuma das duas parecia dar importância à
presença dela.
– Nós perdemos o funeral? –
perguntou a mãe de Selena de forma gentil, segurando a mão de Demi.
Demi assentiu.
– Todo mundo disse que
sentia muito. Passei a odiar essa frase.
– As pessoas não sabem o
que dizer, só isso.
– A minha preferida foi a
popular “ela está num lugar melhor”. Como se estar morta fosse melhor do que
ficar comigo.
–E a sua mãe?
–Vamos dizer que ela não se
refere a si mesma como Nuvem por acaso. Ela apareceu, depois foi embora –falou Demi,
depois olhou para Selena e acrescentou rapidamente: –Mas ela está aqui comigo
agora.
–Claro que está–disse a mãe
de Sel. –Ela sabe que você precisa dela.
–Posso dormir lá esta
noite, mamãe? –perguntou Sel.
Seu coração ao estava
batendo tão rápido e tão forte que ela tinha certeza de que sua mãe podia
escutá-lo. Tentou parecer confiável, mas, como estava mentindo, imaginava que a
mãe perceberia.
A mãe nem olhou para Sel.
–É claro. Você duas
precisam ficar juntas. E você não se esqueça nunca, Demi Lovato: você é a próxima
Jessica Savitch. Você vai sobreviver a isso. Eu juro.
–A senhora acha mesmo?
–perguntou Demi.
–Eu tenho certeza. Você tem
um dom raro, Demi. E pode ter certeza de que a sua avó está no céu cuidando de
você Selena sentiu uma vontade súbita de se intrometer, de se aproximar e perguntar
se ela acreditava que a .lha era capaz
de mudar o mundo. Chegou a se aproximar e abrir a boca, mas, antes que pudesse
fazer a pergunta, ouviu Demi dizer:
–Vou deixar a senhora com
orgulho de mim, Sra. M. Prometo que vou.
Selena estacou. Não fazia
ideia de como deixar a mãe com orgulho dela. Não era como Demi. Não tinha um
dom raro. Mas seria de esperar que a própria mãe achasse que ela tinha um dom
raro e que dissesse isso à filha. Em vez disso, a mãe dela –como todo mundo –
orbitava o campo gravitacional da estrela Demi.
–Nó duas vamos ser repórteres
–disse Selena com mais rispidez do que pretendia.
Quando as duas olharam para
ela espantadas, ela se sentiu uma idiota.
–Venham –chamou ela, forçando
um sorriso desta vez. –Vamos comer antes que esfrie.
A festa foi uma má ideia.
Tão ruim quanto ir ao baile de formatura de Carrie, a estranha.
Demi sabia disso, mas não
podia voltar atrás. Nos dias que se seguiram ao funeral da avó e a mais um
abandono de Nuvem, seu sofrimento fora substituído por raiva. Ela percorria seu
sangue como um predador, enchendo-a de emoções que não podiam ser bloqueadas ou
contidas. Sabia que estava sendo irresponsável, mas não podia mudar de curso.
Se diminuísse o ritmo, ainda que por um instante, seu medo a alcançaria. Agora
estavam no antigo quarto de Nuvem, supostamente se arrumando.
–Ai, meu Deus! –disse Selena
com voz de espanto. –Você precisa ler isto.
Demi foi até a cama do
canto, tirou o livro de bolso da mão de Selena e o atirou do outro lado do
quarto.
–Ei!
Selena tentou se sentar,
desequilibrada no colchão d’água.
–Wulfgar estava amarrando
ela na cama. Eu preciso descobrir…
–Nó vamos a uma festa, Sel.
Chega desses romances baratos. E, que fique registrado, amarrar uma mulher na
cama é DO-EN-TI-O.
–É–disse Selena hesitante,
franzindo a testa. –Eu sei, mas…
–Nada de mas. Vá se
vestir.
– Está bem, está bem.
Selena remexeu a pilha de
roupas que Demi havia separado para ela mais cedo. Uma calça jeans e um corpete
justo de cor bronze.
– A minha mãe morreria se
soubesse que eu saí assim.
Demi não respondeu. Na
realidade, desejou não ter escutado aquilo. A Sra. M. era a última pessoa em
quem ela queria pensar naquele momento. Preferiu focar no que vestiria. Jeans,
tomara que caia cor-de-rosa e sandálias de amarrar azul-marinho com salto
plataforma. Abaixou a cabeça e escovou os cabelos para ficarem volumosos ao
estilo Farrah Fawcett e passou spray suficiente
para derrubar um mosquito no voo. Quando teve certeza de que estava com o
visual perfeito, virou-se para Sel.
– Você já…
Selena estava vestida para
a festa e lendo de novo em cima da cama.
– Você é tão patética.
Selena se deitou de costas
e sorriu.
– É romântico, Demi. Não
estou brincando.
Demi pegou o livro de novo.
Não sabia bem por que, mas aquilo realmente a irritava. Talvez fosse o
idealismo sonhador de Sel. Como ela podia acompanhar a vida de Demi e ainda
acreditar em finais felizes?
– Vamos lá.
Sem esperar para ver se Selena
estava vindo atrás dela, Demi foi até a garagem, abriu as portas e sentou no
velho banco do motorista do Queen Victoria da avó, ignorando que o estofamento
incomodava suas costas. Bateu a porta.
– Você pegou o carro dela?
– perguntou Sel, abrindo a porta do passageiro e enfiando a cabeça para dentro.
– Tecnicamente, o carro
agora é meu.
Selena se sentou e fechou a
porta.
Demi encontrou uma fita do Kiss no toca-fitas e aumentou o volume. Então engatou a marcha a ré e pisou no
acelerador.
As duas foram cantando a
plenos pulmões por todo o caminho até a casa de Karen Abner, onde já havia pelo
menos cinco carros estacionados. Vários outros estavam escondidos entre as
árvores. Bastava alguns pais estarem fora da cidade para a notícia se espalhar
e muitas festas acontecerem. Lá dentro, era um festival de fumaça. O cheiro
doce, um misto de maconha e incenso, era quase opressor. A música estava tão
alta que fazia doerem os ouvidos. Demi agarrou a mão de Selena e a guiou até a
sala de jogos no porão. O ambiente enorme tinha paredes com painéis de madeira
falsa e carpete verde-limão. No centro, havia uma lareira cônica cercada por um
sofá em meia lua e vários pufes marrons em formato de pera. À esquerda, alguns
meninos jogavam totó, gritando a cada virada das barras. Outros dançavam
loucamente,
cantando junto com a
música. Dois garotos estavam chapados no sofá, e uma menina estava perto da
porta, virando uma cerveja aos pés de um quadro imenso de um toureiro espanhol.
– Demi!
Antes que ela pudesse responder,
seus velhos amigos a cercaram e a afastaram de Sel. Ela foi primeiro até o
barril e um dos meninos lhe deu um
copo cheio de cerveja
dourada e espumante. Ela olhou para o copo, assaltada pela lembrança que ele
trouxe: Pat empurrando-a no
chão… Procurou por Sel, mas não
conseguiu ver a amiga no meio de tanta gente.
Então todo mundo começou a
cantar seu nome:
–De-mi.
– De-mi.
Ninguém iria machucá-la.
Não ali. Amanhã, talvez, quando as autoridades a encontrassem, mas não agora.
Ela virou a cerveja e estendeu o copo, pedindo mais, e gritando o nome de Sel. A
amiga apareceu imediatamente, como se estivesse apenas escondida, esperando que
fosse chamada.
Demi empurrou a cerveja
para ela.
– Tome.
Selena sacudiu a cabeça.
Foi um movimento leve, quase imperceptível, mas Demi viu e se envergonhou por
ter lhe oferecido a cerveja, mas então ficou com raiva
por a amiga ser tão inocente. Demi nunca fora inocente. Pelo menos não que
pudesse se lembrar.
– Sel-ly, Sel-ly – cantou Demi,
encorajando todos a acompanhá-la. – Vamos lá, Selly – disse baixinho. – Somos
melhores amigas, não somos?
Selena olhou com nervosismo
para todas as pessoas ao seu redor.
Demi sentiu aquela vergonha
de novo – e a inveja. Ela podia parar com aquilo imediatamente, proteger Selly…
Selena pegou a cerveja e
virou o copo.
Mais da metade da cerveja
derramou em seu queixo e no top, fazendo o tecido brilhante colar aos seios,
mas ela não pareceu perceber. Então a música mudou. “Dancing Queen”, do ABBA,
começou a soar a toda a altura dos alto-falantes. You can
dance, you can j-ive…
– Eu amo esta música –
disse Sel.
Demi agarrou a mão de Selena
e a arrastou até onde um grupo dançava. Lá, Demi se soltou e se deixou envolver
pela música e pelo movimento. Quando a música mudou e ficou mais lenta, ela estava respirando com dificuldade e rindo com
facilidade.
Mas era Selena quem estava
mais mudada. Talvez tivesse sido aquela única cerveja, ou a batida da música, Demi
não sabia ao certo. Tudo o que sabia era que Selena de repente estava
maravilhosa, com os cabelos loiros cintilando à luz do lustre e a pele clara e
delicada corada por causa do esforço. Quando Neal Stewart se aproximou e tirou Selena
para dançar, Selena foi a
única a ficar surpresa. Ela
se virou para Demi.
– O Neal quer dançar comigo
– ela gritou numa pausa da música. – Ele deve estar bêbado.
Então, jogando os braços
para o ar, saiu dançando com Neal, deixando Demi sozinha na multidão. Selena encostou
o rosto na camiseta macia de Neal. Era tão boa a forma como os braços estavam
ao redor dela, com as mãos pouco acima do bumbum. Sentia o quadril dele se
mover junto com o dela. Isso fazia seu coração disparar, acelerava sua
respiração. Foi dominada por uma sensação nova. Era uma espécie de expectativa
tensa. Ela queria… o quê?
– Sel?
Ela ouviu o jeito hesitante
como ele disse seu nome e, de repente, se deu conta: será que ele sentia todas
aquelas coisas também?
Lentamente, olhou para
cima. Neal sorriu para ela. Ele quase não se movia.
– Você está linda – disse
ele.
Então ele a beijou, bem
ali, no meio da pista de dança. Selena respirou fundo e ficou tensa nos braços
dele. Foi tão inesperado que ela não soube o que fazer. A língua dele entrou em
sua boca, fazendo com que ela afastasse um pouco os lábios.
– Nossa – disse ele
baixinho quando terminou.
Nossa o quê? Nossa, você é uma pateta? Ou Nossa, que beijo!.
Atrás dela, alguém gritou:
– Polícia!
Num instante, Neal havia
desaparecido e Demi estava ao lado dela de novo, segurando sua mão. Elas saíram
correndo desesperadamente da casa, subiram a ladeira e passaram pelos arbustos
que levavam até as árvores. Quando chegaram ao carro, a cabeça de Selena estava
girando, e ela sentia um forte enjoo.
– Eu vou vomitar.
– Ah, não vai não.
Demi abriu a porta do
carona e jogou Selena dentro do carro.
– Nós não vamos ser
pegas.
Demi deu a volta correndo
pela frente do carro e abriu a porta do motorista. Sentando rapidamente, enfiou
a chave na ignição, engatou a marcha a ré e pisou no acelerador. O carro
disparou para trás, fazendo Selena voar para a frente e bater a testa no
painel, antes de ser jogada de volta ao banco quando bateram em cheio em alguma
coisa. Selena abriu os olhos, zonza, e tentou focar a visão. Demi estava ao
lado dela, abrindo a janela. Lá, no escuro, estava o bom e velho policial Dan,
o homem que havia levado Demi embora de Snohomish três anos antes.
– Eu sabia que essas
garotas da alameda dos Vaga-lumes ainda iriam me dar trabalho.
– Puta que pariu! – falou Demi.
– Bela linguagem, Demetria.
Agora, poderia, por favor, sair do carro? – pediu, e, abaixando-se para ver Sel:
– Você também, Selena Gomez. A festa acabou.
A primeira coisa que
fizeram na delegacia foi separar as duas.
– Alguém virá falar com
você – disse o policial Dan, guiando Demi até uma sala no fim do corredor.
O cômodo era iluminado por
uma lâmpada forte, com uma mesa metálica cinza e duas cadeiras. As paredes eram
de um verde medonho e o piso, de cimento esburacado. Havia também um fedor
estranho no ar, uma mistura de suor, urina e café velho.
A parede da esquerda era um
grande espelho. Bastava ter visto um episódio de Starsky e Hutch para saber que era um espelho falso. Demi imaginou se a assistente
social já estaria lá, sacudindo a cabeça de decepção e dizendo “Agora aquela
ótima família não vai aceitá-la”; ou o advogado, que não saberia o que dizer. Ou
os Gomez. Pensar nisso a fez soltar um gemido de horror. Como podia ter sido
tão burra? Os Gomez gostavam dela. Até aquela noite, porque agora ela jogara tudo
no lixo; e por quê? Porque estava deprimida pela rejeição da mãe? A essa altura,
já devia estar acostumada. Por acaso algum dia havia sido diferente?
– Eu não vou ser idiota
assim de novo – disse ela, olhando para o espelho. – Se me derem outra chance,
eu vou ser boa.
Depois disso, ela esperou
que alguém entrasse na sala para pegá-la, talvez trazendo algemas, mas os
minutos apenas se seguiram em silêncio. Ela levou a cadeira de plástico preta
até um canto e se sentou. Eu devia saber que
não haveria ninguém.
Ela fechou os olhos,
pensando nisso sem parar. Mas outro pensamento, outra lembrança também a
assombrava: Você vai ser uma
boa amiga para a Sel?
– Como eu pude ser tão
burra?
Desta vez, Demi nem olhou
para o espelho. Não havia ninguém lá. Quem estaria olhando para ela, a garota
que ninguém queria?
Do outro lado da sala, a
maçaneta girou.
Demi ficou tensa. Apertou
as coxas com os dedos.
Seja uma boa garota, Demi. Concorde com tudo o que
disserem . É melhor ir para uma família substituta do que para
um reformatório.
A porta se abriu, e a Sra. Gomez
entrou na sala. Usando um vestido floral e um
tênis branco velho, ela parecia cansada e mal
ajambrada, como se tivesse sido acordada no meio da noite e vestido
qualquer coisa que tivesse encontrado no escuro. O que, é claro, era exatamente
o que havia acontecido. A Sra. Gomez pegou um cigarro no bolso do vestido e o
acendeu. Ficou observando Demi através da fumaça. Emanava uma tristeza e uma
decepção tão reais e visíveis quanto a fumaça. Demi foi tomada pela vergonha.
Ali estava uma das poucas pessoas que acreditaram nela, e ela a havia decepcionado.
– Como está a Sel?
A Sra. Gomez soltou mais
fumaça.
– Bud a levou para casa. E
não acredito que ela vá poder sair de lá por um bom tempo.
– Ah.
Demi se remexeu
desconfortavelmente. Todas as suas falhas estavam expostas, tinha certeza
disso. As mentiras que contara, os segredos que guardara, as lágrimas que
chorara. A Sra. M. via tudo. E ela não gostava do que estava vendo. Demi não
podia culpá-la.
– Eu sei que decepcionei a
senhora.
– É, decepcionou mesmo.
A Sra. Gomez pegou a outra
cadeira e se sentou na frente de Demi.
– Querem mandar você para o
reformatório – falou.
Sem conseguir suportar a
decepção que via no rosto da Sra. M., Demi encarou as próprias mãos.
– A família substituta não
vai me querer mais.
– Fiquei sabendo que sua
mãe se recusou a ficar com a sua custódia.
– Grande surpresa.
Demi notou quão embargada
estava sua voz. Sabia que isso revelava quanto estava magoada, mas não havia
como esconder. Não da Sra. M. A Sra. Gomez se recostou na cadeira. Tragou o
cigarro, exalou a fumaça e disse em voz baixa:
– Selly acha que é possível
encontrar outra família para você.
– É, bem, a Selly vive num
mundo diferente do meu.
A Sra. Gomez se recostou na
cadeira. Deu uma tragada no cigarro, soltou a fumaça e falou de forma
tranquila:
– Ela quer que você vá
morar conosco.
O simples fato de ouvir
aquilo foi um golpe no coração. Teve certeza de que precisaria de muito tempo
para esquecer aquelas palavras.
– É, tá bom.
E isso foi um instante
antes que a Sra. Gomez dissesse:
– Uma menina que morasse
conosco teria de fazer parte do serviço da casa e seguir nossas regras. O Sr. Gomez
e eu não vamos aturar nenhuma gracinha.
Demi levantou a cabeça
rapidamente.
– O que a senhora está
dizendo?
Nem conseguia traduzir em
palavras essa súbita esperança.
– E, sem dúvida, nada de
fumar.
Demi encarou a Sra. M.,
sentindo as lágrimas queimarem seus olhos, mas essa dor em nada se comparava
com o que estava acontecendo dentro dela. De repente, parecia que ela estava
prestes a cair.
– Está dizendo que eu posso
morar com vocês?
A Sra. M. se inclinou para
tocar o rosto de Demi.
– Eu sei como a sua vida
foi dura até hoje, Demi, e eu não suporto pensar em você voltando para aquilo.
A queda se transformou em
voo, e de repente Demi estava chorando por tudo – pela avó, pela família substituta,
por Nuvem. Aquele alívio era a maior emoção que ela já havia sentido. Com as mãos
trêmulas, tirou de dentro da bolsa um maço de cigarros amassado e pela metade e
o entregou à Sra. M.
– Bem-vinda à nossa
família, Demi – disse a Sra. M. afinal, puxando Demi para seus
braços e deixando-a chorar.
Pelo resto da vida, Demi se
lembraria desse momento como o começo de algo novo para ela. O surgimento de
uma nova pessoa. Enquanto viveu com a barulhenta, maluca e amorosa família Gomez,
ela descobriu alguém diferente dentro de si. Ela não guardava segredos, nem
inventava ou fingia ser quem não era, e
nem uma vez sequer eles agiram como se ela não fosse querida ou boa o bastante.
Aonde quer que fosse, o que quer que fizesse ou
com quem estivesse, ela sempre se lembraria daquele momento e daquelas
palavras: Bem-vinda à nossa
família, Demi. Ao
longo de sua existência ela pensaria naquele último ano do colegial, quando se
tornou inseparável de Selena e virou parte da família, como o melhor ano de sua
vida.
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